1-sem querer transformo em pó minha nova professora de
Olhe, eu nao queria ser um meio-sangue.
Se voce esta lendo isto porque acha que pode ser um, meu conselho e o seguinte: feche este livro agora mesmo. Acredite em qualquer mentira que sua mae ou seu pai lhe contou sobre seu nascimento, e tente levar uma vida normal.
Ser meio-sangue e perigoso. E assustador. Na maioria das vezes, acaba com a gente de um jeito penoso e detestavel.
Se voce e uma crianca normal, que esta lendo isto porque acha que e ficcao, otimo. Continue lendo. Eu o invejo por ser capaz de acreditar que nada disso aconteceu.
Mas, se voce se reconhecer nestas paginas . se sentir alguma coisa emocionante la dentro -, pare de ler imediatamente. Voce pode ser um de nos. E, uma vez que fica sabendo disso, e apenas uma questao de tempo antes que eles tambem sintam isso, e venham atras de voce.do déficit de atenção, e de que nunca na vida tirei uma nota acima de C-. Não - ele não esperava que eu fosse tão bom quanto; ele esperava que eu fosse melhor. E eu simplesmente não podia aprender todos aqueles nomes e fatos, e muito menos escrevê-los direito.
Murmurei alguma coisa sobre me esforçar mais, enquanto o sr. Brunner lançava um olhar longo e triste para a estela, como se tivesse estado no funeral daquela menina.
Ele me disse para sair e comer meu lanche.
A turma se reuniu nos degraus da frente do museu, de onde podíamos assistir ao trânsito de pedestres pela Quinta Avenida.
Acima de nós, uma imensa tempestade estava se formando, com as nuvens mais escuras que eu já tinha visto sobre a cidade. Imaginei que talvez fosse o aquecimento global ou qualquer coisa assim, porque o tempo em todo o estado de Nova York estava esquisito desde o Natal. Tivemos nevascas pesadas, inundações, incêndios nas florestas causados por raios. Eu não teria ficado surpreso se fosse um furacão chegando.
Ninguém mais pareceu notar. Alguns dos garotos estavam jogando biscoitos para os pombos. Nancy Bobofit tentava afanar alguma coisa da bolsa de uma senhora e, é claro, a sra. Dodds não via nada.
Grover e eu nos sentamos na beirada do chafariz, longe dos outros. Pensamos que, se fizéssemos isso, talvez ninguém descobrisse que éramos daquela escola - a escola para esquisitões lesados que não davam certo em nenhum outro lugar.
- Detenção? - perguntou Grover.
- Não - disse eu. - Não do Brunner. Eu só gostaria que ele às vezes me desse um tempo. Quer dizer, não sou um gênio.
Grover não disse nada por algum tempo. Então, quando achei que ele ia me brindar com algum comentário filosófico profundo para me fazer sentir melhor, ele disse:
- Posso comer sua maçã?
Eu não estava com muito apetite, então a entreguei a ele.
Observei os táxis que passavam descendo a Quinta Avenida e pensei no apartamento de minha mãe, na área residencial próxima ao lugar onde estávamos sentados. Eu não a via desde o Natal. Tive muita vontade de pular em um táxi e ir para casa. Ela me abraçaria e ficaria contente de me ver, mas também ficaria desapontada. Imediatamente me mandaria de volta para Yancy e me lembraria que preciso me esforçar mais, ainda que aquela fosse minha sexta escola em seis anos e que, provavelmente, eu seria chutado para fora de novo. Não conseguiria suportar o olhar triste que ela me lançaria.
O sr. Brunner estacionou a cadeira de rodas na base da rampa para deficientes. Comia aipo enquanto lia um romance. Um guarda-chuva vermelho estava enfiado nas costas da cadeira, fazendo-a parecer uma mesa de café motorizada.
Eu estava prestes a desembrulhar meu sanduíche quando Nancy Bobofit apareceu diante de mim com as amigas feiosas - imagino que tivesse se cansado de roubar dos turistas - e deixou seu lanche, já comido pela metade, cair no colo de Grover.
- Oops. - Ela arreganhou um sorriso para mim, com os dentes tortos. As sardas eram alaranjadas, como se alguém tivesse pintado o rosto dela com um spray de Cheetos líquido.
Tentei ficar calmo. O orientador da escola me dissera um milhão de vezes: "Conte até dez, controle seu gênio." Mas estava tão furioso que me deu um branco. Uma onda rugia nos meus ouvidos.
Não me lembro de ter tocado nela, mas quando dei por mim Nancy estava sentada com o traseiro no chafariz, berrando:
- Percy me empurrou! A sra. Dodds se materializou ao nosso lado. Algumas das crianças estavam sussurrando:
- Você viu...
- ...a água...
- ...parece que a agarrou...
Eu não sabia do que elas estavam falando. Tudo o que sabia era que estava encrencado outra vez.
Assim que se certificou de que a pobre Nancy estava bem, prometendo dar-lhe uma blusa nova na loja de presentes do museu etc. e tal, a sra. Dodds se voltou para mim. Havia um fogo triunfante em seus olhos, como se eu tivesse feito algo pelo que ela esperara o semestre inteiro:
- Agora, meu bem...
- Eu sei - resmunguei. - Um mês apagando livros de exercícios.
Não foi a coisa certa para dizer.
- Venha comigo - disse a sra. Dodds.
- Espere! - guinchou Grover. - Fui eu. Eu a empurrei.
Olhei para ele perplexo. Não podia acreditar que estivesse tentando me proteger. Ele morria de medo da sra. Dodds.
Ela lançou um olhar tão furioso que fez o queixo penugento dele tremer.
- Acho que não, sr. Underwood - disse ela.
- Mas...
- Você... vai... ficar... aqui.
Grover me olhou desesperadamente,
- Tudo bem, cara - disse a ele. - Obrigado por tentar.
- Meu bem - latiu a sra. Dodds para mim. - Agora.
Nancy Bobofit deu um sorriso falso.
Lancei-lhe meu melhor olhar de "vou acabar com a sua raça". Então me virei para enfrentar a sra. Dodds, mas ela não estava lá. Estava postada à entrada do museu, lá no alto dos degraus, gesticulando impaciente para mim.
Como ela chegou lá tão depressa?
Tenho milhares de momentos desse tipo - meu cérebro adormece ou algo assim e, quando me dou conta, vejo que perdi alguma coisa, como se uma peça do quebra-cabeça desaparecesse e me deixasse olhando para o espaço vazio atrás dela. O orientador da escola me disse que isso era parte do transtorno do déficit de atenção, era meu cérebro que interpretava tudo errado.
Eu não tinha tanta certeza.
Fui atrás da sra. Dodds.
No meio da escadaria, olhei para Grover lá atrás. Ele parecia pálido, movendo os olhos entre mim e o sr. Brunner, como se quisesse que o sr. Brunner reparasse no que estava acontecendo, mas o professor estava absorto em seu romance.
Voltei a olhar para cima. A sra. Dodds desaparecera de novo. Estava agora dentro do edifício, no fim do hall de entrada.
Certo, pensei. Ela vai me fazer comprar uma blusa nova para Nancy na loja de presentes.
Mas aparentemente não era esse o plano.
Eu a segui museu adentro. Quando finalmente a alcancei, estávamos de volta à seção greco-romana.
A não ser por nós, a galeria estava vazia.
A sra. Dodds estava postada de braços cruzados na frente de um grande friso de mármore com os deuses gregos. Ela fazia um mulo estranho com a garganta, como um rosnado.
Mesmo sem o ruído, eu teria ficado nervoso. É esquisito estar sozinho com uma professora, especialmente a sra. Dodds. Algo no modo como ela olhava para o friso, como se quisesse pulverizá-lo...
- Você está nos criando problemas, meu bem - disse ela.
Fiz o que era seguro. Disse:
- Sim, senhora.
Ela ajeitou os punhos de seu casaco de couro.
- Você achou mesmo que ia se safar desta? A expressão em seus olhos era mais que furiosa. Era perversa. Ela é uma professora, pensei, nervoso. Não é provável que vá me machucar. Eu disse:
- Eu... eu vou me esforçar mais, senhora. Um trovão sacudiu o edifício.
- Nós não somos bobos, Percy Jackson - disse a sra. Dodds. - Seria apenas uma questão de tempo até que o descobríssemos Confesse, e você sentirá menos dor.
Eu não sabia do que ela estava falando.
Tudo o que pude pensar foi que os professores haviam descoberto o estoque ilegal de doces que eu estava vendendo no meu dormitório. Ou talvez tivessem descoberto que eu pegara meu trabalho sobre Tom Sawyer na Internet sem ter nem lido o livro, e agora iam retirar minha nota. Ou pior, iam me obrigar a ler o livro.
- E então? - exigiu.
- Senhora, eu não...
- O seu tempo se esgotou - sibilou ela.
Então algo muito estranho aconteceu. Os olhos dela começaram a brilhar como carvão de churrasco. Os dedos se esticaram, transformando-se em garras. O casaco se fundiu em grandes asas de couro. Ela não era humana. Era uma bruxa má e enrugada, com asas e garras de morcego e com uma boca repleta de presas amareladas - e estava prestes a me fazer em pedaços.
Então as coisas ficaram ainda mais esquisitas.
O sr. Brunner, que estava na frente do museu um minuto antes, foi com a cadeira de rodas até o vão da porta da galeria, segurando uma caneta.
- Olá, Percy! - gritou ele, e lançou a caneta pelo ar.
A sra. Dodds deu um bote para cima de mim.
Com um gemido agudo, eu me esquivei e senti as garras cortando o ar ao lado do meu ouvido. Agarrei a caneta esferográfica no alto, mas quando ela atingiu minha mão já não era mais uma caneta. Era uma espada - a espada de bronze do sr. Brunner, que ele sempre usava em dias de torneio.
A sra. Dodds virou-se na minha direção com uma expressão assassina nos olhos.
Meus joelhos ficaram bambos. As mãos tremiam tanto que quase deixei a espada cair.
Ela rosnou:
- Morra, meu bem!
E voou para cima de mim.
Um terror absoluto percorreu meu corpo. Fiz a única coisa que me ocorreu naturalmente: desferi um golpe com a espada.
A lâmina de metal atingiu o ombro dela e passou direto por seu corpo, como se ela fosse feita de água: Zaz!
A sra. Dodds era um castelo de areia debaixo de um ventilador. Ela explodiu em areia amarela, reduziu-se a pó, sem deixar nada do cheiro de enxofre, um grito estridente que foi sumindo e um calafrio de maldade no ar, como se aqueles olhos vermelhos incandescentes ainda estivessem me olhando.
Eu estava sozinho.
Havia uma caneta esferográfica na minha mão.
O sr. Brunner não estava lá. Não havia ninguém lá além de mim.
Minhas mãos ainda estavam tremendo. Meu lanche devia estar contaminado com cogumelos mágicos ou coisa assim.
Será que eu havia imaginado tudo aquilo?
Voltei para o lado de fora.
Tinha começado a chover.
Grover estava sentado junto ao chafariz com um mapa do museu formando uma tenda em cima de sua cabeça. Nancy Bobofit ainda estava lá, encharcada do banho no chafariz, resmungando para as amigas feiosas. Quando me viu, disse:
- Espero que a sra. Kerr tenha chicoteado seu traseiro.
- Quem? - respondi.
- Nossa professora. Dãã!
Eu pisquei. Não tínhamos nenhuma professora chamada sra. Kerr. Perguntei a Nancy de quem ela estava falando.
Ela simplesmente revirou os olhos e me deu as costas.
Perguntei a Grover onde estava a sra. Dodds.
- Quem? - respondeu ele.
Mas Grover primeiro fez uma pausa, e não olhou para mim, portanto, pensei que estivesse me gozando.
- Não tem graça, cara - disse a ele. - Isso é sério. Um trovão estourou no alto.
Vi o sr. Brunner sentado embaixo do guarda-chuva vermelho, lendo seu livro, como se nunca tivesse se mexido. Fui até ele. Ele ergueu os olhos, um pouco distraído.
- Ah, é a minha caneta. Por favor, traga seu próprio instrumento de escrita no futuro, sr. Jackson.
Entreguei a caneta ao sr. Brunner. Não tinha notado que ainda a estava segurando.
- Senhor - disse eu -, onde está a sra. Dodds? Ele olhou para mim com a expressão vazia.
- Quem?
- A outra professora que nos acompanhava. A sra. Dodds. Professora de iniciação à álgebra.
Ele franziu a testa e se inclinou para a frente, parecendo ligeiramente preocupado.
- Percy, não há nenhuma sra. Dodds nesta excursão. Até onde sei, nunca houve uma sra. Dodds na Academia Yancy. Está se sentindo bem?
DOIS – Três velhas senhoras tricotam as meias da morte.
Eu estava acostumado a uma ou outra experiência esquisita, mas normalmente elas passavam depressa. Aquela alucinação 24 horas por dia e sete dias por semana era mais do que podia encarar. Durante o resto do ano escolar o campus inteiro parecia me pregando algum tipo de peça. Os alunos agiam como se estivessem completa e totalmente convencidos de que a sra. Kerr - uma loira alegre que eu nunca tinha visto na vida até o momento em que ela entrou no nosso ônibus no fim da excursão - era nossa professora de iniciação à álgebra desde o Natal.
De vez em quando eu soltava uma referência à sra. Dodds para cima de alguém, só para ver se conseguia fazê-los titubear, mas eles me olhavam como se eu fosse louco.
Acabei quase acreditando neles: a sra. Dodds nunca tinha existido.
Quase.
Mas Grover não conseguiu me enganar. Quando eu mencionava o nome Dodds ele hesitava, depois alegava que ela não existia. Mas eu sabia que ele estava mentindo.
Alguma coisa estava acontecendo. Alguma coisa havia acontecido no museu.
Eu não tinha muito tempo para pensar no assunto durante o dia, mas, à noite, visões da sra. Dodds com garras e asas de couro me faziam acordar suando frio.
O tempo maluco continuou, o que não ajudava meu humor. Certa noite, uma tempestade de raios arrebentou a janela do meu dormitório. Alguns dias depois, o maior tornado jamais visto no vale do Hudson tocou o chão a apenas trinta quilômetros da Academia Yancy. Um dos eventos correntes que aprendemos na aula de estudos sociais era o número inusitado de pequenos aviões que caíram em súbitos vendavais no Atlântico naquele ano.
Comecei a me sentir mal-humorado e irritado a maior parte do tempo. Minhas notas caíram de D para F. Entrei em mais atritos com Nancy Bobofit e suas amigas. Era posto para fora da sala e tinha de ficar no corredor em quase todas as aulas.
Finalmente, quando nosso professor de inglês, o sr. Nicoll, me perguntou pela milionésima vez por que eu tinha tanta preguiça de estudar para as provas de ortografia, eu explodi. Chamei-o de velho dipsomaníaco. Não sabia direito o que aquilo queria dizer, mas soou bem.
O diretor mandou uma carta para minha mãe na semana seguinte, tornando oficial: eu não seria convidado a voltar para a Academia Yancy no ano seguinte.
Ótimo, disse a mim mesmo. Simplesmente ótimo.
Eu estava com saudades de casa.
Queria ficar com minha mãe no nosso pequeno apartamento no Upper East Side, mesmo que tivesse de freqüentar uma escola pública e aturar meu padrasto detestável e seus jogos de pôquer estúpidos.
E no entanto... havia coisas em Yancy de que eu sentiria falta. A vista da minha janela para os bosques, o rio Hudson a distância, o cheiro dos pinheiros. Sentiria falta de Grover, que tinha sido bom amigo, mesmo com seu jeito meio estranho. Fiquei pensando como ele iria sobreviver ao próximo ano sem mim.
Também sentiria falta da aula de latim - os dias malucos de torneio do sr. Brunner e sua confiança em que eu poderia me sair bem.
Quando a semana de exames foi se aproximando, latim era a única prova para a qual eu estudava. Não tinha me esquecido que o sr. Brunner falara, sobre essa matéria ser questão de vida ou morte para mim. Não sabia muito bem por quê, mas acreditar nele.
Na noite anterior ao meu exame final, fiquei tão frustrado que joguei o Guia Cambridge de mitologia grega do outro lado do dormitório. As palavras tinham começado a flutuar para fora da página, dando voltas na minha cabeça, as letras fazendo manobras radicais como se estivessem andando de skate. Não havia jeito de eu me lembrar da diferença entre Quíron e Caronte, ou Polidectes e Polideuces. E conjugar aqueles verbos latinos? Nem pensar.
Fiquei indo de um lado para outro no quarto, com a sensação de que havia formigas andando por dentro da minha camisa.
Lembrei a expressão séria do sr. Brunner, de seus olhos de mil anos. De você, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson.
Respirei fundo. Peguei o livro de mitologia.
Eu nunca havia pedido ajuda a um professor antes. Se falasse com o sr. Brunner, quem sabe ele me daria algumas dicas. Poderia, pelo menos, pedir desculpas pelo grande F que ia tirar na prova. Não queria sair da Academia Yancy deixando-o pensar que eu não tinha me esforçado.
Desci a escada para os gabinetes dos professores. A maioria estava vazia e escura, mas a porta do sr. Brunner estava entreaberta e a luz que vinha da sua janela se estendia ao longo do piso do corredor.
Eu estava a três passos da maçaneta da porta quando ouvi vozes dentro da sala.. O sr. Brunner tinha feito uma pergunta. Uma voz que, sem sombra de dúvida, era a de Grover disse: "...preocupado, senhor."
Eu gelei.
Normalmente não sou bisbilhoteiro, mas desafio alguém a não tentar ouvir quando seu melhor amigo está falando sobre você com um adulto.
Cheguei um pouquinho mais perto.
- ...sozinho nesse verão - Grover estava dizendo. - Quer dizer, uma benevolente na escola! Agora que sabemos com certeza, e eles também sabem...
- Só vamos piorar as coisas se o apressarmos - disse o sr. Brunner. - Precisamos que o menino amadureça mais.
- Mas ele pode não ter tempo. O prazo final do solstício de verão...
- Terá de ser resolvido sem ele, Grover. Deixe-o desfrutar sua ignorância enquanto ainda pode.
- Senhor, ele a viu...
- Imaginação dele - insistiu o sr. Brunner. - A Névoa sobre os alunos e a equipe será suficiente para convencê-lo disso.
- Senhor, eu... eu não posso fracassar nas minhas tarefas de novo. - A voz de Grover estava embargada de emoção. – Sabe o que isso significaria.
- Você não fracassou, Grover - disse o sr. Brunner gentilmente. - Eu deveria tê-la visto como ela era. Agora vamos apenas nos preocupar em manter Percy vivo até o próximo outono...
O livro de mitologia caiu da minha mão e bateu no chão com um ruído surdo.
O sr. Brunner silenciou.
Com o coração disparado, peguei o livro e voltei pelo corredor.
Uma sombra deslizou pelo vidro iluminado da porta da porta de Brunner, a sombra de algo muito mais alto do que meu professor de cadeira de rodas, segurando alguma coisa suspeitamente parecida com o arco de um arqueiro.
Abri a porta mais próxima e me esgueirei para dentro.
Alguns segundos depois ouvi um lento clop-clop-clop, como, blocos de madeira abafados, depois um som como o de um animal farejando bem na frente da minha porta. Um grande vulto escuro parou diante do vidro e depois seguiu adiante.
Uma gota de suor escorreu por meu pescoço.
Em algum lugar no corredor, o sr. Brunner falou.
- Nada - murmurou ele. - Meus nervos não andam to bons desde o solstício de inverno.
- Nem os meus - disse Grover. - Mas eu podia ter jurado...
-Volte para o dormitório - disse-lhe o sr. Brunner. - tem um longo dia de provas amanhã.
- Nem me lembre.
As luzes se apagaram na sala do sr. Brunner.
Aguardei no escuro pelo que pareceu uma eternidade.
Por fim, me esgueirei para o corredor e subi de volta para o dormitório.
Grover estava deitado na cama, estudando as anotações para a prova de latim como se tivesse estado lá a noite inteira.
- Ei! - disse ele, com olhar de sono. - Vai estar preparado para a prova?
Não respondi.
- Está com uma cara horrível. - Ele franziu a testa. -Tudo bem?
- Só estou cansado.
Virei-me para que ele não pudesse perceber minha expressão e comecei a me preparar para dormir.
Não entendi o que tinha ouvido lá embaixo. Queria acreditar que havia imaginado aquilo tudo.
Mas uma coisa estava clara: Grover e o sr. Brunner estavam falando de mim pelas costas. Achavam que eu corria algum tipo de perigo.
Na tarde seguinte, quando estava saindo da prova de latim de três horas, atordoado com todos os nomes gregos e romanos que tinha escrito errado, o sr. Brunner me chamou de volta.
Por um momento, fiquei preocupado achando que ele descobrira minha bisbilhotice na noite anterior, mas não parecia ser esse o problema.
- Percy - disse ele. - Não fique desanimado por deixar Yancy. É... é para o seu bem.
Seu tom era gentil, mas ainda assim as palavras me deixaram sem graça. Embora ele estivesse falando baixo, os que terminavam a prova podiam ouvir. Nancy Bobofit me lançou um sorriso falso e, fez pequenos movimentos de beijo com os lábios.
Eu murmurei:
- Está bem, senhor.
- Quer dizer... - O sr. Brunner andou com a cadeira para trás e para frente, como se não tivesse certeza do que falar. - Este não é o lugar certo para você. Era apenas uma questão de tempo.
Meus olhos ardiam.
Ali estava meu professor favorito, na frente da classe, me dizendo que eu não era capaz. Depois de falar o ano todo que acreditava em mim, agora me dizia que eu estava destinado a ser expulso.
- Certo - disse eu, tremendo.
- Não, não - disse o sr. Brunner. - Ah, que droga. O que eu estava tentando dizer... é que você não é normal, Percy. Não é nada ser...
- Obrigado - soltei. - Muito obrigado, senhor, por me lembrar.
- Percy...
Mas eu já tinha ido.
No último dia de aulas, enfiei minhas roupas na mala.
Os outros garotos estavam fazendo piadas, falando sobre os planos para as férias. Um deles ia fazer trilha na Suíça. Outro faria um cruzeiro de um mês pelo Caribe. Eram delinqüentes juvenis como eu, mas delinqüentes juvenis ricos. Os papais eram executivos, embaixadores ou celebridades. Eu era um joão-ninguém, de uma família de joões-ninguém.
Eles me perguntaram o que ia fazer no verão, e eu disse que voltaria para a cidade.
O que não lhes contei foi que ia arranjar um trabalho de verão passeando com cachorros ou vendendo assinaturas de revistas, e passar o tempo livre pensando em onde iria estudar no outono.
- Ah - disse um dos garotos. - Legal.
Eles voltaram à conversa como se eu não existisse.
A única pessoa de quem tinha medo de me despedir era Grover, mas do jeito como as coisas aconteceram, eu nem precisei. Ele havia comprado uma passagem para Manhattan no mesmo onibus Greyhound que eu, então lá estávamos nós, juntos outra vez, indo para a cidade.
Durante toda a viagem de ônibus, Grover olhava nervoso para o corredor, observando os outros passageiros. Ocorreu-me que ele sempre agia de modo nervoso e inquieto quando saíamos de Yancy, como se esperasse que algo ruim fosse acontecer. Antes, eu achava que ele tinha medo de que o provocassem. Mas não havia ninguém para fazer isso no Greyhound.
Finalmente, não pude mais agüentar.
- Procurando Benevolentes?
Grover quase pulou do assento.
- O que... o que você quer dizer?
Confessei ter ouvido a conversa dele com o sr. Brunner na noite anterior ao dia da prova.
O olho de Grover estremeceu.
- Quanto você ouviu?
- Ah... não muito. O que é o prazo final do solstício de verão?
Ele se esquivou.
- Olhe Percy... Eu só estava preocupado com você, entende? Quer dizer, tendo alucinações com professoras de matemática demoníacas...
- Grover...
- E eu estava dizendo ao sr. Brunner que talvez você estivesse muito estressado, ou coisa assim, porque não havia uma pessoa chamada sra. Dodds e...
- Grover, você mente muito mal mesmo.
As orelhas dele ficaram cor-de-rosa.
Do bolso da camisa, ele pescou um cartão de visitas encardido.
- Pegue isto, certo? Para o caso de você precisar de mim este verão.
O cartão tinha uma escrita floreada, que era um terror para os meus olhos disléxicos, mas por fim consegui identificar coisa como:
Grover Underwood
Guardião
Colina meio Sangue
Long Island, Nova York
(800) 009 -0009
- O que é Colina Meio...
- Não fale alto! — ganiu. — É meu, ah... endereço de verão.
Meu coração desabou. Grover tinha uma casa de veraneio. Eu nunca imaginara que a família dele poderia ser tão rica quanto as dos outros em Yancy.
- Certo - falei, mal-humorado. - Tá, se eu quiser uma visita à sua mansão.
Ele assentiu.
- Ou... ou se você precisar de mim.
- Por que iria precisar de você?
Saiu mais rude do que eu pretendia.
Grover ficou com a cara toda vermelha.
- Olhe, Percy, a verdade é que eu... eu tenho, de certo modo, que proteger você.
Olhei fixamente para ele.
Durante o ano inteiro me meti em brigas para manter os valentões longe dele. Perdi o sono temendo que, sem mim, ele fosse apanhar no ano que vem. E ali estava Grover agindo como se fosse ele a me defender.
- Grover – disse eu -, do que exatamente você está me protegendo?
Houve um tremendo barulho de algo sendo triturado embaixo dos nossos pés. Uma fumaça preta saiu do painel e o ônibus inteiro foi tomado por um cheiro de ovo podre. O motorista praguejou e levou o Greyhound com dificuldade até o acostamento.
Depois de alguns minutos fazendo alguns sons metálicos no compartimento do motor, o motorista anunciou que teríamos de descer. Grover e eu saímos em fila com todos os outros.
Estávamos em um trecho de estrada rural - um lugar que a gente nem notaria se não tivesse enguiçado lá. Do nosso lado da estrada não havia nada além de bordos e lixo jogado pelos carros que passavam. Do outro lado, depois de atravessar quatro pistas de asfalto que refletiam uma claridade trêmula com o calor da tarde, havia uma banca de frutas como as de antigamente.
As coisas à venda pareciam realmente boas: caixas transbordando de cerejas e maçãs vermelhas como sangue, nozes e damascos, jarros de sidra dentro de uma tina com pés em forma de patas, cheias de gelo. Não havia fregueses, só três velhas senhoras sentadas em cadeiras de balanço à sombra de um bordo, tricotando o maior par de meias que eu já tinha visto.
Quer dizer, aquelas meias eram do tamanho de suéteres, mas eram obviamente meias. A senhora dadireita tricotava uma delas. A da esquerda a outra. A do meio segurava uma enorme cesta de la azul brilhante.
As tres mulheres pareciam muito velhas, com o rosto palido e enrugado como fruta seca, cabelo prateado preso atras com lenco branco, bracos ossudos espetados para fora de vestidos de algodao palido.
A coisa mais esquisita era que elas pareciam olhar diretamente para mim.
Encarei Grover para comentar isso e vi que seu rosto tinha ficado branco. O nariz tremia.
- Grover? - disse eu. - Ei, cara...
- Diga que elas nao estao olhando para voce. Estao, nao e?
- Estao. Esquisito, nao? Voce acha que aquelas meias serviriam em mim?
- Nao tem graca, Percy. Nao tem graca nenhuma.
A velha do meio pegou uma tesoura imensa - dourada e prateada, de laminas longas, como uma tosquiadeira. Ouvi Grover tomar folego.
- Vamos entrar no onibus - ele me disse. - Venha.
- O que? - disse eu. - La dentro esta fazendo quinhentos graus.
- Venha! - Ele forcou a porta e subiu, mas eu fiquei embaixo.
Do outro lado da estrada, as velhas ainda olhavam para mim. A do meio cortou o fio de la, e posso jurar que ouvi aquele ruido cruzar as quatro pistas de transito. As duas amigas dela enrolaram as meias azuis e me fizeram imaginar para quem seria aquilo - o Pe Grande ou o Godzilla.
Na traseira do onibus, o motorista arrancou um grande pedaco de metal fumegante do compartimento do motor. O onibus estremeceu e o motor voltou a vida, roncando.
Os passageiros aplaudiram.
- Tudo em ordem! - gritou o motorista. Ele bateu no onibus com o chapeu. - Todo mundo para dentro!
Quando ja estavamos a caminho, comecei a me sentir como se tivesse pego uma gripe.
Grover nao parecia muito melhor. Estava tremendo e batendo os dentes.
- Grover?
- Sim?
- O que me diz?
Ele enxugou a manga da camisa.
- Percy, o que voce viu la atras, na banca de frutas?
- Voce quer dizer, aquelas velhas? O que ha com elas, cara? Elas nao sao com... a sra. Dodds, sao?
A expressao dele era dificil de interpretar, mas tive a sensacao de que as velhas da banca de frutas eram algo muito, muito pior do que a sra. Dodds. Grover disse:
-So me diga o que voce viu.
- A do meio pegou uma tesoura e cortou o fio.
Ele fechou os olhos e fez um gesto com os dedos parecido com o sinal-da-cruz, mas nao era isso. Era outra coisa, algo um tanto... mais antigo.
Ele disse:
- Voce a viu cortar o fio?
-Sim. E dai? - Mas mesmo enquanto dizia isso, ja sabia que era algo importante.
- Isso nao esta acontecendo - murmurou Grover. Ele comecou a morder o dedao. - Nao quero que seja como na ultima vez.
- Que ultima vez?
- Sempre na sexta serie. Eles nunca passam da sexta.
- Grover - disse eu, porque ele estava realmente comecando a me assustar -, do que voce esta falando?
- Deixe que eu va com voce da estacao do onibus ate sua casa. Prometa.
Aquele me pareceu um pedido estranho, mas prometi.
- E uma supersticao ou coisa assim? . perguntei.
Nenhuma resposta.
- Grover... aquele corte no fio. Significa que alguem vai morrer?
Ele olhou para mim com tristeza, como se ja estivesse escolhendo o tipo de flores que eu gostaria de ter em meu caixao.
TRES . Grover de repente perde as calcas.
Hora da confissao: descartei Grover assim que chegamos ao terminal rodoviario.
Eu sei, eu sei. Foi rude. Mas Grover estava me deixando fora de mim, me olhando como se eu fosse um homem morto, murmurando: \por que sempre tem de ser na sexta serie?.
Sempre que Grover ficava nervoso, sua bexiga entrava em acao, portanto nao fiquei surpreso quando, assim que descemos do onibus, ele me fez prometer que o esperaria e foi direto para o banheiro. Em vez de esperar, peguei minha mala, sai discretamente e tomei o primeiro taxi saindo do Centro.
- Cento e quatro Leste com a Primeira Avenida . disse ao motorista.
*****
Uma palavra sobre a minha mae, antes que voce a conheca.
Seu nome e Sally Jackson e ela e a melhor pessoa do mundo, o que apenas prova minha teoria de que as melhores pessoas sao as mais azaradas. Os pais dela morreram em um desastre de aviao quando estava com cinco anos, e ela foi criada por um tio que nao lhe dava muita bola. Queria ser escritora, assim passou o curso de ensino medio trabalhando e economizando dinheiro para pagar uma faculdade com um bom programa de oficinas literarias. Entao o tio teve cancer e ela precisou abandonar a escola no ultimo ano para cuidar dele. Depois que ele morreu, ela ficou sem dinheiro nenhum, sem familia e sem diploma.
A unica coisa boa que lhe aconteceu foi conhecer meu pai.
Nao tenho nenhuma lembranca dele, apenas essa especie de sensacao calorosa, talvez o mais leve resquicio de seu sorriso. Minha mae nao gosta de falar sobre ele porque isso a deixa triste. Ela nao tem fotografias.
Veja bem, eles nao eram casados. Ela me contou que ele era rico e influente, e o relacionamento deles era um segredo. Entao um dia ele zarpou pelo Atlantico em alguma jornada e nunca mais voltou.
Perdido no mar, minha mae me contou. Nao morto. Perdido no mar.
Ela vivia de trabalhos esporadicos, estudava a noite para tirar o diploma de ensino medio e me criou sozinha. Nunca se queixava ou ficava zangada. Nem uma so vez. Mas eu sabia que nao era uma crianca facil.
Acabou se casando com Gabe Ugliano, que foi simpatico nos primeiros trinta segundos em que o conhecemos e depois mostrou quem realmente era, um imbecil de marca maior. Quando eu era pequeno apelidei-o de Gabe Cheiroso. Sinto muito, mas e a verdade. O cara fedia a pizza de alho embolorada enrolada num calcao de ginastica.
Em nosso fogo cruzado, tornavamos a vida da minha mae bem dificil. O modo como Gabe Cheiroso a tratava, o jeito como ele e eu nos relacionavamos... bem, um bom exemplo e minha chegada em casa.
Entrei em nosso pequeno apartamento, esperando que minha mae ja tivesse voltado do trabalho. Em vez disso, Gabe Cheiroso estava na sala de estar, jogando poquer com seus cupinchas. Na televisao, o canal de esportes estava no voluma maximo. Havia batatinhas e latas de cerveja espalhadas pelo tapete.
Mal erguendo os olhos, ele disse com o cigarro na boca:
- Entao voce esta em casa.
- Onde esta a minha mae?
- Trabalhando . disse ele. . Voce tem alguma grana?
E foi isso. Nada de Bem-vindo ao lar. Bom ver voce. O que fez nos ultimos seis meses?
Gabe tinha engordado. Parecia uma morsa sem tromba com roupas de brecho. Tinha uns tres fios de cabelo na cabeca, todos penteados por cima da careca, como se isso o deixasse bonito ou coisa assim.
Era gerente do Hipermercado de Eletronica, no Queens, mas passava a maior parte do tempo em casa. Nao sei por que ainda nao tinha sido demitido. Ele so fica recebendo o pagamento, gastando o dinheiro em charutos que me dao nauseas e em cervejas, e claro. Sempre cerveja. Toda vez que eu estava em casa ele esperava que eu lhe fornecesse fundos para jogar. Chamava isso de nosso \Segredo de Homem.. Isto e, se eu contasse para minha mae, ele me quebrava a cara.
- Nao tenho grana nenhuma . falei.
Ele ergue uma sobrancelha oleosa.
Gabe era capaz de farejar dinheiro como um cao de caca, o que era surpreendente, ja que seu prorpio cheiro deveria encobrir qualquer outro.
- Voce pegou um taxi no terminal de onibus . disse ele. . Provavelmente pagou com uma nota de vinte. Recebeu seis ou sete dolares de troco. Alguem que espera viver embaixo deste teto deveria ser capaz de se sustentar. Estou certo, Eddie?
Eddie, o sindico do predio, olhou para mim com uma ponta de solidariedade.
- Vamos, Gabe . disse ele. . O garoto acabou de chegar.
- Estou certo? . repetiu Gabe.
Eddie fez uma careta para sua tigela de pretzels. Os outros dois caras soltaram juntos seus gases.
- Tudo bem . disse eu. . Tirei um maco de dolares do bolso e joguei o dinheiro em cima da mesa. . Tomara que voce perca.
- Seu boletim chegou, Geninho! . gritou ele as minhas costas. . Eu nao ficaria tao metido!
Bati a porta do meu quarto, que na verdade nao era meu. Durante os meses de aulas era a \sala de estudos. de Gabe. Ele nao \estudava. coisa nenhuma la, exceto revistas de automoveis, mas adorava socar as minhas coisas no armario, largar as botas enlameadas no peitoril da janela e fazer o possivel para deixar o lugar com cheiro de sua colonia detestavel, charutos e cerveja choca.
Larguei a mala em cima da cama. Lar doce lar.
O cheiro de Gabe era quase pior que os pesadelos com a sra. Dodds ou o som da tesoura daquela velha enrugada cortando o fio de la.
Mas assim que pensei naquilo, minhas pernas bambearam. Lembrei-me da expressao de panico de Grover . como ele me fez prometer que nao iria para casa sem ele. Um calafrio repentino me percorreu. Era como se alguem . alguma coisa . estivesse procurando por mim naquele momento, talvez subindo pesadamente a escada, com garras compridas e horrendas crescendo.
Entao ouvi a voz da minha mae.
- Percy?
Ela abriu a porta do quarto e meus medos se foram.
A simples entrada de minha mae no quarto ja consegue me fazer sentir bem. Seus olhos brilham e mudam de cor com luz. O sorriso e quente como uma manta. Ela tem alguns poucos fios grisalhos misturados com os longos cabelos castanhos, mas nunca penso nela como uma pessoa velha. Quando me olha, e como
se estivesse vendo todas as coisas boas em mim, nenhuma das ruins. Nunca a ouvi levantar a voz ou dizer uma palavra indelicada para ninguem, nem mesmo para mim ou Gabe.
- Ah, Percy. - Ela me abracou apertado. - Eu nao acredito. Voce cresceu desde o Natal!
O uniforme vermelho, branco e azul, da Doce America, tinha cheiro das melhores coisas do mundo: chocolate, alcacuz e tudo o mais que ela vendia na doceria da Grande Estacao Central. Tinha levado para mim um belo saco de \amostras gratis., como sempre fazia quando eu ia para casa.
Sentamos juntos na beirada da cama. Enquanto eu atacava os doces de mirtilo, ela passava a mao no meu cabelo e queria saber tudo o que eu nao havia escrito nas cartas. Nada mencionou sobre o fato de eu ter sido expulso. Nao parecia se importar com isso. Mas eu estava ok? Seu menininho estava bem?
Eu disse a ela que estava me sufocando, pedi que desse um tempo e tal, mas, secretamente, estava feliz demais em ve-la.
Do outro comodo, Gabe berrou:
- Ei, Sally! Que tal um pouco de pasta de feijao, hein?
Eu rangi os dentes.
Minha mae e a mulher mais gentil do mundo. Deveria ter se casado com um milionario, nao com um imbecil como Gabe.
Por ela, tentei parecer otimista em relacao aos meus ultimos dias na Academia Yancy. Disse-lhe que nao estava muito chateado com a expulsao. Dessa vez, conseguira durar quase o ano inteiro.
Eu havia feito novos amigos. Tinha me saido muito bem em latim. E, honestamente, as brigas nao tinham sido tao ruins com disera o diretor. Eu tinha gostado da Academia Yancy. De verdade. Enfeitei tanto os acontecimentos do ano que quase convenci a mim mesmo. Comecei a ficar com a voz embargada so de pensar em Grover e no sr. Brunner. Ate Nancy Bobofit de repente nao pareceu assim tao ma. Ate aquela excursao ao museu... - O que? - perguntou minha mae. Seus olhos puxaram pela minha consciencia, tentando arrancar os segredos. - Alguma coisa assustou voce? - Nao, mamae. Eu me senti mal por mentir, queria contar a ela sobre a sra. Dodds e as tres velhas com o fio de la, mas achei que aqui ia parecer bobagem. Ela apertou os labios. Sabia que eu estava escondendo alguma coisa, mas nao quis me pressionar. - Tenho uma surpresa para voce - disse ela. - Nos vamos a praia. Meus olhos se arregalaram. - Montauk? - Tres noites... no mesmo chale. - Quando? Ela sorriu. - Assim que eu me trocar. Mal pude acreditar. Minha mae e eu nao tinhamos ido a Montauk nos ultimos dois veroes porque Gabe dissera que nao havia dinheiro suficiente.
Gabe apareceu no vao da porta e rosnou. - Pasta de feijao, Sally. Voce nao ouviu? Tive vontade de dar-lhe um soco, mas meus olhos encontraram os de minha mae e entendi que ela estava me oferecendo um acordo: ser gentil com Gabe so um pouquinho. So ate ela estar pronta para ir para Montauk. Entao sairiamos dali. - Eu ja estava a caminho, meu bem . disse ela a Gabe. . Estavamos so conversando sobre a viagem. Os olhos de Gabe se apertaram. - A viagem? Voce quer dizer que estava falando disso a serio? - Eu sabia - murmurei. - Ele nao vai nos deixar ir. - E claro que vai - disse minha mae calmamente. - Seu padrasto so esta preocupado com o dinheiro. E tudo. Alem disso - acrescentou -, Gabriel nao tera de se contentar com pasta de feijao. Vou fazer para ele uma pasta de sete camadas suficiente para todo o fim de semana. Guacamole. Creme azedo. Servico completo. Gabe amanciou um pouco. - Entao esse dinheiro para viagem... vai sair do seu orcamento para roupas, certo? - Sim, meu bem - disse minha mao. - E voce nao vai com meu carro para nenhum lugar, so vai usar na ida e na volta. - Seremos muito cuidadosos. Gabe cocou seu queixo duplo. - Talvez se voce andar logo com essa pasta de sete camadas... E talvez se o garoto pedir desculpas por interromper meu jogo de poquer... Talvez se eu chutar voce no seu ponto sensivel, pensei. E fizer voce cantar com voz de soprano por uma semana. Mas os olhos da minha mae me advertiram para nao deixa-lo zangado. Por que ela aturava aquele cara? Eu quis gritar. Por que ela se importava com o que ele pensava? - Desculpe - murmurei. - Sinto muito ter interrompido seu importantissimo jogo de poquer. Por favor, volte a ele agora mesmo. Os olhos de Gabe se estreitaram. O cerebro minusculo provavelmente estava tentando detectar o sarcasmo na minha frase. - Esta bem, seja la o que for - convenceu-se. E voltou para o jogo. - Obrigada, Percy - disse minha mae. - Depois que chegarmos a Montauk, vamos conversar sobre.. o que quer que voce tenha se esquecido de me contar, certo? Por um momento, pensei ter visto ansiedade nos olhos dela - o mesmo medo que vira em Grover na viagem de onibus -, como se minha mae tambem tivesse sentindo um estranho calafrio no ar. Mas entao o sorriso dela voltou e conclui que devia estar enganado. Ela despenteou meu cabelo e foi
fazer a pasta de sete camadas para Gabe. ***** Uma hora depois estavamos prontos para partir. Gabe interrompeu o jogo de poquer por tempo suficiente para me observar arrastando as malas da minha mae para o carro. Ficou se queixando e se lamentando por ficar sem a comida dela - e mais importante, sem seu Camaro 78 - durante todo o fim de semana. - Nem um arranhao nesse carro, Geninho - advertiu-me quando eu estava carregando a ultima mala. - nem um arranhaozinho. Como se eu fosse dirigir aos doze anos. Mas isso nao importa para Gabe. Se alguma gaivota fizesse coco na pintura, ele arranjaria um jeito de me culpar. Observando-o voltar em seu passo desajeitado para o predio, fiquei tao zangado que fiz uma coisa que nao consigo explicar. Quando Gabe chegou a porta de entrada, fiz um gesto com a mao que tinha visto Grover fazer no onibus, uma especie de gesto para afastar o mal, a mao em garra sobre o coracao e depois um movimento de empurrar na direcao de Gabe. A porta de tela bateu tao forte que o acertou no traseiro e o mandou voando ate a escada, como se tivesse sido disparado por um canhao. Talvez tenha sido apenas o vento, ou algum acidente maluco com as dobradicas, mas nao fiquei la tempo suficiente para descobrir. Entrei no Camaro e disse para minha mae pisar fundo. ***** Nosso chale alugado ficava na margem sul, la na ponta de Long Island. Era uma pequena cabana de cor clara com cortinas desbotadas, quase enterrada nas dunas. Havia sempre areia nos lencois e aranhas nos armarios, e na maior parte do tempo o mar estava gelado demais para nadar. Eu adorava o lugar. Iamos la desde que eu era bebe. Minha mae ia ainda havia mais tempo. Ela nunca disse exatamente, mas eu sabia por que a praia era especial. Era o lugar onde conhecera meu pai. A medida que nos aproximavamos de Montauk, ela parecia ir ficando mais jovem, os anos de preocupacao e trabalho desaparecendo do rosto. Os olhos ficavam da cor do mar. Chegamos la ao por-do-sol, abrimos todas as janelas do chale e passamos por nossa rotina de limpeza. Caminhamos pela praia, demos salgadinhos de milho as gaivotas e mascamos jujubas azuis, caramelos azuis e todas as outras amostras gratis que minha mae levara do trabalho.
Acho que eu deveria explicar a comida azul.
Veja bem, Gabe uma vez disse a minha mae que isso nao existia. Eles tiveram uma discussao, que pareceu uma coisinha de nada na epoca. Mas, desde entao, minha mae fez tudo o que era possivel comer em azul. Ela assava bolos de aniversarios azuis. Batia vitaminas com mirtilos azuis. Comprava tortilhas de milho azul e levava para casa balas azuis da loja. Isso - junto com o fato de conservar o nome de solteira, Jackson, em vez de se chamar sra. Ugliano - era prova de que ela nao tinha sido totalmente domada por Gabe. Tinha uma inclinacao para rebeldia, como eu.
Quando escureceu, acendemos uma fogueira. Assamos o cachorro-quente e marshmallows. Minha mae contou historias sobre quando ela era crianca, antes de os pais morrerem no acidente de aviao. Contou-me sobre os livros que queria escrever um dia, quando tivesse dinheiro suficiente para largar a doceria.
Finalmente, reuni coragem para perguntar sobre o que sempre me vinha a cabeca quando iamos a Montauk . meu pai. Os olhos dela ficaram cheios dfagua. Imaginei que iria me contar as mesmas coisas de sempre, mas nunca me cansava de ouvi-las.
- Ele era gentil, Percy . disse ela. . Alto, bonito e forte. Mas gentil tambem. Voce tem o cabelo dele, voce sabe, e os olhos verdes.
Mamae pegou uma jujuba azul do saco de doces.
- Gostaria que ele pudesse ve-lo, Percy. Ficaria muito orgulhoso.
Eu me perguntei como ela podia dizer aquilo. O que havia de tao bom a meu respeito? Um menino dislexico, hiperativo, com um boletim D+, expulso da escola pela sexta vez em seis anos.
- Que idade eu tinha? - perguntei. - Quer dizer... quando ele se foi?
Ela olhou para as chamas.
- Ele so ficou comigo por um verao, Percy. Bem aqui nesta praia. Neste chale.
- Mas... ele me conheceu quando eu era bebe.
- Nao, meu bem. Ele sabia que eu estava esperando um bebe, mas nunca o viu. Teve de partir antes de voce nascer.
Tentei conciliar o fato de que eu parecia me lembrar de... alguma coisa sobre meu pai. Uma sensacao calorosa. Um sorriso.
Sempre presumira que ele havia me visto quando bebe. Minha mae nunca dissera exatamente isso, mas ainda assim eu achava que tinha acontecido. Saber agora que ele nunca me viu...
Fiquei com raiva do meu pai. Talvez fosse uma bobagem, mas eu me ressenti por ele ter partido naquela viagem oceanica, por nao ter tido coragem para se casar com minha mae. Ela nos deixara e agora estavamos presos ao gabe Cheiroso.
- Voce vai me mandar embora de novo? - perguntei a ela. - para outro internato?
Ela puxou um marshmallow do fogo.
- Eu nao sei, meu bem. - Sua voz soou muito seria. - Acho... acho que teremos de fazer alguma coisa.
- Por que voce nao me quer me ver por perto? - Eu me arrependi das palavras assim que elas sairam.
Os olhos de minha mae ficaram marejados. Ela pegou minha mao e apertou com forca.
- Ah, Percy, nao. Eu... eu preciso, meu bem. Para seu proprio bem. Eu tenho de mandar voce para longe.
Suas palavras me lembraram o que o sr. Brunner tinha dito - que era melhor para mim deixar Yancy.
- Porque eu nao sou normal? - disse eu.
- Voce diz isso como se fosse uma coisa ruim, Percy. Mas nao se da conta do quanto voce e importante. Pensei que Yancy seria bastante longe. Pensei que voce finalmente estaria em seguranca.
- Em seguranca por que?
Os olhos dela encontraram os meus, e me veio uma enxurrada de lembrancas - todas esquisitas, assustadoras que sempre aconteciam, algumas que eu tentara esquecer.
Na terceira serie, um homem de capa de chuva preta me seguiu no recreio. Quando os professores ameacaram chamar a policia, ele foi embora resmungando, mas ninguem acreditou em mim quando contei que, embaixo do chapeu de aba larga, o homem tinha um olho so, bem no meio da testa.
Antes disso - uma lembranca realmente antiga. Eu estava na pre-escola, e uma professora acidentalmente me pos para dormir em um berco para dentro do qual uma cobra se arrastara. Minha mae gritou quando foi me buscar e me encontrou brincando com uma cobra flacida cheia de escamas, que eu de algum modo conseguira estrangular ate a morte com as minhas maos gordinhas de bebe.
Em cada uma das escolas, algo de horripilante acontecera, algo perigoso, e fui forcado a sair.
Eu sabia que devia contar a minha mae sobre as velhas na banca de frutas e a sra. Dodds no museu de arte, sobre a estranha alucinacao em que eu havia transformado a professora de matematica em po com uma espada. Mas nao consegui me forcar a contar. Tinha a sensacao esquisita de que a noticia iria acabar com nossa viagem a Montauk, e isso eu nao queria.
- Tentei manter voce tao perto de mim quanto pude - falou minha mae. - Eles me disseram que isso era um erro. Mas so havia uma outra opcao, Percy... o lugar para onde seu pai queria manda-lo. E eu simplesmente... simplesmente nao poderia aguentar ter de fazer isso.
- Meu pai queria que eu fosse para uma escola especial?
- Nao uma escola - disse ela suavemente. - Um acampamento de verao.
Minha cabeca estava girando. Por que meu pai - que nem sequer ficara por perto tempo suficiente para me ver nascer - teria falado com minha mae sobre um acampamento de verao? E, se isso era tao importante, por que ela nunca mencionara antes?
- Desculpe, Percy - continuou ela ao ver a expressao em meus olhos. - mas nao posso falar sobre isso. Eu... eu nao podia mandar voce para aquele lugar. Significaria dizer adeus a voce para sempre.
- Para sempre? Mas se e apenas um acampamento de verao...
Ela se voltou para o fogo, e eu percebi pela sua expressao que, se fizesse mais perguntas, ela comecaria a chorar.
*****
Naquela noite eu tive um sonho muito real.
Havia uma tempestade na praia, e dois belos animais, um cavalo branco e uma aguia dourada, estavam tentando matar uma ao outro a beira-mar. A aguia mergulhou e fez um talho no focinho do cavalo com suas garras enormes. O cavalo empinou e escoiceou as asas da aguia. Enquanto eles lutavam, o chao retumbou e uma voz monstruosa riu em algum lugar embaixo da terra, incitando os animais a lutarem arduamente.
Corri ate eles, sabendo que tinha de impedir que se matassem, mas eu corria em camera lenta. Sabia que iria chegar tarde demais. Vi a aguia mergulhar, o bico apontado para os grandes olhos do cavalo, e gritei: Nao!
Acordei assustado.
Do lado de fora, havia realmente uma tempestade, o tipo de tempestade que racha arvores e derruba casas. Nao havia nenhum cavalo nem aguia na praia, somente relampagos que criavam uma falsa luz do dia e ondas de seis metros golpeando as dunas como artilharia.
Com o trovao seguinte, minha mae acordou. Ela sentou na cama, os olhos arregalados, e disse:
- Furacao.
Eu sabia que aquilo era loucura. Nunca houve furacoes em Long Island tao cedo no verao. Mas o oceano parecia ter esquecido isso. Por cima dos rugidos do vento, ouvi um bramido distante, um som furioso, torturado, que fez meus cabelos se arrepiarem.
Depois um ruido muito mais proximo, como de malhos na areia. Uma voz desesperada - alguem gritando, esmurrando a porta do nosso chale.
Minha mae pulou da cama de camisola e abriu a porta de um safanao.
Grover estava la, emoldurado no vao da porta contra um fundo de chuva torrencial. Mas ele nao era... ele nao era exatamente o Grover.
- Procurei a noite toda - arquejou ele. - O que voce estava pensando?
Minha mae olhou para mim aterrorizada - nao com medo de Grover, mas da razao de sua chegada.
- Percy - disse ela, gritando para se fazer ouvir mais alto que a chuva. - O que aconteceu na escola? O que voce nao me contou?
Fiquei paralisado olhando para Grover. Nao conseguia entender o que estava vendo.
- O Zeu kai alloi theoi! - gritou ele. - Esta bem atras de mim! Voce nao contou a ela?
Eu estava chocado demais para registrar que ele acabara de praguejar em grego antigo, e eu tinha entendido perfeitamente. Estava chocado demais para me perguntar como Grover chegara ali sozinho no meio da noite. Porque Grover nao estava usando calcas - e onde deveriam estar as pernas dele... Onde deveriam estar as pernas dele...
Minha mae olhou para mim com expressao severa e falou em um tom que jamais usara antes:
- Percy. Conte-me agora!
Eu gaguejei algo sobre velhas senhoras na banca de frutas e a sra. Dodds, e minha mae ficou olhando para mim, o rosto mortalmente palido aos claroes dos relampagos.
- Vao para o carro. Voces dois. Vao!
Grover correu para o Camaro - mas ele nao estava exatamente correndo. Estava trotando, sacudindo seu traseiro peludo, e de repente sua historia sobre um disturbio muscular nas pernas fez sentido para mim. Entendi como ele podia correr tao depressa e ainda assim mancar quando andava.
Porque onde deveriam estar seus pes nao havia pes. Havia cascos fendidos.
QUATRO . Minha mae me ensina a tourear.
Arrancamos noite adentro por estradas rurais escuras. O vento golpeava o Camaro. A chuva acoitava o pera-brisa. Eu nao sabia como minha mae conseguia ver alguma coisa, mas ela mantinha o pe no acelerador.
Toda vez que um relampago produzia um clarao, eu olhava para Grover sentado ao meu lado no banco de tras e me perguntava se tinha ficado louco ou se ele estava usando algum tipo de calca felpuda. Mas nao, o cheiro era o mesmo que eu lembrava das excursoes do jardim-de-infancia para o zoologico infantil . lanolina, como o de la. O cheiro de um animal molhado de estabulo.
Tudo o que pude dizer foi:
- Entao, voce e minha mae... se conhecem?
Os olhos de Grover moveram-se rapidamente para o espelho retrovisor, embora nao houvesse carro nenhum atras de nos.
- Nao exatamente . disse El. . Quer dizer, nunca nos encontramos pessoalmente. Mas ela sabia que eu estava observando voce.
- Observando, a mim?
- Estava de olho em voce. Cuidando que estivesse bem. Mas eu nao estava fingindo ser seu amigo . acrescentou apressadamente. . Eu sou seu amigo.
- Ahn... o que e voce, exatamente?
- Isso nao importa neste momento.
- Nao importa? Da cintura para baixo, o meu melhor amigo e um burro...
Grover soltou um agudo e gutural:
- Beeeee!
Eu ja o tinha ouvido fazer aquele som antes, mas sempre achei que era um riso nervoso. Agora me dava conta de que era mais um berro irritado.
- Bode! - exclamou.
- O que?
- Eu sou um bode da cintura para baixo.
- Voce acaba de dizer que isso nao importa.
- Beeee! Alguns satiros poderiam pisotea-lo por causa de tamanho insulto!
- Opa. Espere. Satiros. Voce quer dizer como... os mitos do sr. Brunner?
- Aquelas velhas na banca de frutas eram um mito, Percy? A sra. Dodds era um mito?
- Entao voce admite que havia uma sra. Dodds!
- E claro.
- Entao por que...
- Quanto menos voce soubesse, menos monstros atrairia - disse Grover, como se aquilo fosse perfeitamente obvio. - Nos pusemos a Nevoa diante dos olhos humanos. Tinhamos esperancas de que voce achasse que a Benevolente era uma alucinacao. Mas nao adiantou. Voce comecou a perceber quem voce e.
- Quem eu... espere um minuto, o que voce quer dizer?
O estranho rugido ergueu-se novamente em algum lugar atras de nos, mais perto do que antes. O que quer que estivesse nos perseguindo ainda estava na nossa cola.
- Percy - disse minha mae -, ha muito a explicar e nao temos tempo suficiente. Precisamos por voce em seguranca.
- Em seguranca como? Quem esta atras de mim?
- Ah, nada demais - disse Grover, obviamente ainda ofendido com o comentario sobre o burro. -
Nao diga que eu nao avisei.
Meu nome e Percy Jackson.
Tenho doze anos de idade. Ate alguns meses atras, era aluno de um internato, na Academia Yancy, uma escola particular para criancas problematicas no norte do estado de Nova York.
Se eu sou uma crianca problematica?
Sim. Pode-se dizer isso.
Eu poderia partir de qualquer ponto da minha vida curta e infeliz para prova-lo, mas as coisas comecaram a ir realmente mal no ultimo mes de maio, quando nossa turma do sexto ano fez uma excursao a Manhattan . vinte e oito criancas alucinadas e dois professores em um onibus escolar amarelo indo para o Metropolitan Museum of Art, a fim de observar velharias gregas e romanas.
Eu sei, parece tortura. A maior parte das excursoes da Yancy era mesmo.
Mas o sr. Brunner, nosso professor de latim, estava guiando essa excursao, assim eu tinha esperancas.
O sr. Brunner era um sujeito de meia-idade em uma cadeira de rodas motorizada. Tinha o cabelo ralo, uma barba desalinhada e usava um casaco surrado de tweed que sempre cheirava a cafe. Talvez voce nao o achasse legal, mas ele contava historias e piadas e nos deixava fazer brincadeiras em sala. Tambem tinha uma impressionante colecao de armaduras e armas romanas, portanto era o unico professor cuja aula nao me fazia dormir.
Eu esperava que desse tudo certo na excursao. Pelo menos tinha esperanca de nao me meter em encrenca dessa vez.
Cara, como eu estava errado.
Entenda: coisas ruins me acontecem em excursoes escolares. Como na minha escola da quinta serie, quando fomos para o campo de batalha de Saratoga, e eu tive aquele acidente com um canhao da Revolucao Americana. Eu nao estava apontando para o onibus da escola, mas e claro que fui expulso do mesmo jeito.
E antes disso, na escola da quarta serie, quando fizemos um passeio pelos bastidores do tanque dos tubaroes do Mundo Marinho, e eu de, alguma forma, acionei a alavanca errada no passadico e nossa turma tomou um banho inesperado. E antes disso... Bem, ja da para voce ter uma ideia.
Nessa viagem, eu estava determinado a ser bonzinho.
Ao longo de todo o caminho para a cidade aguentei Nancy Bobofit, aquela cleptomaniaca ruiva e sardenta, acertando a nuca do meu melhor amigo, Grover, com pedacos de sanduiche de manteiga de amendoim com ketchup.
Grover era um alvo facil. Ele era magrelo. Chorava quando ficava frustrado. Devia ter repetido de ano muitas vezes, porque era o unico na sexta serie que tinha espinhas e uma barba rala comecando a nascer no queixo. E, ainda por cima, era aleijado. Tinha um atestado que o dispensava da Educacao Fisica pelo resto da vida, porque tinha algum tipo de doenca muscular nas pernas. Andava de um jeito engracado, como se cada passo doesse, mas nao se deixe enganar por isso. Voce precisa ve-lo correr quando era dia de enchilada na cantina.
De qualquer modo, Nancy Bobofit estava jogando bolinhas de sanduiche que grudavam no cabelo castanho cacheado dele, e ela sabia que eu nao podia revidar, porque ja estava sendo observado, sob o risco de ser expulso. O diretor me ameacara de morte com uma suspensao \na escola. (ou seja, sem poder assistir as aulas, mas tendo de comparecer a escola e ficar trancado numa sala fazendo tarefas de casa) caso alguma coisa ruim, embaracosa ou ate moderadamente divertida acontecesse durante a excursao.
- Eu vou mata-la . murmurei.
Grover tentou me acalmar.
- Esta tudo bem. Gosto de manteiga de amendoim.
Ele se esquivou de outro pedaco do lanche de Nancy.
- Agora chega. - Comecei a levantar, mas Grover me puxou de volta para o assento.
- Voce ja esta sendo observado - ele me lembrou. - Sabe que sera culpado se acontecer alguma coisa.
Quando me lembro daquilo, preferia ter acertado Nancy Bobofit no ato. A suspensao na escola nao teria sido nada em comparacao com a encrenca que eu estava prestes a me meter.
O sr. Brunner guiou o passeio pelo museu.
Ele foi na frente em sua cadeira de rodas, conduzindo-nos pelas grandes galerias cheias de ecos, passando por estatuas de marmore e caixas de vidro repletas de ceramica preta e laranja muito velha.
Eu ficava alucinado so de pensar que aquelas coisas tinham sobrevividos por dois mil, tres mil anos.
Ele nos reuniu em volta de uma coluna de pedra com quatro metros de altura e uma grande esfinge no topo, e comecou a explicar que aquilo era um marco tumular, uma estela, feita para uma menina mais ou menos da nossa idade. Contou-nos sobre as inscricoes laterais. Estava tentando ouvir o que ele tinha a dizer, porque era um pouco interessante, mas todos ao meu redor estavam falando, e cada vez que eu dizia para calarem a boca, a outra professora que nos acompanhava, a sra. Dodds, me olhava de cara feia.
A sra. Dudds era aquela professorinha de matematica da Georgia que sempre usava um casaco de couro preto, apesar de ter cinquenta anos de idade. Parecia ma o bastante para entrar com uma moto Harley bem dentro do seu armario. Tinha chegado em Yancy no meio do ano, quando nossa ultima professora de matematica teve um colapso nervoso.
Desde o primeiro dia, a sra. Dodds adorou Nancy Bobofit e concluiu que eu tinha sido gerado pelo diabo. Ela me apontava o dedo torto e dizia: \Agora, meu bem., com a maior docura, e eu sabia que ia ficar detido depois da aula por um mes.
Certa vez, depois que ela me fez apagar as respostas em antigos livros de exercicios de matematica ate meia-noite, disse a Grover que achava que a sra. Dodds nao era gente. Ele olhou para mim, muito serio, e disse:
- Voce esta certissimo.
O sr. Brunner continuou falando sobre arte funeraria grega.
Finalmente, Nancy Bobofit, abafando o riso, falou algo sobre o sujeito pelado na estela, e eu me virei e disse:
- Quer calar a boca?
Saiu mais alto do que eu pretendia.
O grupo inteiro deu risada. O Sr. Brunner interrompeu seu historia.
- Sr. Jackson - disse ele -, fez algum comentario?
Meu rosto estava completamente vermelho. Eu disse:
- Nao, senhor.
O sr. Brunner apontou para uma das figuras na estela.
- Talvez possa nos dizer o que esta figura representa.
Olhei para a imagem entalhada e senti uma onda de alivio, porque de fato a reconhecera.
- E Cronos comendo os filhos, certo?
- Sim . disse o sr. Brunner, e obviamente nao estava satisfeito. . E ele fez isso porque...
- Bem... - eu quebrei a cabeca para me lembrar. - Cronos era o deus-rei e...
- Rei? - perguntou o sr. Brunner.
- Tita - eu me corrigi. - E... ele nao confiava nos filhos, que eram os deuses. Entao, hum, Cronos os comeu, certo? Mas sua esposa escondeu o bebe Zeus e deu a Cronos uma pedra para comer no lugar dele. E depois, quando Zeus cresceu, ele enganou o pai, Cronos, e o fez vomitar seus irmaos e irmas.
- Eca! - disse uma das meninas atras de mim.
- ...e entao houve aquela grande briga entre os deuses e os titas - continuei -, e os deuses venceram.
Algumas risadinhas do grupo.
Atras de mim, Nancy Bobofit murmurou para uma amiga:
- Como se fossemos usar isso na vida real. Como se fossem falar nas nossas entrevistas de emprego: \Por favor explique por que Cronos comeu seus filhos..
- E por que, Sr. Jackson - disse o sr. Brunner -, parafraseando a excelente pergunta da Srta. Bobofit, isso importa na vida real?
- Se ferrou . murmurou Grover.
- Cala a boca - chiou Nancy, a cara ainda mais vermelha que seu cabelo.
Pelo menos Nancy tambem foi enquadrada. O sr. Brunner era o unico que a pegava dizendo algo errado. Tinha ouvidos de radar.
Pensei na pergunta dele, e encolhi os ombros.
- Nao sei, senhor.
- Entendo. - O sr. Brunner pareceu desapontado. - Bem, meio ponto, Sr. Jackson. Zeus, na verdade, deu a Cronos uma mistura de mostarda e vinho, o que o fez vomitar as outras cinco criancas, que, e claro, sendo deuses imortais, estavam vivendo e crescendo sem serem digeridas no estomago do tita. Os deuses derrotaram o pai deles, cortando-no em pedacos com sua propria foice e espalharam os restos no Tartaro, a parte mais escura do Mundo Inferior. E com esse alegre comentario, e hora do almoco. Sra. Dodds, quer nos levar de volta para fora?
A turma foi retirada, as meninas segurando a barriga, os garotos empurrando uns aos outros e agindo como boboes.
Grover e eu estavamos prestes a segui-los quando o sr. Brunner disse:
- Sr. Jackson.
Eu sabia o que vinha a seguir.
Disse a Grover para ir andando. Entao me voltei para o professor.
- Senhor?
O sr. Brunner tinha aquele olhar que nao deixa a gente ir embora - olhos castanhos intensos que poderiam ter mil anos de idade e ja ter visto de tudo.
- Voce precisa aprender a responder a minha pergunta - disse ele.
- Sobre os titas?
- Sobre a vida real. E como seus estudos se aplicam a ela.
- Ah.
- O que voce aprende comigo - disse ele - e de uma importancia vital. Espero que trate o assunto como tal. De voce, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson.
Eu queria ficar zangado, aquele sujeito me pressionava demais.
Quer dizer, claro, era legal em dias de torneio, quando ele vestia uma armadura romana, bradava \Ole!. e nos desafiava, ponta de espada contra o giz a correr para o quadro-negro e citar pelo nome cada pessoa grega ou romana que ja viveu, o nome de sua mae e que deuses cultuavam. Mas o sr. Brunner esperava que eu fosse tao bom quanto todos os outros a despeito do fato de que tenho dislexia e transtorno Apenas o Senhor dos Mortos e alguns dos seus asseclas mais sedentos de sangue.
- Grover!
- Desculpe sra. Jackson. Poderia dirigir mais depressa, por favor?
Tentei envolver minha mente no que estava acontecendo, mas não consegui. Sabia que aquilo não era um sonho. Eu não tinha imaginação. Jamais poderia sonhar algo tão estranho.
Minha mãe fez uma curva fechada para a esquerda. Desviamos para uma estrada mais estreita, passando com velocidade por casas de fazendas às escuras, colinas cobertas de árvores e placas que diziam ―COLHA SEUS PRÓPRIOS MORANGOS‖ sobre cercas brancas.
- Aonde estamos indo? - perguntei.
- Para o acampamento de verão de que falei. - A voz de minha mãe estava tensa; por mim, ela estava tentando não parecer assustada. - O lugar para onde seu pai queria mandá-lo.
- O lugar para onde você não queria que eu fosse.
- Por favor, querido - implorou ela. - Isso já é bem difícil. Tente entender. Você está em perigo.
- Porque umas velhas senhoras cortaram um fio de lã.
- Aquilo não eram velhas senhoras - disse Grover. - Eram as Parcas. Você sabe o que significa... o fato de elas aparecerem na sua frente? Elas só fazem isso quando você está prestes a... quando alguém está prestes a morrer.
- Epa! Você disse ―você‖.
- Não, eu não disse. Eu disse, ―alguém‖.
- Você quis dizer ―você‖. Ou seja, eu.
- Eu quis dizer você como quem diz ―alguém‖. Não você, Percy, mas você, qualquer um.
- Meninos! - disse minha mãe.
Ela puxou o volante com força para a direita e eu tive um vislumbre de um vulto do qual ela se desviara - uma forma escura e ondulada, agora perdida na tempestade atrás de nós.
- O que foi aquilo? - perguntei.
- Estamos quase lá - disse minha mãe ignorando a pergunta. - Mais um quilômetro e meio. Por favor. Por favor. Por favor.
Eu não sabia onde era lá, porém me vi inclinando-me para a frente na expectativa, querendo que chegássemos logo.
Do lado de fora, nada além de chuva e escuridão - o tipo de campos vazios que a gente vê quando vai para o extremo de Long Island. Pensei na sra. Dodds e no momento em que ela se transformou naquela coisa com dentes pontiagudos e asas de couro. Meus membros ficaram amortecidos de choque retardado. Ela realmente não era humana. E pretendia me matar.
Então pensei no sr. Brunner... e na espada que ele jogara para mim. Antes que eu pudesse perguntar a Grover sobre aquilo, os cabelos de minha nunca se arrepiaram. Houve um clarão ofuscante, um Bum! De fazer bater o queixo, e o carro explodiu.
Lembro-me de ter me sentido sem peso, como se estivesse sendo esmagado, frito e lavado com uma mangueira, tudo ao mesmo tempo.
Descolei minha testa do encosto do assento do motorista e disse:
- Ai.
- Percy! - gritou minha mãe.
- Estou bem...
Tentei sair do estupor. Eu não estava morto,o carro não explodira de verdade. Tínhamos caído em uma vala. As portas do lado do motorista estavam enfiadas na lama. O teto se abrira como uma casca de ovo e a chuva se derramava para dentro.
Relâmpago. Era a única explicação. Tínhamos voado pelos ares, para fora da estrada. Ao meu lado no assento traseiro havia uma grande massa informe e imóvel.
- Grover!
Ele estava caído de lado, com sangue escorrendo do canto da boca. Sacudi seu quadril peludo, pensando: Não! Mesmo que você seja metade animal de quintal, ainda é meu melhor amigo, e não quero que morra!
Então ele gemeu:
- Comida - e eu soube que havia esperança.
- Percy - disse minha mãe -, temos de... - Ela titubeou.
Olhei para trás. Num clarão de relâmpago, através do pára-brisa traseiro salpicado de lama, vi um vulto andando pesadamente na nossa direção no acostamento da estrada. Aquela visão fez minha pele formigar. Era a silhueta de um sujeito enorme, como um jogador de futebol americano. Parecia estar segurando uma manta por cima da cabeça. A metade superior dele era volumosa e indistinta. As mãos erguidas davam a impressão de que ele tinha chifres.
Engoli em seco.
- Quem é...
- Percy - disse minha mãe, extremamente séria. - saia do carro.
Ela se jogou contra a porta do lado do motorista. Estava emperrada na lama. Tentei a minha. Emperrada também. Desesperadamente, ergui os olhos para o buraco no teto. Poderia ser uma saída, mas as bordas estavam chiando e fumegando.
- Saia pelo lado do passageiro! - disse minha mãe. - Percy, você tem de correr. Está vendo aquela árvore grande?
- O quê?
Outro clarão de relâmpago e pelo buraco fumegante no teto eu vi a arvore a que ela se referia: um enorme pinheiro, do tamanho de uma arvore de Natal da Casa Branca, no topo da colina mais próxima.
- Aquele é o limite da propriedade - disse minha mãe. - Passe daquela colina verá uma grande casa de fazenda no fundo do vale. Corra e não olhe para trás. Grite por ajuda. Não pare enquanto não chegar à porta.
- Mamãe, você também vem.
O rosto dela estava pálido, os olhos tristes como quando ela olhava para o oceano.
- Não! - gritei. - Você vem comigo. Ajude-me a carregar o Grover.
- Comida! - gemeu Grover, um pouco mais alto.
O homem com a manta na cabeça continuou indo em nossa direção, grunhindo e bufando. Quando ele chegou mais perto, percebi que não podia estar segurando uma manta acima da cabeça porque as mãos - enormes e carnudas - balançavam ao seu lado. Não havia manta nenhuma. O que queria dizer que a massa volumosa e indistinta que era grande demais para ser sua cabeça... era a sua cabeça. E as pontas que pareciam chifres...
- Ele não nos quer - disse minha mãe. - Ele quer você. Além disso, não posso ultrapassar o limite da propriedade.
- Mas...
- Não temos tempo, Percy. Vá. Por favor.
Então fiquei zangado - zangado com a minha mãe, com Grover, o bode, com a coisa chifruda que se movia pesadamente em nossa direção, de modo lento e calculado como... como um touro.
Passei por cima de Grover e empurrei a porta, que se abriu para chuva.
- Nós vamos juntos. Venha, mãe.
- Eu já disse que...
- Mamãe! Eu não vou abandonar você. Ajuda aqui com Grover.
Não esperei pela resposta dela. Eu me arrastei para fora do carro, puxando Grover comigo. Ele era surpreendentemente leve, mas eu não poderia tê-lo carregado para muito longe se minha mãe não tivesse ido me ajudar.
Juntos, pusemos os braços de Grover em nossos ombros e começamos a subir a colina aos tropeções, com o capim molhado na altura de cintura.
Ao olhar relance para trás, tive minha primeira visão clara do monstro. Tinha, fácil, mais de dois metros, e os braços e pernas pareciam algo saído da capa da revista Músculos - bíceps e tríceps saltados e mais um monte de outros ceps, todos estufados como bolas de beisebol embaixo de uma pele cheia de veias. Ele usava roupas, a não ser cuecas - branquíssimas, da marca Fruit of the Loom -, o que teria sido engraçado não fosse o fato de a parte superior de seu corpo ser tão assustadora. Pêlos marrons e grossos começaram na altura do umbigo e iam ficando mais espessos à medida que chegavam aos ombros.
Seu pescoço era uma massa de músculos e pêlos que levavam à enorme cabeça, que tinha um focinho tão comprido quanto meu braço, narinas ranhentas com um reluzente anel de bronze, olhos pretos cruéis
e chifres - enormes chifres preto-e-branco com pontas que você não conseguiria fazer nem num apontador elétrico.
Reconheci o monstro muito bem. Tinha sido uma das primeiras historias que o sr. Brunner nos contara. Mas ele não podia ser real.
Pisquei os olhos para desviar a chuva.
- Aquele é...
- O filho de Pasífae - disse minha mãe. - Gostaria de ter sabido antes o quanto desejaram matar você.
- Mas ele é o Mino...
- Não pronuncie o nome - advertiu ela. - Os nomes têm poder.
O pinheiro ainda estava longe demais - pelo menos cem metros colina acima.
Dei outra olhada para trás.
O homem-touro se curvou por cima de nosso carro, olhando pelas janelas - ou não exatamente olhando. Era mais como farejar, fuçar. Eu não sabia muito bem por que ele se dava a esse trabalho, já que estávamos a apenas quinze metros de distancia.
- Comida? - gemeu Grover.
- Shhh - fiz eu. - Mamãe, o que ele está fazendo? Não está nos vendo?
- Sua visão e sua audição são péssimas - disse ela. - Ele se orienta pelo cheiro. Mas vai perceber onde estamos logo, logo.
Como que na deixa, o homem-touro bramiu de raiva. Ele agarrou o Camaro de Gabe pela capota rasgada, o chassi rangia e gemia. Ergueu o carro acima da cabeça e atirou-o na estrada. Aquilo se chocou contra o asfalto molhado e deslizou em meio a um chuveiro de fagulhas por cerca de quinhentos metros antes de parar. O tanque de gasolina explodiu.
Nem um arranhão, lembrei-me de Gabe dizendo.
Oops.
- Percy - disse minha mãe. - Quando ele nos vir, vai atacar. Espere até o último segundo, depois saia do caminho. Ele não consegue mudar de direção muito bem quando já está atacando. Você entendeu?
- Como você sabe tudo isso?
- Estou preocupada com um ataque há muito tempo. Devia ter esperado por isso. Fui egoísta, mantendo você perto de mim.
- Mantendo-me perto de você? Mas...
Outro bramido de raiva e o homem-touro começou a subir pesadamente a colina.
Tinha nos farejado.
O pinheiro estava a apenas mais alguns metros, mas a colina era cada vez mais íngreme e escorregadia, e Grover ficava mais pesado.
O homem-touro se aproximava. Mas alguns segundos e estaria em cima de nós.
Minha mãe devia estar exausta, mas carregou Grover.
- Va, Percy! Va sozinho! Lembre-se do que eu disse.
Eu nao queria me separar, mas tive a sensacao de que ela estava certa - era nossa unica chance. Pulei para esquerda, virei-me e vi a criatura avancando em minha direcao. Os olhos pretos brilhavam de odio. Fedia a carne podre.
Ele inclinou a cabeca e atacou, aqueles chifres afiados como navalhas apontados diretamente para o meu peito.
O medo no meu estomago me deu vontade de disparar, mas isso nao daria certo. Eu jamais poderia correr mais que aquela coisa. Entao fiquei parado e, no ultimo momento, saltei para o lado.
O homem-touro passou por mim a toda como um trem de carga, depois bramiu de frustracao e se virou, mas dessa vez nao contra mim, mas contra minha mae, que estava acomodando Grover sobre a grama.
Tinhamos chegado ao topo da colina. Embaixo, do outro lado, pude ver um vale, bem como minha mae dissera, e as luzes de uma casa de fazenda tremeluzindo amarelas atraves da chuva. Mas estava a oitocentos metros de distancia. Nunca conseguiriamos chegar la.
O homem-touro roncou, escarvando o chao. Ficou olhando para minha mae, que recuava lentamente colina abaixo, de volta para estrada, tentando afastar o monstro de Grover.
- Corra, Percy! - disse ela. - Nao posso passar daqui. Corra!
Mas fiquei la parado, paralisado de medo, enquanto o monstro a atacava. Ela tentou sair de lado, como me dissera para fazer, mas o monstro tinha aprendido a licao. Jogou a mao para frente e agarrou-lhe o pescoco quanto ela tentou escapar. Ele a ergueu enquanto ela lutava, chutando e dando murros no ar.
- Mamae!
Entao, com um rugido furioso, o monstro fechou os punhos em volta do pescoco da minha mae e ela se dissolveu diante dos meus olhos, fundindo-se em luz, uma forma dourada tremeluzente, como uma projecao holografica. Um clarao ofuscante, e ela simplesmente... se foi.
- Nao!
A raiva substituiu o medo. Uma nova forca ardeu em meus membros - a mesma onda de energia que me veio quando a sra. Dodds mostrou as garras.
O homem-touro foi na direcao de Grover, que estava deitado na grama, indefeso. O monstro se curvou, fungando meu melhor amigo como se estivesse prestes a ergue-lo dali e faze-lo se dissolver tambem.
Eu nao podia permitir aquilo.
Tirei minha capa de chuva vermelha.
- Ei! - gritei, agitando a capa e correndo para um lado do monstro. - Ei, estupido! Monte de carne moida!
- Raaaarrrrr ! - O monstro virou-se para mim sacudindo seus punhos carnudos.
Eu tive uma ideia - uma ideia boba, porem melhor do que nao pensar em nada. Encostei as costas no grande pinheiro e agitei a capa vermelha na frente do homem-touro, pensando em pular fora do caminho no ultimo momento.
Mas nao foi assim que aconteceu.
O homem-touro atacou depressa demais, os bracos estendidos para me agarrar qualquer que fosse o lado para onde eu tentasse me esquivar.
O tempo comecou a passar mais devagar.
Minhas pernas travaram. Eu nao podia pular para o lado, assim saltei direto para cima, usando a cabeca da criatura como trampolim, girei o corpo no ar e cai sobre seu pescoco.
Como eu fiz aquilo? Nao tive tempo para descobrir. Um milissegundo depois a cabeca do monstro chocou-se contra a arvore e o impacto quase fez meus dentes saltarem da boca.
O homem-touro cambaleou de um lado para outro tentando se livrar de mim. Segurei com forca em seus chifres para nao ser arremessado. Os trovoes e os relampagos ficavam mais fortes. A chuva caia em meus olhos. O cheiro de carne podre queimava minhas narinas.
O monstro se sacudia e corcoveava como um touro de rodeio. Poderia simplesmente ter chegado para tras e me esmagado completamente na arvore, mas eu comecava a perceber que aquela coisa so tinha uma direcao: para frente.
Enquanto isso, Grover comecou a gemer na grama. Quis gritar para ele ficar calado, mas do jeito que estava sendo jogado de um lado para o outro, se abrisse a boca deceparia minha propria lingua com uma mordida.
- Comida! - gemeu Grover.
O homem-touro virou-se para ele, escarvou o chao novamente e se preparou para atacar. Pensei em como ele havia espremido a vida para fora de minha mae, como a fizera desaparecer num clarao de luz, e a raiva me abasteceu como um combustivel de alta potencia. Agarrei um dos chifres com ambas as maos e puxei para tras com toda a minha forca. O monstro se retesou, soltou um grunhido de surpresa, e entao... plec!
O homem-touro berrou e me atirou pelos ares. Aterrissei de costas na grama. Minha cabeca bateu contra uma pedra. Quando me sentei, minha visao estava embacada, mas eu tinha um chifre nas maos, um osso partido do tamanho de uma faca.
O monstro atacou.
Sem pensar, rolei para o lado e me levantei de joelhos. Quando ele passou a toda velocidade, enterrei o chifre quebrado bem na lateral de seu corpo, logo abaixo da caixa toracica peluda.
O homem-touro urrou em agonia. Debateu-se, rasgando o peito com suas garras, e depois comecou a se desintegrar . nao como minha mae, em um clarao dourado, mas como areia se esfarelando, carregada pelo vento aos pedacos para longe, do mesmo modo como a sra. Dodds se desintegrara.
O monstro se fora.
A chuva tinha parado. A tempestade ainda rugia, mas somente a distancia. Eu cheirava a gado e meus joelhos tremiam. Minha cabeca parecia que ia se partir ao meio. Estava fraco, assustado e tremia de tristeza. Acabara de ver minha mae se desvanecer. Queria me deitar e chorar, mas havia Grover, precisando de minha ajuda, portando consegui ergue-lo e descer cambaleando para o vale em direcao as luzes da casa. Eu estava chorando, chamando minha mae, mas me agarrei a Grover . eu nao ia deixa-lo partir.
Minha ultima lembranca e ter desmaiado numa varanda de madeira, olhando para um ventilador de teto que girava acima de mim, mariposas voando em volta de uma luz amarela, e as expressoes austeras e familiares de um homem barbudo e uma menina bonita, com cabelos loiros encaracolados como os de uma princesa. Os dois olharam para mim e a menina disse:
- E ele. Tem de ser.
- Silencio, Annabeth - disse o homem. - Ele ainda esta consciente. Traga-o para dentro.
CINCO . Eu jogo pinoche com um cavalo.
Tive sonhos estranhos, cheios de animais de estabulos. A maioria queria me matar. O restante queria comida.
Devo ter acordado varias vezes, mas o que ouvi e vi nao fazia sentido, entao adormecia de novo. Lembro-me de estar deitado em uma cama macia, sendo alimentado com colheradas de alguma coisa que tinha gosto de pipoca com manteiga, so que era pudim. A menina com o cabelo loiro encaracolado pairava acima de mim com um sorriso afetado enquanto limpava as gotas de meu queixo com a colher.
Quando ela viu meus olhos abertos, perguntou:
- O que vai acontecer no solsticio de verao?
Eu consegui resmungar:
- O que?
Ela olhou em volta, como se estivesse com medo de que alguem ouvisse.
- O que esta acontecendo? O que foi roubado? Nos so temos algumas semanas!
- Desculpe - murmurei. - Eu nao...
Alguem bateu a porta, e a menina rapidamente encheu minha boca de pudim.
Quando acordei novamente, a menina tinha ido embora.
Um sujeito loiro e forte, como um surfista, estava no canto do quarto me vigiando. Tinha olhos azuis - pelo menos uma duzia deles - nas bochechas, nas testas, nas costas das maos.
*****
Quando finalmente voltei a mim de vez, nao havia nada de estranho com o lugar ao meu redor, a nao ser que era mais agradavel do que eu estava acostumado. Estava sentado numa espreguicadeira em uma enorme varanda, olhando ao longo de uma campina para colinas verdejantes a distancia. A brisa tinha cheiro de morangos. Havia uma manta sobre as minhas pernas, um travesseiro atras do pescoco. Tudo isso era otimo, mas minha boca me dava a sensacao de ter sido usada como ninho por um escorpiao. A lingua estava seca e pegajosa, e todos os dentes doiam. Sobre a mesa ao lado havia bebida num copo alto. Parecia suco de maca gelado, com um canudinho verde e um guarda-chuva de papel enfiado em uma cereja.
Minha mao estava tao fraca que quase derrubei o copo quando passei os dedos em volta dele.
- Cuidado - disse uma voz familiar.
Grover estava apoiado no gradil da varanda, e parecia nao dormir havia uma semana. Embaixo de um braco, segurava uma caixa de sapatos. Estava usando jeans, tenis de cano alto Converse e uma camiseta laranja-claro com os dizeres ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE. Apenas o velho Grover. Nao menino-bode.
Quem sabe nao tive um pesadelo? Talvez minha mae estivesse bem. Ainda estavamos de ferias e tinhamos parado ali naquela grande casa por alguma razao. E...
- Voce salvou minha vida - disse Grover. - Eu... bem, o minimo que eu podia fazer... voltei na colina. Achei que voce poderia querer isso.
Reverentemente, ele colocou a caixa de sapatos em meu colo.
Dentro havia um chifre de touro branco-e-preto, a base irregular por ter sido quebrada, a ponta salpicada de sangue seco. Nao tinha sido um pesadelo.
- O Minotauro - disse eu.
- Ahn, Percy, nao e uma boa ideia...
- E assim que o chamam nos mitos gregos, nao e? - perguntei. - O Minotauro. Meio homem, meio touro.
Grover mudou de posicao, pouco a vontade.
- Voce ficou desacordado por dois dias. Do que se lembra?
- Minha mae. Ela esta mesmo...
Ele abaixou os olhos.
Olhei ao longo da campina. Havia pequenos bosques, um riacho sinuoso, campos de morangos espalhados embaixo do ceu azul. O vale era cercado por colinas ondulantes, e a mais alta, bem na nossa frente, era a que tinha o grande pinheiro no topo. Mesmo isso parecia bonito a luz do sol.
Minha mae se fora. O mundo inteiro deveria estar escuro e frio. Nada devia parecer bonito.
- Desculpe - fungou Grover. - Eu sou um fracasso. Eu... sou o pior satiro do mundo.
Ele gemeu, batendo o pe com tanta forca que ele saiu, quer dizer, o tenis Converse saiu. Dentro, estava recheado de isopor, a nao ser por um buraco em forma de casco.
- Oh, Styx! - murmurou ele.
Um trovao ecoou no ceu claro.
Enquanto ele lutava para por o casco de volta no falso pe, pensei: Bem, isso resolve as coisas.
Grover era um satiro. Podia apostar que, se raspasse o cabelo castanho cacheado, encontraria pequenos chifres em sua cabeca.
Mas eu me sentia infeliz demais para me importar com a existencia de satiros ou mesmo minotauros. O importante era que minha mae realmente tinha sido espremida para o nada, dissolvida em luz amarela.
Eu estava sozinho. Um orfao. E teria de viver com... Gabe Cheiroso? Nao. Isso jamais iria acontecer. Preferia viver nas ruas. Fingiria ter dezessete anos e me alistaria no exercito. Faria alguma coisa.
Grover ainda estava fungando. O pobre garoto - pobre bode, ou satiro, ou o que for - parecia estar esperando levar um murro.
- Nao foi sua culpa - disse eu.
- Foi, sim. Eu devia protege-lo.
- Minha mae pediu para voce me proteger?
- Nao. Mas e isso que faco. Sou um guardiao. Pelo menos... eu era.
- Mas por que...
De repente senti uma vertigem, minha visao rodando.
- Nao se esforce demais - disse Gover. - Aqui.
Ele me ajudou a segurar o copo e eu levei o canudinho aos labios.
Recuei com o gosto, porque estava esperando suco de maca. Nao tinha nada a ver com isso. Era gosto de biscoito com pedacinhos de chocolate. Biscoito liquido. E nao qualquer biscoito - os biscoitos azuis da minha mae com pedacinhos de chocolate, amanteigados e quentes, o chocolate ainda derretendo. Ao beber aquilo, meu corpo inteiro se sentiu bem, aquecido e cheio de energia. Minha tristeza nao foi embora, mas era como se minha mae tivesse acabado de acariciar minha bochecha e me dar um biscoito, como costumava fazer quando eu era pequeno, e tivesse dito que tudo ia ficar bem.
Antes de me dar conta, ja tinha esvaziado o copo inteiro. Olhei para dentro dele e, com certeza, nao era uma bebida quente, pois os cubos de gelo nao tinham nem derretido.
- Estava bom? - perguntou Grover.
Fiz que sim com a cabeca.
- Que gosto tinha?
Ele pareceu tao suplicante que me senti culpado.
- Desculpe. Devia ter deixado voce provar.
Os olhos deles se arregalaram.
- Nao! Nao foi isso que eu quis dizer. Eu so... fiquei curioso.
- Biscoitos com pedacinhos de chocolate - disse eu. - Os da minha mae. Feitos em casa.
Ele suspirou.
- E como se sente?
- Como se fosse capaz de jogar Nancy Bobofit a cem metros de distancia.
- Isso e bom - disse ele. - Isso e bom. Nao acho que voce deva se arriscar a tomar mais disso ai.
- O que quer dizer?
Ele pegou meu copo com cautela, como se fosse dinamite, e o colocou de volta na mesa.
- Vamos. Quiron e o sr. D estao esperando.
*****
A varanda circundava toda a casa da fazenda.
Senti as pernas tremulas tentando andar toda aquela distancia. Grover se ofereceu para carregar o chifre do Minotauro, mas eu me agarrei a ele. Tinha pago um preco alto por aquele suvenir. Nao iria larga-lo.
Quando demos a volta ate o lado oposto da casa, parei para recuperar o folego.
Deviamos estar na costa norte de Long Island, porque daquele lado da casa o vale seguia ate a agua, que cintilava a cerca de um quilometro de distancia. Entre a casa e la, eu simplesmente nao consegui processar tudo o que estava vendo. A paisagem era pontilhada de construcoes que lembravam a arquitetura grega antiga - um pavilhao a ceu aberto, um anfiteatro, uma arena circular - so que pareciam novos em folha, as colunas de marmore branco reluzindo ao sol. Em uma quadra de areia proxima, uma duzia de criancas e satiros jogavam voleibol. Canoas deslizavam por um pequeno lago. Criancas de camiseta laranja-clara como a de Grover acorriam umas atras das outras em volta de um grupamento de chales no meio do bosque. Algumas praticavam arco-e-flecha em alvos. Outras montavam cavalos em uma trilha arborizada e, a nao ser que eu estivesse tendo alucinacoes, alguns cavalos tinham asas.
Na extremidade da varanda, dois homens estavam sentados frente a frente em uma mesa de carteado. A menina de cabelos loiros que me alimentara com colheradas de pudim com sabor de pipoca estava apoiada no gradil da varanda, ao lado deles.
O homem de frente para mim era pequeno, mas gorducho. Tinha nariz vermelho, grandes olhos chorosos e cabelo cacheado tao preto que era quase roxo. Parecia uma daquelas pinturas de anjos-bebes, como se chamam mesmo... surubins? Nao, querubins. E isso. Ele parecia um querubim que chegou a meia idade em um acampamento de trailers. Usava uma camisa havaiana com estampa de tigres e teria se encaixado perfeitamente em uma das rodas de poquer de Gabe, so que eu tive a sensacao de que esse cara poderia ter ganhado ate do meu padrasto.
Aquele e o sr. D - murmurou Grover para mim. - Ele e o diretor do acampamento. Seja educado. A menina e Annabeth Chase. Ela e so uma campista, mas esta aqui ha mais tempo que quase todo mundo. E voce ja conhece Quiron...
Ele apontou para o cara que estava de costas para mim.
Primeiro, percebi que ele estava sentado em uma cadeira de rodas. Depois reconheci o casaco de tweed, o cabelo castanho ralo, a barba desalinhada.
- Sr. Brunner! - exclamei.
O professor de latim voltou-se e sorriu para mim. Os olhos estavam com aquele brilho travesso de quando ele fazia uma prova-surpresa e todas as respostas da multipla escolha eram B.
- Ah, bom, Percy - disse ele. - Agora ja temos quatro para o pinoche.
Ele me ofereceu uma cadeira a direita do sr. D, que olhou para mim com olhos injetados e soltou um grande suspiro.
- Ah, suponho que devo dizer isto. Bem-vindo ao Acampamento Meio-Sangue. Pronto. Agora, nao espere que eu esteja contente em ve-lo.
- Ahn, obrigado. - Logo me afastei um pouco dele, porque, se havia uma coisa que eu tinha aprendido com Gabe era reconhecer quando um adulto andou tomando umas e outras. Se o sr. D era abstemio, eu era um satiro.
- Annabeth? - o sr. Brunner chamou a menina loira.
Ela avancou e o sr. Brunner nos apresentou.
- Esta mocinha cuidou de voce ate que ficasse bom, Percy. Annabeth, minha querida, por que nao vai verificar o beliche de Percy? Vamos instala-lo no chale 11 por enquanto.
Annabeth disse:
- Claro, Quiron.
Ela provavelmente tinha a minha idade, talvez fosse uns cinco centimetros mais alta, e tinha a aparencia muitissimo mais atletica.
Com seu bronzeado intenso e o cabelo loiro cacheado, era quase exatamente como eu imaginava uma tipica menina da California, a nao ser pelos olhos, que arruinavam essa imagem. Era surpreendentemente cinzentos, como nuvens de tempestade; bonito, mas tambem intimidadores, como se ela estivesse analisando o melhor modo de me derrubar em uma luta.
Ela deu uma olhada no chifre de minotauro em minhas maos, entao de novo para mim. Imaginei que fosse dizer: Voce matou um minotauro! Ou Uau, voce e tao assustador! Ou algo do tipo. Em vez disso, ela disse:
- Voce baba quando esta dormindo!
Depois saiu correndo pelo gramado, os cabelos loiros esvoacando atras dela.
- Entao - disse, ansioso por mudar de assunto -, o senhor, ahn, trabalha aqui, sr. Brunner?
- Sr. Brunner nao - disse o ex-sr. Brunner. - Lamento, era pseudonimo. Voce pode me chamar de Quiron.
- Combinado. - Totalmente confuso, olhei para o diretor. - E sr. D... significa alguma coisa?
O sr. D parou de embaralhar as cartas. Olhou para mim como se eu tivesse acabado de arrotar alto.
- Rapazinho os nomes sao coisas poderosas. Voce simplesmente nao sai por ai os usando sem motivo.
- Ah. Certo. Desculpe.
- Devo dizer, Percy - interrompeu o Quiron-Brunner -, que estou contente em ve-lo com vida. Ja faz um bom tempo desde que fiz um atendimento domiciliar a um campista em potencial. Detestaria pensar que tinha perdido meu tempo.
- Atendimento domiciliar?
- O ano que passei na Academia Yancy para instrui-lo. Temos satiros de prontidao na maioria das escolas, e claro. Mas Grover me alertou assim que o conheceu. Ele sentiu que voce era especial, entao decidi ir la. Convenci o outro professor de latim a... ah, tirar uma licenca.
Tentei me lembrar do comeco do ano escolar. Parecia tanto tempo atras, mas eu tinha uma vaga lembranca de outro professor de latim na minha primeira semana em Yancy. Entao, sem explicacao, ele desapareceu e o sr. Brunner assumiu a turma.
- Voce foi a Yancy so para me ensinar? - perguntei.
Quiron assentiu.
- Honestamente, de inicio eu nao tinha muita certeza a seu respeito. Contatamos a sua mae, informamos que estavamos de olho em voce, para o caso de estar pronto para o Acampamento Meio-Sangue. Mas voce ainda tinha muito a aprender. Nao obstante, chegou aqui vivo, e esse e sempre o primeiro teste.
- Grover - disse o sr. D com impaciencia -, vai jogar ou nao?
- Sim, senhor! - Grover tremeu quando se sentou na quarta cadeira, embora eu nao soubesse por que ele deveria ter tanto medo de um homenzinho gorducho de camisa havaiana com estampa de tigre.
- Voce sabe jogar pinoche? - indagou o sr. D olhando para mim com desconfianca.
- Infelizmente nao - disse eu.
- Infelizmente nao, senhor - disse ele.
- Senhor - repeti. Estava gostando cada vez menos do diretor do acampamento.
- Bem - ele me disse -, este e, juntamente com as lutas de gladiadores e o Pac-Man, um dos melhores jogos ja inventados pelos seres humanos. Imaginava que todos os jovens civilizados conhecessem as regras.
- Estou certo de que o menino pode aprender - disse Quiron.
- Por favor - disse eu. -, o que e este lugar? O que estou fazendo aqui? Sr. Brun... Quiron, por que iria a Academia Yancy so para me ensinar?
O sr. D bufou.
- Fiz a mesma pergunta.
O diretor do acampamento deu as cartas. Grover se encolhia a cada vez que uma caia na sua pilha.
Quiron sorriu para mim de um modo compreensivo, como costumava fazer na aula de latim, como para me dizer que qualquer que fosse minha nota, eu era seu aluno mais importante. Ele esperava que eu tivesse a resposta certa.
- Percy - disse ele -, sua mae nao lhe contou nada?
- Ela disse... - Lembrei-me dos seus olhos tristes, olhando para o mar. - Ela me contou que tinha medo de me mandar para ca, embora meu pai quisesse que ela fizesse isso. Disse que, uma vez aqui, provavelmente nao poderia sair. Queria me manter perto dela.
- Tipico - disse o sr. D - E assim que eles normalmente sao mortos. Rapazinho, voce vai fazer um lance ou nao vai?
- O que? - perguntei.
Ele explicou, impacientemente, como se faz um lance em pinoche, e eu fiz.
- Lamento, mas ha coisas demais a contar - disse Quiron. - Receio que nosso filme de orientacao nao seja suficiente.
- Filme de orientacao? - perguntei.
- Nao - concluiu Quiron. - Bem, Percy. Voce sabe que seu amigo Grover e um satiro. Voce sabe - ele apontou para o chifre na caixa de sapatos - que voce matou o Minotauro. E nao e um pequeno feito, rapaz. O que voce pode nao saber e que grandes forcas estao em acao na sua vida. Os deuses - as forcas que voce chama de deuses gregos - estao muito vivos.
Olhei para os outros em volta da mesa.
Aguardei que alguem gritasse, Nao! Mas tudo o que ouvi foi o sr. D gritando:
- Oh, um casamento real. Truco! Truco! - Ele gargalhou enquanto contava os pontos.
- Sr. D - perguntou Grover timidamente -, se nao for come-la, posso ficar com sua lata de Diet Coke?
- Hein? Ah, esta bem.
Grover mordeu um grande pedaco da lata de aluminio vazia e mastigou tristemente.
- Espere - eu disse a Quiron -, esta me dizendo que existe algo como Deus.
- Bem, vamos la - disse Quiron. - Deus - com D maiusculo, Deus. Isso e outro assunto. Nao vamos lidar com o metafisico.
- Metafisico? Mas voce estava falando sobre...
- Ah, deuses, no plural, grandes seres que controlam as forcas da natureza e os empreendimentos humanos; os deuses imortais do Olimpo. Essa e uma questao menor.
- Menor?
- Sim, muito. Os deuses que discutimos na aula de latim.
- Zeus - disse eu. - Hera. Apolo. Voce quer dizer , esses. E, de novo, uma trovoada distante em um dia sem nuvens.
- Rapazinho - disse o sr. D -, se eu fosse voce, seria menos negligente quanto a ficar soltando esses nomes por ai.
- Mas sao historias - disse eu. .- Sao... mitos, para explicar os relampagos, as estacoes e tudo mais. Era nisso que as pessoas acreditavam antes de surgir a ciencia.
- Ciencia! - zombou o sr. D. - E diga-me, Perseu Jackson - eu me encolhi quando ele disse meu nome verdadeiro, que nunca contara a ninguem -, o que as pessoas pensarao da sua \ciencia. daqui a milhares de anos? Humm? Irao chama-la de baboseiras primitivas. E isso o que irao pensar. Ah, eu adoro os mortais... ele nao tem a menor nocao de perspectiva. Acham que ja chegaram taaaao longe. E chegaram, Quiron? Olhe para esse menino e diga-me.
- Percy - disse Quiron -, voce pode escolher entre acreditar ou nao, mas o fato e que imortal significa imortal. Pode imaginar isso por um momento, nao morrer nunca? Existir, assim como voce e, para toda a eternidade?
Eu estava prestes a responder, assim sem pensar, que parecia um negocio muito bom, mas o tom de voz de Quiron me fez hesitar.
- Voce quer dizer, quer as pessoas acreditem em voce ou nao . disse eu.
- Exatamente - concordou Quiron. - Se voce fosse um deus, gostaria de ser chamado de mito, de uma velha historia para explicar os relampagos? E se eu contasse a voce, Perseu Jackson que um dia as pessoas vao chamar voce de mito, criado apenas para explicar como menininhos podem sobreviver a perda de suas maes?
Meu coracao disparou. Ele estava tentando me deixar zangado por alguma razao, mas eu nao ia permitir que o fizesse. Eu disse:
- Eu nao gostaria disso. Mas nao acredito em deuses.
- Oh, e melhor mesmo - murmurou o sr. D. - Antes que um deles o incinere.
Grover disse:
- P-por favor, senhor. Ele acaba de perder a mae. Esta em estado de choque.
- Uma sorte, tambem - resmungou o sr. D, jogando uma carta. - Ruim mesmo e estar confinado a esse trabalho deprimente, com meninos que nem mesmo tem fe!
Ele acenou e uma taca apareceu sobre a mesa, como se a luz do sol tivesse momentaneamente se encurvado e transformado o ar em vidro. A taca se encheu de vinho tinto.
Meu queixo caiu, mas Quiron mal ergueu os olhos.
- Senhor D - advertiu -, as suas restricoes.
O sr. D olhou para o vinho e fingiu surpresa.
- Ora vejam. - Ele olhou para o ceu e gritou: - Velhos habitos! Desculpe!
Mais trovoes.
O sr. D acenou outra vez e a taca de vinho se transformou em uma nova lata de Diet Coke. Ele suspirou, infeliz, abriu a lata e voltou ao seu jogo de cartas.
Quiron piscou para mim.
- O sr. D irritou o pai dele tempos atras, sentiu-se atraido por uma ninfa dos bosques que tinha sido declarada inacessivel.
- Uma ninfa dos bosques - repeti, ainda olhando para a Diet Coke como se tivesse vindo do cosmos.
- Sim - confessou o sr. D. - O pai adora me castigar. Na primeira vez, Proibicao. Horrivel! Dez anos abasolutamente terriveis! Na segunda vez... bem, ela era mesmo linda, nao consegui ficar longe... na segunda vez, ele me mandou para ca. Colina Meio-Sangue. Acampamento de verao para moleques como voce. \Seja uma influencia melhor., ele me disse. \Trabalhe com os jovens em vez de arrasar com eles.. Ah! Que injustica.
O sr. D parecia ter seis anos de idade, como uma criancinha fazendo pirraca.
- E... - gaguejei - o seu pai e...
- Di immotales, Quiron - disse o sr. D. - Pensei que voce tinha ensinado o basico a este menino. Meu pai e Zeus, e claro.
Repassei os nomes comecados em D da mitologia grega. Vinho. A pele de um tigre. Os satiros que pareciam estar todos trabalhando aqui. O modo como Grover se encolhia de medo, como se o sr. D fosse seu senhor.
- Voce e Dionisio - disse eu. - O deus do vinho.
O sr. D revirou os olhos.
- Como eles dizem hoje em dia, Grover? As criancas dizem, \fala serio.?
- S-sim, sr. D.
- Entao, fala serio, Percy Jackson. Achou o que; que eu fosse Afrodite?
- Voce e um deus.
- Sim, crianca.
- Um deus. Voce.
Ele se virou para olhar diretamente para mim, e vi uma especie de fogo arroxeado nos seus olhos, um indicio de que aquele homenzinho reclamao e gorducho so estava me mostrando uma minuscula parte de sua verdadeira natureza. Tive visoes de vinhas estrangulando descrentes ate a morte, guerreiros bebados insanos com o entusiasmo da batalha, marinheiros gritando enquanto suas maos se transformavam em nadadeiras, os rostos se alongando em focinhos de golfinho. Eu sabia que, se o pressionasse o sr. D iria me mostrar coisas piores. Iria plantar uma doenca no meu cerebro que me levaria a usar camisa-de-forca pelo resto da vida.
- Gostaria de me testar, crianca? - disse em voz baixa.
- Nao. Nao, senhor.
O fogo diminuiu um pouco. Ele voltou ao jogo de cartas.
- Acho que ganhei.
- Nao exatamente sr. D - disse Quiron. Ele baixou uma sequencia, contou os pontos e disse: - O jogo e meu.
Achei que o sr. D fosse transformar Quiron em po em sua cadeira de rodas, mas ele apenas suspirou pelo nariz, como se estivesse acostumado a ser batido pelo professor de latim. Pos-se de pe, e Grover levantou-se tambem.
- Estou cansado - disse o sr. D. - Acho que vou tirar uma soneca antes da cantoria desta noite. Mas primeiro, Grover, precisamos conversar de novo sobre seu desempenho para la de imperfeito nessa missao.
O rosto de Grover cobriu-se de goticulas de suor.
- S-sim, senhor.
O sr. D voltou-se para mim.
- Chale 11, Percy Jackson. E cuidado com seus modos.
Ele se afastou para dentro da casa, com Grover o seguindo arrasado.
- Grover vai ficar bem? - perguntei a Quiron.
Quiron assentiu, embora parecesse um pouco perturbado.
- O velho Dionisio nao esta realmente zangado. Ele apenas detesta seu trabalho. Ele foi... ahn, confinado a Terra, pode-se dizer, e nao pode aguentar ter de esperar mais um seculo antes de ser autorizado a voltar ao Olimpo.
- O Monte Olimpo - disse eu. - Voce esta me dizendo que realmente existe um palacio ali?
- Bem, agora ha o Monte Olimpo na Grecia. E ha o lar dos deuses, o ponto de convergencia dos seus poderes, que de fato costumava ser no Monte Olimpo. Ainda e chamado de Monte Olimpo, por respeito as tradicoes, mas o palacio muda de lugar, Percy, assim como os deuses.
- Voce quer dizer que os deuses gregos estao aqui? Tipo... nos Estados Unidos?
- Bem, certamente. Os deuses mudam com o coracao do Ocidente.
- O que?
- Vamos, Percy. O que voces chamam de \civilizacao ocidental.. Voce acha que e apenas um conceito abstrato? Nao, e uma forca viva. Uma consciencia coletiva que ardeu brilhantemente por milhares de anos. Os deuses sao parte dela. Voce pode ate dizer que eles sao sua fonte ou, pelo menos, que estao ligados tao intimamente a ela que possivelmente nao vao deixar de existir, a nao ser que toda a civilizacao ocidental seja destruida. A chama comecou na Grecia. Entao, como voce bem sabe... ou espero que saiba, ja que foi aprovado no meu curso... o coracao da chama se mudou para Roma, e assim fizeram os deuses. Ah, com nomes diferentes, talvez: Jupiter em vez de Zeus, Venus em vez de Afrodite, e assim por diante; mas as mesmas forcas, os mesmos deuses.
- E entao eles morreram.
- Morreram? Nao. O Ocidente morreu? Os deuses simplesmente se mudaram, para a Alemanha, para a Franca, para a Espanha, por algum tempo. Aonde quer que a chama brilhasse mais, la estavam os deuses. Eles passaram varios seculos na Inglaterra. Tudo o que voce precisa e olhar para a arquitetura. As pessoas nao esquecem os deuses. Em todos os lugares onde reinaram, nos ultimos tres mil anos, voce pode ve-los em pinturas, em estatuas, nos predios mais importantes. E sim, Percy, e claro que agora eles estao nos Estados Unidos. Olhe para o simbolo do pais, a aguia de Zeus. Olhe para a estatua de Prometeu no Rockfeller Center, para as fachadas dos edificios governamentais em Washington. Eu o desafio a encontrar qualquer cidade americana onde os olimpianos nao estejam proeminentes expostos em varios locais. Goste ou nao . e acredite, uma porcao de gente nao gostava muito de Roma tambem -, os Estados Unidos sao agora o coracao da chama. Sao a grande potencia do Ocidente. E, portanto, o Olimpo e aqui. E nos estamos aqui.
Aquilo tudo foi demais para mim, especialmente o fato de que eu parecia estar incluido no nos de Quiron, como se fizesse parte do mesmo clube.
- Quem e voce, Quiron? Quem... quem eu sou?
Quiron sorriu. Ele mudou de posicao, como se fosse levantar da cadeira de rodas, mas eu sabia que era impossivel. Era paralitico da cintura para baixo.
- Quem e voce? - ele ficou pensativo. - Bem, essa e a pergunte que todos queremos ver respondida, nao e? Mas, por enquanto, temos de lhe arranjar um beliche no chale 11. Ali havera novos amigos para conhecer. E tempo a vontade para as aulas amanha. Alem disso, havera guloseimas em volta da fogueira esta noite, e eu simplesmente adoro chocolate.
E entao ele se levantou da cadeira de rodas. Mas havia algo de estranho no modo como ele fez isso. A manta caiu de cima das pernas, mas elas nao se moveram. A cintura foi ficando mais longa, erguendo-se acima do cinto. De inicio, pensei que estivesse usando roupas de baixo muito compridas de veludo branco, mas a medida que ele foi ser erguendo da cadeira, mais alto que qualquer homem, percebi que a roupa de baixo de veludo nao era roupa de baixo; era a parte da frente de um animal, musculos e tendoes sob um pelo branco e aspero. E a cadeira de rodas nao era uma cadeira. Era algum tipo de recipiente, uma enorme caixa sobre rodas, e devia ser magica, porque nao havia como ela conte-lo inteiro. Uma perna saiu, comprida e com joelho saliente, com um grande casco polido. Depois outra perna dianteira, depois a parte traseira, e depois a caixa ficou vazia, nada alem de uma casca de metal com um par de pernas humanas acoplado.
Olhei para o cavalo que acabara de pular da cadeira de rodas: um enorme corcel branco. Mas, onde devia estar o seu pescoco, estava a parte de cima do corpo do meu professor de latim, suavemente enxertada no tronco do cavalo.
- Que alivio - disse o centauro. - Fiquei tanto tempo confinado la dentro que minhas juntas adormeceram. Agora venha, Percy Jackson. Vamos conhecer os outros campistas.
SEIS . Minha transformacao em senhor do banheiro.
Depois que assimilei o fato de meu professor de latim ser um cavalo, fizemos um passeio agradavel, embora tivesse o cuidado de nao andar atras dele. Havia participado algumas vezes das rondas com pazinhas para recolher coco de cachorro na Parada do Dia de Acao de Gracas da loja Macyfs e, lamento dizer, nao confiava na parte de tras de Quiron tanto quanto confiava na da frente.
Passamos pela quadra de volei. Diversos campistas se cutucavam. Um deles apontou para o chifre de minotauro que eu carregava. Um outro disse:
- E ele.
A maioria dos campistas era mais velha que eu. Seus amigos satiros eram maiores que Grover, todos trotando de um lado para outro de camisetas cor de laranja do ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE, sem nada para cobrir os traseiros peludos a mostra. Eu normalmente nao era timido, mas o modo como olhavam para mim me deixou pouco a vontade. Era como se esperassem que eu desse um salto mortal ou coisa assim.
Olhei para a casa de fazenda tras de mim. Era muito maior do que eu pensara - quatro andares, azul-ceu com acabamento em branco, como um hotel de veraneio de primeira classe a beira-mar. Eu estava conferindo o cata-vento de latao em forma de aguia no topo quando algo me chamou a atencao, uma sombra na janela mais alta do sotao. Alguma coisa havia mexido na cortina, so por um segundo, e tive a nitida impressao de que estava sendo observado. - O que ha la em cima? - perguntei a Quiron. Ele olhou para onde eu estava apontando e seu sorriso desapareceu: - Apenas o sotao. - Mora alguem la? - Nao - disse em tom definitivo. - Nem uma unica coisa viva. Tive a sensacao de que ele falava a verdade. Mas tambem tinha certeza de que algo havia mexido naquela cortina. - Venha, Percy - disse Quiron, o tom despreocupado agora um pouco forcado. - Ha muito para ver. Caminhamos pelos campos de morangos, onde campistas colhiam alqueires de morangos enquanto um satiro tocava uma melodia numa flauta de bambu. Quiron me contou que o acampamento cultivava uma bela safra para exportar para os restaurantes de Nova York e para o Monte Olimpo. - Paga as nossas despesas - explicou. - E os morangos nao exigem esforco quase nenhum. Ele disse que o sr. D produzia esse efeito sobre plantas frutiferas: elas simplesmente enlouqueciam quando ele estava por perto. Funcionava melhor com as vinhas, mas o sr. D estava proibido de cultiva-las, portanto, em vez delas eles plantavam morangos. Observei o satiro tocando a flauta. A musica fazia com que filas de insetos saissem dos canteiros de morangos em todas as direcoes, como se fugissem de um incendio. Imaginei se Grover podia fazer esse tipo magica com musica. Imaginei se ainda estava dentro da casa, levando broncas do sr. D. -Grover nao vai ter muitos problemas, vai? - perguntei a Quiron. - Quer dizer... ele foi um bom protetor. Sem duvida. Quiron suspirou. Tirou o casaco de tweed e jogou-o por cima do seu lombo de cavalo, como uma sela.
- Grover sonha alto , Percy. Talvez mais alto do que seria razoavel. Para atingir seu objetivo, ele precisa primeiro demonstrar uma grande coragem tendo sucesso como guardiao, encontrando um novo campista e trazendo-o em seguranca a Colina Meio-Sangue. - Mas ele fez isso! - Eu poderia concordar com voce - disse Quiron. - Mas nao cabe a mim julgar. Dioniso e o Conselho dos Anciaos de Casco Fendido devem decidir. Receio que possam nao ver essa missao como um sucesso. Afinal, Grover perdeu voce em Nova York, ha o desventurado... ahn... destino da sua mae. E o fato de que Grover estava inconsciente quando voce o arrastou ate os limites da propriedade. O conselho pode questionar se isso demonstra alguma coragem da parte de Grover. Eu quis protestar. Nada do que acontecera havia sido por culpa de Grover. Tambem me sentia muito, muito culpado. Se nao tivesse escapado de Grover na estacao de onibus, ele poderia nao ter se envolvido em encrenca. - Ele vai ter uma segunda chance, nao vai? Quiron retraiu-se. Infelizmente aquela era a segunda chance de Grover, Percy. Alem disso, o conselho nao estava muito ansioso em lhe dar outra oportunidade depois do que aconteceu na primeira vez, cinco anos atras. - O Olimpo sabe, eu o aconselhei a esperar mais tempo antes de tentar de novo. Ele ainda e muito pequeno para a sua idade. - Que idade ele tem? - Ah, vinte e oito. - O que! E ainda esta na sexta serie? - Os satiros amadurecem no dobro do tempo dos seres humanos, Percy. Grover teve idade equivalente a de um aluno de escola secundaria nos ultimos seis anos. - Que coisa horrivel. - De fato - concordou Quiron. - De qualquer modo, Grover esta atrasado, mesmo pelos padroes de satiro, e ainda nao avancou muito em magia dos bosques. O pobre estava ansioso por perseguir o seu sonho. Talvez agora encontre alguma outra carreira... - Isso nao e justo! - disse eu. - O que aconteceu na primeira vez? Foi mesmo assim tao ruim? Quiron desviou os olhos depressa. - Vamos andando? Mas eu ainda nao estava pronto para mudar de assunto. Uma coisa me ocorrera quando Quiron falou sobre o destino de minha mae, como se estivesse intencionalmente evitando a palavra morte. O principio de uma ideia - uma pequenina e esperancosa chama - comecou a se formar em minha cabeca. - Quiron - disse eu. - Se os deuses, o Olimpo e tudo isso sao reais... - Sim, crianca? - Isso significa que o Mundo Inferior tambem e real? A expressao de Quiron se fechou. - Sim,criança. - Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras cuidadosamente. - Há um
lugar para onde vão os espíritos após a morte. Mas por ora... até que saibamos mais...eu recomendaria que tirasse isso de sua cabeça. - O que quer dizer com "até que saibamos mais"? - Venha, Percy. Vamos ver os bosques. Quando nos aproximamos, me dei conta de como a floresta era enorme. Tomava pelo menos um quarto do vale, com árvores tão altas e largas que a impressão era de que ninguém entrara lá desde os nativos americanos. Quíron disse: - Os bosques têm provisões, se você quiser tentar a sorte, - Provisões de quê? – perguntei. - Armado com o quê? - Você verá. O jogo Capture a Bandeira é na sexta-feira à noite. Você tem a sua própria espada e escudo? - Minha própria...? - Não - disse Quíron. - Não creio que tenha. Acho que o tamanho cinco vai servir. Mais tarde vou visitar o arsenal. Quis perguntar que tipo de acampamento de verão tem um arsenal, mas havia muito mais a pensar, portanto o passeio continuou. Vimos a linha de tiro com arco-e-flecha, o lago de canoagem, os estábulos (dos quais Quíron parecia não gostar muito), a linha de lançamento de dardo, o anfiteatro para cantoria e a arena onde Quíron disse que eles realizavam lutas de espadas e lanças. - Lutas de espadas e lanças? - perguntei. - Desafios entre chalés e coisas assim - explicou ele. - Não são letais. Normalmente. Ah, sim, e há também o refeitório. Quíron apontou para um pavilhão ao ar livre emoldurado por colunas gregas brancas sobre uma colina que dava para o mar. Havia uma dúzia de mesas de piquenique de pedra. Sem telhado. Sem paredes. - O que vocês fazem quando chove? - perguntei. Quíron me olhou como se eu tivesse ficado meio maluco. - Ainda assim temos de comer, não temos? Resolvi deixar para lá. Finalmente,ele me mostrou os chalés. Havia doze deles aninhados no bosque junto ao lago. Estavam dispostos em U, dois na frente e cinco enfileirados de cada lado. E eram, sem dúvida, o mais estranho conjunto de construções que já vi. A não ser pelo fato de cada um ter um grande número de latão acima da porta (ímpares do lado esquerdo, pares do direito), eram totalmente diferentes um do outro. O número 9 tinha chaminés como uma minúscula fábrica. O número 4 tinha tomateiros nas paredes e uma cobertura feita de grama de verdade. O 7 parecia feito de um ouro sólido que reluzia tanto à luz do sol que era quase impossível de se olhar. Todos davam para uma área comum mais ou menos do tamanho de um campo de futebol, pontilhada de estátuas gregas, fontes, canteiros de flores e um par de cestos de basquete (o que era mais a minha praia). No centro do campo havia uma enorme área de pedras com uma fogueira. Muito embora fosse uma tarde quente, o fogo ardia de modo lento. Uma menina com cerca de nove anos estava cuidando das chamas, cutucando os carvões com uma vara. O par de chalés à cabeceira do campo, números 1 e 2, pareciam mausoléus casadinhos, grandes caixas de mármore branco com colunas pesadas na frente. O chalé 1 era o maior e mais magnífico dos doze.
As portas de bronze polido cintilavam como um holograma, de tal modo que, vistas de ângulos diferentes, raios pareciam atravessa-las. O chale 2 era de certo modo mais gracioso, com colunas mais finas encimadas com romas e flores. As paredes eram entalhadas com imagens de pavoes. - Zeus e Hera? - adivinhei. - Correto - disse Quiron. - Os chales parecem vazios. - Diversos chales estao vazios. e verdade. Ninguem jamais fica no 1 ou 2. Certo. Entao cada chale tinha um deus diferente como mascote e chales para os doze olimpianos. Mas por que alguns estariam vazios? Parei na frente do primeiro chale da esquerda, o numero 3. Nao era alto e imponente como o chale 1, mas comprido, baixo e solido. As paredes externas eram de pedras cinzentas rusticas salpicadas de pedacos de conchas e coral, como se as pedras tivessem sido cortadas diretamente do fundo do oceano. Espiei para dentro da porta aberta e Quiron disse: - Ih, eu nao faria isso! Antes que ele pudesse me puxar de volta, senti o odor salgado do interior, como o vento na praia de Montauk. As paredes internas brilhavam como madreperola. Havia seis beliches vazios com lencois de seda virados para baixo. Mas nao havia indicio de que alguem ja tivesse dormido la. O lugar parecia tao triste e solitario que fiquei contente quando Quiron pos a mao no meu ombro. - Vamos, Percy. A maioria dos outros chales estava abarrotada de campistas. O numero 5 era vermelho vivo - uma pintura muito malfeita, como se a cor tivesse sido jogada a esmo com baldes e maos. O telhado era forrado de arame farpado. Uma cabeca de javali empalhada estava pendurada acima da porta e seus olhos pareciam me seguir. Dentro pude ver um bando de meninos e meninas mal-encarados, disputando queda-de-braco e discutindo enquanto o rock tocava as alturas. A mais barulhenta era uma menina de talvez treze ou quatoreze anos. Usava uma camiseta do ACAMAPMENTO MEIO-SANGUE tamanho GGG embaixo de um casaco camuflado. Ela mirou em mim e lancou um maldoso olhar de desprezo. Fez lembrar Nancy Bobofit, so que a menina do acampamento era muito maior e de aparencia mais cruel, seu cabelo era comprido, esticado e castanho, em vez de vermelho. Continuei andando, tentando ficar longe dos cascos de Quiron. - Ainda nao vimos os centauros . observei. - Nao - disse Quiron chateado. - Infelizmente, meus parentes sao uma gente selvagem e barbara. Voce pode encontra-los no mato ou em eventos desportivos importantes. Mas nao vera nenhum aqui. - Voce disse que seu nome e Quiron. Voce e mesmo... Ele sorriu para mim. - O Quiron das historias? Instrutor de Hercules e tudo aquilo? Sim, Percy, eu sou. - Mas voce nao devia estar morto? Quiron fez uma pausa, como se a pergunta o intrigasse.
- Honestamente, nao sei nada sobre devia. A verdade e que eu nao posso estar morto. Entenda, ha muitas eras os deuses concederam meu desejo. Pude continuar o trabalho que adorava. Pude ser um mestre de herois enquanto a humanidade precisasse de mim. Ganhei muito com aquele desejo... e renunciei a muito. Mais ainda estou aqui, portanto so posso presumir que ainda sou necessario. Pensei sobre ser um professor de tres mil anos. Isso nao estaria na minha lista das Dez Coisas Mais Desejadas. - Isso nunca fica chato? - Nao, nao - disse ele. - Horrivelmente deprimente as vezes, mas nunca chato. - Por que deprimente? Quiron pareceu ficar com alguma deficiencia auditiva de novo. - Ah, olhe - disse ele. - Annabeth esta esperando por nos. ***** A menina loira que eu conhecera na Casa Grande estava lendo um livro na frente do ultimo chale da esquerda, o numero 11. Quando nos aproximamos, ela olhou para mim com um ar critico, como se ainda estivesse pensando em como eu babava. Tentei ver o que ela estava lendo, mas nao consegui distinguir o titulo. Achei que fosse minha dislexia em acao. Entao me dei conta de que o titulo nao era sequer em ingles. As letras pareciam grego para mim. Quer dizer, literalmente grego. Havia figuras de templos e estatuas e diferentes tipos de colunas, como em um livro de arquitetura. - Annabeth - disse Quiron - eu tenho aula de arco-e-flecha para mestres ao meio-dia. Voce cuidaria de Percy a partir daqui? - Sim, senhor. - Chale 11 - disse Quiron para mim, fazendo um gesto em direcao a porta. - Sinta-se em casa. Entre todos os chales, o 11 era o que mais parecia um velho chale comum de acampamento de verao, com enfase no velho. A soleira estava desgastada, a pintura marrom, descascando. Acima do vao da porta havia um daqueles simbolos de medico, um bastao alado com duas serpentes enroscadas nele. Como e mesmo que chamavam aquilo...? Um caduceu. Dentro, estava abarrotado de gente, meninos e meninas, em muito maior numero que os beliches. Sacos de dormir estavam espalhados por todo piso. Parecia um ginasio onde a Cruz Vermelha estabelecera um centro de refugiados. Quiron nao entrou. A porta era muito baixa para ele. Mas quando os campistas o viram, todos se puseram em pe e fizeram uma reverencia respeitosa. - Entao tudo bem - disse Quiron. - Boa sorte, Percy. Vejo voce no jantar. Ele partiu a galope ruma a linha de arco-e-flecha. Fiquei em pe no vao da porta, olhando para a garotada. Nao estavam mais se curvando. Olhavam para mim, medindo-me com os olhos. Conheco essa rotina. Havia passado por ela em muitas escolas. - Tudo bem? - instigou Annabeth. - Va em frente. Entao, naturalmente, tropecei ao passar pela porta e fiz um completo papel de bobo. Houve algumas
risadinhas dos campistas, mas nenhum deles disse nada. Annabeth anunciou: - Percy Jackson, apresento-lhe o chale 11. - Normal ou indeterminado? - perguntou alguem. Eu nao sabia o que dizer, mas Annabeth disse: - Indeterminado. Todos gemeram. Um cara que era um pouco mais velho que o restante chegou para frente. - Vamos, vamos, campistas. E para isso que estamos aqui. Bem-vindo, Percy. Voce pode ficar com aquele ponto no chao logo ali. O cara tinha cerca de dezenove anos e parecia muito legal. Era alto e musculoso, com cabelo com cor de areia aparado curto e um sorriso amigavel. Usava uma camiseta regata laranja, calcas cortadas, sandalias e um colar de couro com cinco contas de argila em cores diferentes. A unica coisa perturbadora na sua aparencia era uma grossa cicatriz branca que corria desde logo abaixo do olho direito ate o queixo, como um antigo corte de faca. - Este e Luke - disse Annabeth, e sua voz pareceu mudar um pouco. Dei uma olhada nela e poderia ter jurado que estava ficando vermelha. Ela me viu olhando e sua expressao endureceu de novo. - Ele e seu conselheiro por enquanto. - Por enquanto? - perguntei. - Voce e indeterminado - explicou Luke pacientemente. - Eles nao sabem em que chale acomoda-lo, entao voce esta aqui. O chale 11 recebe todos os recem-chegados, todos os visitantes. Naturalmente Hermes, nosso patrono, e o deus dos viajantes. Olhei para o minusculo espaco de chao que eles me deram. Eu nao tinha nada para por ali e marca-lo como meu, nenhuma bagagem, nenhuma roupa, nenhum saco de dormir. Apenas o chifre do Minotauro. Pensei em coloca-lo ali, mas entao lembrei que Hermes era tambem o deus dos ladroes. Corri os olhos pelos rostos dos campistas, alguns mal-humorados e desconfiados, outros com um sorriso idiota, alguns me olhando como se esperassem uma oportunidade de limpar os meus bolsos. - Quanto tempo vou ficar aqui? - perguntei. - Boa pergunta - disse Luke. - Ate voce ser determinado. - Quanto tempo isso vai levar? Todos os campistas riram. - Venha - disse Annabeth. - Vou lhe mostrar o patio de volei. - Eu ja vi. - Venha. Ela agarrou meu pulso e me arrastou para fora. Pude ouvir o pessoal do chale dando risadas atras de mim. *****
Quando estavamos a poucos metros de distancia, Annabeth disse: - Jackson, voce precisa fazer melhor do que isso. - O que? Ela revirou os olhos e murmurou baixinho: - Nao posso acreditar que achei que voce fosse o cara. - Qual e o seu problema? - Eu agora estava ficando zangado. - Tudo o que sei e que matei um sujeito-touro... - Nao fale assim! - disse Annabeth. - Voce sabe quantos neste acampamento gostariam de ter tido a sua chance? - De ser mortos? - De enfrentar o Minotauro! Para que voce acha que nos somos treinados? Eu sacudi a cabeca. - Olhe, se a coisa contra a qual eu lutei era realmente o Minotauro, o mesmo das historias... - Sim. - Entao so existe um. - Sim. - E ele morreu, tipo um zilhao de anos atras, certo? Teseu o matou no labirinto. Portanto... - Monstros nao morrem, Percy. Eles podem ser mortos. Mas eles nao morrem. - Ah, obrigado. Agora entendi tudo. - Eles nao tem alma, como voce e eu. Voce pode bani-los por algum tempo, talvez ate por todo uma vida, se tiver sorte. Mas eles sao forcas primitivas. Quiron os chama de arquetipos. No fim, eles se reconstituem. Pensei na sra. Dodds. - Voce quer dizer que se eu matei um, acidentalmente, com uma espada.... - A Fur... Quer dizer, a sua professora de matematica. Esta certo. Ela ainda esta la fora. Voce apenas a deixou muito, muito zangada. - Como voce sabe da sra. Dodds? - Voce fala dormindo. - Voce quase a chamou de alguma coisa. Uma Furia? Elas sao torturadoras de Hades, certo? Annabeth olhou nervosamente para o chao, como se esperasse que ele se abrisse e a engolisse. - Voce nao deve chama-las pelo nome, mesmo aqui. Se acabamos tendo de falar nelas, nos as achamos de as Benevolentes. - Puxa, existe alguma coisa que se possa dizer sem que haja trovoes? - Eu soie reclamao, ate para mim
mesmo, mas naquele momento nao me importei. - Por que tenho de ficar no chale 11, afinal? Por que fica todo mundo amontoado? Ha uma porcao de beliches vazios logo ali. Apontei para os primeiros chales e Annabeth empalideceu. - A gente nao escolhe simplesmente um chale, Percy. Depende de quem sao seus progenitores. Ou... o seu progenitor. Ela olhou fixamente para mim, esperando que eu entendesse. - Minha mae e Sally Jackson - disse eu. - Trabalha na doceria da Grande Estacao Central. Pelo menos trabalhava. - Sinto muito pela sua mae, Percy. Mas nao e isso que eu quis dizer. Estou falando sobre seu outro progenitor. Seu pai. - Ele esta morto. Nao cheguei a conhece-lo. Annabeth suspirou. Era claro que ja tivera aquela conversa com outras criancas: - Seu pai nao esta morto, Percy. - Como pode dizer isso? Voce o conhece? - Nao, e claro que nao. - Entao como voce pode dizer... - Porque eu conheco voce. Voce nao estaria aqui se nao fosse um de nos. - Voce nao sabe nada a meu respeito. - Nao? - Ela ergueu uma sombrancelha. - Aposto que voce ficou passando de escola em escola. Aposto que foi expulso de uma porcao delas. - Como... - Teve diagnostico de dislexia. Provavelmente transtorno do deficit de atencao tambem. Tentei engolir meu constragimento. - O que isso tem a ver? - Tudo junto, e quase um sinal certo. As letras flutuam para fora da pagina quando voce le, certo? Isso e porque a sua mente esta fisicamente programada para o grego antigo. E o transtorno do deficit de atencao... voce e impulsivo, nao consegue ficar quieto na classe. Isso sao os seus reflexos de campo de batalha. Numa luta real, eles o manterao vivo. Quanto aos problemas de atencao, isso e porque enxerga demais, Percy, e nao de menos. Seus sentidos sao mais aprimorados que os de um mortal comum. E claro que os professores querem que voce seja medicado. Eles sao em maioria monstros. Nao querem que voce os veja como sao. - Voce parece... voce passou pelas mesmas coisas? - A maioria das criancas daqui passou. Se voce nao fosse um de nos, nao poderia ter sobrevivido ao Minotauro, e muito menos a ambrosia e ao nectar. - Ambrosia e nectar. - A comida e a bebida que estavamos dando a voce para cura-lo. Aquilo teria matado um garoto normal. Teria transformado seu sangue em fogo e seus ossos em areia e voce estaria morto. Encare os fatos.
Voce e um meio-sangue. Um meio-sangue. Minha cabeca estava girando com tantas perguntas que eu nao sabia por onde comecar. - Ora, ora! Um novato! Eu dei uma olhada. A menina grandalhona do chla feio e vermelho vinha andando lentamente em nossa direcao. Havia tres outras meninas atras dela, todas grandes, feias e de aparencia malvada como ela, todas usando casacos camuflados. - Clarisse - suspirou Annabeth -, por que voce nao vai polir sua lanca ou coisa assim? - Claro, srta. Princesa - disse a grandalhona. - Para poder atravessar voce com ela na sexta-feira a noite. - Erre es korakas! - disse Annabeth, o que eu de algum modo entendi que era \Va para os corvos!. em grego, embora tivesse a sensacao de que devia ser uma praga pior do que parecia. - Voce nao tem chance. - Vamos transforma-la em po - disse Clarisse, mas seu olho se crispou. Talvez ela nao tivesse certeza de poder cumprir a ameaca. Voltou-se para mim. - Quem e esse nanico? - Percy Jackson - disse Annabeth -, esta e Clarisse, filha de Ares. Eu pisquei. - Tipo... o deus da guerra? Clarisse sorriu desdenhosa. - Voce tem algum problema com isso? - Nao - disse eu, recobrando minha presenca de espirito. - Isso explica o mau cheiro. Clarisse rosnou. - Nos temos uma cerimonia de iniciacao para novatos, Persiana. - Percy. - Seja o que for. Venha, vou lhe mostrar. - Clarisse... - Annabeth tentou dizer. - Fique fora disso, espertinha. Annabeth pareceu ofendida, mas ficou de fora, e eu realmente nao queria a ajuda dela. Eu era o novato. Tinha de construir minha propria reputacao. Entreguei a Annabeth meu chifre de minotauro e me preparei para a luta, mas antes que eu percebesse Clarisse tinha me segurado pelo pescoco e me arrastava na direcao de um edificio de blocos de concreto que percebi imediatamente que era o banheiro. Eu chutava e dava murros no ar. Ja tinha estado em muitas brigas antes, mas aquela Clarisse grandalhona tinha maos de ferro. Arrastou-me para dentro do banheiro das meninas. Havia uma fileira de vasos sanitarios de um lado e uma fileira de chuveiros do outro. Cheirava como qualquer banheiro publico, e eu estava pensando - tanto quanto podia pensar com Clarisse me arrancando os cabelos - que se aquele lugar pertencia aos deuses, eles deviam poder comprar privadas melhores.
As amigas de Clarisse estavam todas rindo, e eu tentava encontrar a forca que usara para enfrentar o Minotauro, mas ela simplesmente nao estava la. - Como se ele fosse dos \Tres Grandes. - disse Clarisse, me empurrando em direcao a um dos vasos. - Certo. O Minotauro provavelmente caiu na risada, de tao bobo que ele parecia. As amigas abafaram o riso. Annabeth ficou no canto, observando atraves dos dedos. Clarisse me forcou sobre os joelhos e comecou a empurrar minha cabeca para dentro do vaso sanitario, que fedia a canos enferrujados e, bem, ao que vai para dentro de vasos sanitarios. Fiz esforco para manter a cabeca erguida. Estava olhando para a agua imunda e pensando: eu nao vou enfiar a cabeca naquilo. Nao vou. Entao algo aconteceu. Senti uma pressao violenta na boca do estomago. Ouvi os encanamentos roncando, os canos estremeceram. A mao de Clarisse no meu cabelo afrouxou. A agua pulou para fora do vaso, formando um arco por cima da minha cabeca, e em seguida me vi estatelado sobre os ladrilhos do piso do banheiro com Clarisse berrando atras de mim. Eu me virei bem no momento em que a agua explodiu para fora do vaso outra vez, atingindo Clarisse bem no rosto com tanta forca que a fez cair de traseiro no chao. A agua continuou jorrando em cima dela como o jato de uma mangueira de incendio, empurrando-a para tras, para dentro de um boxe de chuveiro. Ela se debateu, esbaforida, e as amigas comecaram a ir em sua direcao. Mas entao os outros vasos tambem explodiram, e mais seis jorros de agua de privada as empurravam de volta. Os chuveiros tambem entraram em acao e, em conjunto, todos os dispositivos lancaram as meninas camufladas para fora do banheiro, fazendo-as rodopiar como pedacos de lixo sendo removidos com jatos dfagua. Assim que elas foram postas porta afora, sentia a pressao nas minhas entranhas se aliviar, e a agua parou de jorrar tao depressa quanto comecara. O banheiro inteiro estava inundado. Annabeth nao tinha sido poupada. Estava toda molhada e pingando, mas nao fora empurrada para fora. Estava de pe exatamente no mesmo lugar me olhando em estado de choque. Olhei para baixo e me dei conta de que estava sentado no unico ponto seco em todo o recinto. Havia um circulo de piso seco em volta de mim. Nao havia nem uma gota dfagua nas minhas roupas. Nada. Levantei com as pernas tremulas. Annabeth disse: - Como voce... - Eu nao sei. Caminhamos ate a porta. Do lado de fora, Clarisse e as amigas estavam prostadas na lama e um bando de outros campistas se reunira em volta para olhar, perplexos. O cabelo de Clarisse estava colado no rosto. O casaco camuflado estava encharcado e ela cheirava a esgoto. Ela me lancou um olhar de odio absoluto. - Voce esta morto, novato. Esta totalmente morto. Talvez eu devesse ter deixado pra la, mas disse: - Quer gargarejar com agua da privada de novo, Clarisse? Cale essa boca. As amigas tiveram de segurá-la. Arrastaram-na para o chalé 5, enquanto os outros campistas abriam caminho para evitar seus membros que esperneavam.
Annabeth olhou para mim. Eu nãos abia dizer se ela estava apenas enjoada ou zangada comigo por encharcá-la. - O que foi? - perguntei. - O que está pensando? - Estou pensando - disse ela - que quero você no meu time para capturar a bandeira.
SETE – Meu jantar se esvai em fumaça.
A notícia do incidente no banheiro se espalhou na mesma hora. Aonde quer que eu fosse, os campistas apontavam para mim e murmuravam algo sobre água de vaso sanitário. Ou talvez apenas olhassem para Annabeth, que ainda estava bastante encharcada.
Ela me mostrou mais alguns lugares: a oficina de metais (onde as crianças forjavam as próprias espadas), a sala de artes e ofícios (onde os sátiros jateavam com areia uma estátua gigante de um home-bode) e a parede para escalada, que na verdade consistia em duas paredes que se sacudiam violentamente, deixavam cair rochas, espalhavam lava e colidiam uma com a outra se a gente não chegasse ao topo bem depressa.
Finalmente retornamos ao lado de canoagem, de onde a trilha levava de volta aos chalés.
- Tenho treinamento - disse Annabeth secamente. - O jantar é às sete e meia. Você só tem de seguir o pessoal do chalé até o refeitório.
- Annabeth, desculpe pelos sanitários.
- Não importa.
- Não foi minha culpa.
Ela me olhou com ar cético e me dei conta de que tinha sido minha culpa. Eu havia feito a água jorrar no banheiro. Não entendia como. Mas os vasos tinham respondido a mim. Era como se eu fosse um dos canos.
- Você precisa falar com o Oráculo - disse Annabeth.
- Quem?
- Não quem. O quê. O Oráculo. Vou pedir a Quíron.
Olhei para o lago, desejando que alguém me desse uma resposta direta pelo menos uma vez.
Eu não esperava que alguém estivesse olhando de volta para mim do fundo, portanto meu coração deu um pulo quando notei duas meninas adolescente sentadas de pernas cruzadas na base do píer, cerca de seis metros abaixo. Vestiam jeans e camisetas verdes cintilantes, e os cabelos castanhos flutuavam soltos em volta dos ombros enquanto peixinhos passavam por entre eles. Elas sorriram e acenaram como se eu fosse um amigo há muito perdido.
Eu não sabia que outra coisa fazer. Acenei de volta.
- Não as encoraje - advertiu Annabeth. - As náiades são flertadoras incontroláveis.
- Náiades - repeti, sentindo-me completamente estupefado. - Já chega. Quero ir para casa agora.
Annabeth franziu as sobrancelhas.
- Você não percebe, Percy? Você está em casa. Este é o único lugar na terra seguro para crianças como nós.
- Você quer dizer crianças mentalmente perturbadas?
- Eu quero dizer não-humanas. Não totalmente humanas, de qualquer modo. Meio humanas.
- Meio humanas e meio o quê?
- Acho que você sabe.
Eu não queria admitir, mas sabia, sim. Senti um formigamento nos membros, uma sensação que às vezes me tomava quando minha mãe falava sobre meu pai.
- Deusas - disse eu. - Meio deusas.
Annabeth assentiu.
- Seu pai não está morto, Percy. Ele é um dos olimpianos.
- Isso é... loucura.
- Será? Qual é a coisa mais comum que os deuses faziam nas velhas histórias? Eles andavam por aí se apaixonando por seres humanos e tendo filhos com eles. Você pensa que eles mudaram os hábitos nos últimos poucos milênios?
- Mas isso são apenas... - Eu quase disse mitos de novo. Então me lembrei do aviso de Quíron de que daqui a dois mil anos eu poderia ser considerado um mito. - Mas se todos aqui são meio deuses...
- Semideuses - disse Annabeth. - Esse é o termo oficial. Ou meio-sangues.
- Então quem é seu pai?
As mãos dela se apertaram em volta da balaustrada do píer. Tive a sensação de que acabara de tocar em um assunto delicado.
- Meu pai é um professor em West Point - disse ela. - Não vejo desde que era muito pequena. Ele ensina História Americana.
- Ele é humano.
- O quê? Está pensando que tem de ser um deus homem encontrando uma mulher humana atraente, e não o contrário? Sabe que isso é machismo?
- Então quem é sua mãe?
- Chalé 6.
- O que significa?
Annabeth endireitou o corpo.
- Atena. Deusa da sabedoria e da guerra.
Certo, pensei. Por que não?
- E meu pai?
- Indeterminado - disse Annabeth, como eu lhe disse antes. Ninguém sabe.
- A não ser a minha mãe. Ela sabia.
- Talvez não, Percy. Os deuses nem sempre revelam sua identidade.
- Meu pai teria revelado. Ele a amava.
Annabeth me deu uma olhada cautelosa. Ela não queria acabar com as minhas ilusões.
- Talvez você esteja certo. Talvez ele vá enviar um sinal. Esse é o único modo de saber com certeza: seu pai tem de mandar a você um sinal reclamando você como filho. Às vezes isso acontece.
- Quer dizer que às vezes não acontece?
Annabeth correu a palma da mão pela balaustrada.
- Os deuses são atarefados. Eles têm uma porção de filhos, e nem sempre... Bem, às vezes eles não se importam conosco, Percy. Eles nos ignoram.
Pensei em algumas das crianças que tinha visto no chalé de Hermes, adolescentes que pareciam mal-humorados e deprimidos, como se estivessem esperando por um chamado que nunca viria. Conhecera crianças assim na Academia Yancy, descartadas para internatos por pais ricos que não tinham tempo para lidar com elas. Mas os deuses deviam se comportar melhor.
- Então eu estou encalhado aqui - disse eu. - É isso? Pelo resto da minha vida?
- Depende - disse Annabeth. - Alguns campistas só ficam no verão. Se você é filho de Afrodite ou Demetra, provavelmente não é uma força realmente poderosa. Os monstros podem ignorá-lo, e então você pode se arranjar com alguns meses de treinamento de verão e viver no mundo mortal pelo resto do ano. Mas, para alguns de nós, sair é perigoso demais. Temos de ficar o ano inteiro. No mundo mortal, atraímos monstros. Eles percebem nossa presença. Vêm nos desafiar. Na maioria das vezes eles nos ignoram ate termos idade suficiente para causar problemas - cerca de dez ou onze anos, mas depois disso muitos dos semideuses vêem para cá ou são mortos. Alguns conseguem sobreviver no mundo exterior e se tornam famosos. Acredite, se eu lhe contasse os nomes você os conheceria. Alguns nem sequer se dão conta de que são semideuses. Mas poucos, muito poucos são assim.
- Então os monstros não podem entrar aqui?
Annabeth sacudiu a cabeça.
- Não, a não ser que sejam intencionalmente mantidos nos bosques ou convocados por alguém de dentro.
- Por que alguém ia querer convocar um monstro?
- Para pratica de lutas. Para pregar peças.
- Pregar peças?
- A questão é que as fronteiras são fechadas para manter os mortais e os monstros de fora. Do lado de fora, os mortais olham para o vale e não vêem nada de inusitado, apenas plantações de morangos.
- Então... você é uma campista de ano inteiro?
Annabeth assentiu. De dentro da gola da camiseta ela puxou um colar de couro com cinco contas de argila de cores diferentes. Era exatamente como o de Luke, só que o de Annabeth também tinha um grande anel de ouro enfiado, como um anel de faculdade.
- Estou aqui desde que tinha sete anos - disse ela. - Todo mês de agosto, no último dia da sessão de verão, a gente ganha uma conta por sobreviver mais um ano. Estou aqui há mais tempo que a maioria dos conselheiros, e eles estão todos na faculdade.
- Por que veio tão jovem?
Ela girou o anel no colar.
- Não é da sua conta.
- Ah. - Fiquei ali por um minuto em um silêncio constrangedor. - Então... Eu poderia simplesmente sair andando daqui agora mesmo, se quisesse?
- Seria suicídio, mas você poderia, com a permissão do sr. D ou de Quíron. Mas eles não dariam permissão até o final da sessão de verão, a não ser...
- A não ser?
- Que lhe seja concedida uma missao. Mas isso dificilmente acontece. Na ultima vez...
A voz dela foi sumindo. Pude perceber pelo seu tom de voz que a ultima vez nao tinha ido muito bem.
- Antes, quando estava doente no quarto - disse eu -, quando voce dava de comer aquela coisa...
- Ambrosia.
- E. Voce me perguntou algo sobre o solsticio de verao.
Os ombros de Annabeth se contrairam.
- Entao voce sabe alguma coisa?
- Bem... nao. Na minha antiga escola, ouvi por acaso Grover e Quiron conversando sobre isso. Grover mencionou o solsticio de verao. Ele disse algo como nao termos muito tempo, por causa do prazo final. O que isso queria dizer?
Ela apertou os punhos.
- Eu gostaria de saber. Quiron e os satiros, eles sabem, mas nao contaram para mim. Algo esta errado no Olimpo, algo muito importante. Na ultima vez em que estive la, parecia tudo tao normal.
- Voce esteve no Olimpo?
- Alguns de nos, campistas de ano inteiro... Luke, Clarisse, eu e poucos outros... fizemos uma excursao durante o solsticio de inverno. E quando os deuses fazem sua grande assembleia anual.
- Mas... como chegou la?
- Pela Ferrovia de Long Island, e claro. Voce desce na Estacao Penn. Empire State, seiscentesimo andar. - Ela me olhou como quem tinha certeza de que eu ja sabia disso. - Voce e nova-iorquino, certo?
- Ah, com certeza. - Ate onde eu sabia, havia apenas cento e dois andares no Empire States, mas decidi nao comentar isso.
- Logo depois da visita - continuou Annabeth -, o tempo ficou esquisito, como se os deuses tivessem comecado a brigar. Uma ou duas vezes desde entao, ouvi satiros conversando. O maximo que posso deduzir e que algo importante foi roubado. E, se nao for devolvido ate o solsticio de verao, vai haver problemas. Quando voce veio, eu estava esperando... quer dizer... Atena pode se entender com qualquer um, a nao ser Ares. E, e claro, ela tem uma rivalidade com Poseidon. Mas, quer dizer, fora isso, pensei que poderiamos trabalhar juntos. Pensei que voce pudesse saber alguma coisa.
Sacudi a cabeca. Gostaria de poder ajuda-la, mas estava com fome, cansado e mentalmente sobrecarregado demais para fazer mais perguntas.
- Preciso conseguir uma missao - murmurou Annabeth consigo mesma. - Eu nao sou jovem demais. Se eles ao menos me contassem qual e o problema.
Senti cheiro de churrasco vindo de algum lugar por perto. Annabeth deve ter ouvido meu estomago roncar. Disse-me para ir em frente, que me alcancaria depois. Eu a deixei no pier, correndo o dedo pela balaustrada como se estivesse desenhando um plano de batalha.
*****
De volta ao chale 11, todo mundo estava falando e se divertindo, esperando o jantar. Pela primeira vez, notei que muitos campistas tinham feicoes parecidas: narizes pontudos, sobrancelhas arqueadas, sorrisos maliciosos. Eram o tipo de crianca que os professores classificariam como encrenqueiros. Felizmente, ninguem prestou muita atencao em mim quando fui ate meu lugar no chao e me deixei cair com o chifre de minotauro.
O conselheiro, Luke, se aproximou. Ele tambem tinha a aparencia familiar de Hermes. Estava desfigurada pela cicatriz na face direita, mas o sorriso estava intacto.
- Arranjei um saco de dormir para voce - disse ele. - E, aqui, furtei para voce alguns artigos de toalete da loja do acampamento.
Nao deu para saber se ele estava brincando quanto aquela parte de furtar.
Eu disse:
- Obrigado.
- Sem problemas. - Luke sentou-se ao meu lado, descansando as costas contra a parede. - Primeiro dia dificil?
- Meu lugar nao e aqui - disse eu. - Nem mesmo acredito em deuses.
- E - disse ele. - Foi assim que todos nos comecamos. E depois que voce comeca a acreditar neles? Nao fica nem um pouco mais facil.
A amargura em sua voz me surpreendeu, porque Luke parecia ser o tipo de cara despreocupado. Parecia ser capaz de lidar com qualquer coisa.
- Entao seu pai e Hermes? - perguntei.
Ele puxou um canivete de mola do bolso de tras, e por um segundo, pensei que fosse me destripar, mas ele apenas raspou o barro da sola da sandalia.
- E, Hermes.
- O mensageiro com asas nos pes.
- E ele. Mensageiros. Medicina. Viajantes, mercadores, ladroes. Qualquer um que use as estradas. E por isso que voce esta aqui, desfrutando a hospitalidade do chale 11. Hermes nao e exigente com relacao a quem apadrinha.
Entendi que Luke nao queria me chamar de joao-ninguem. Apenas tinha muita coisa na cabeca.
- Voce ja encontrou seu pai? - perguntei.
- Uma vez.
Esperei, pensando que, se ele quisesse me contar, contaria. Aparentemente nao. Imaginei se a historia tinha alguma coisa a ver com como ele conseguira aquela cicatriz.
Luke ergueu os olhos e conseguiu sorrir.
- Nao se preocupe com isso, Percy. A maioria dos campistas aqui e boa gente. Afinal, somos uma grande familia, certo? Cuidamos um do outro.
Ele parecia entender o quanto me sentia perdido e eu estava grato por isso, porque um cara mais velho como ele - mesmo sendo um conselheiro - devia estar evitando um secundarista chato como eu. Mas Luke
me dera as boas-vindas ao chale. Ate mesmo furtara alguns artigos de toalete, o que era a coisa mais simpatica que alguem fizera por mim o dia inteiro.
Decidi fazer a minha ultima grande pergunta, aquela que vinha me incomodando a tarde toda.
- Clarisse, de Ares, debochou sobre eu ser um dos \Tres Grandes.. Depois, Annabeth... ela falou duas vezes que eu poderia ser \o cara.. Disse que devo falar com o Oraculo. O que quer dizer isso tudo?
Luke fechou o canivete.
- Odeio profecias.
- O que quer dizer?
Seu rosto deu uma estremecida em volta da cicatriz.
- Digamos apenas que eu compliquei as coisas para todos os outros. Nos ultimos dois anos, desde quando me dei mal em minha viagem ao Jardim das Hesperides, Quiron nao autorizou mais nenhuma missao. Annabeth esta morrendo de vontade de sair para o mundo. Ela importunou tanto Quiron que ele finalmente disse que ja conhecia o seu destino. Recebera uma profecia do Oraculo. Nao quis contar tudo a ela, mas disse que Annabeth ainda nao estava destinada a sair numa missao. Tinha de esperar ate... alguem especial vir para o acampamento.
- Alguem especial?
- Nao se preocupe com isso garoto - disse Luke. - Annabeth quer pensar que todo campista novo que chega aqui e o pressagio que ela esta esperando. Agora vamos, e hora do jantar.
No momento em que ele disse isso, uma trombeta soou a distancia. De algum modo eu sabia que era feita com uma concha de caramujo, apesar de nunca ter ouvido uma antes.
Luke gritou:
- Onze, reunir!
O chale inteiro, cerca de vinte de nos, formou uma fila no patio. Enfileiramo-nos por ordem de antiguidade, portanto e claro que eu era o ultimo. Vieram campistas tambem de outros chales, com excecao dos tres vazios no fim e do chale 8, que parecia normal durante o dia mas agora comecava a ter um brilho prateado a medida que o sol se punha.
Marchamos colina acima ate o pavilhao do refeitorio. Satiros vieram da campina e juntaram-se a nos. Naiades emergiram do lago de canoagem. Algumas outras meninas sairam dos bosques - e quando digo dos bosques, quero dizer dos bosques mesmo. Vi uma menina de nove ou dez anos fundir-se da lateral de um bordo e vir saltitando colina acima.
Ao todo, havia talvez uma centena de campista, algumas duzias de satiros e uma duzia de ninfas e naiades variadas.
No pavilhao, tochas ardiam em volta das colunas de marmore. Um fogo central queimava em um braseiro de bronze do tamanho de uma banheira. Cada chale tinha sua propria mesa, coberta com uma toalha branca com detalhes roxo. Quatro mesas estavam vazias, mas a do chale 11 era superlotada. Tive de me espremer na ponta de um banco, com metade do traseiro de fora.
Vi Grover sentado a mesa 12, e um par de meninos loiros gorduchos bem parecidos com o sr. D. Quiron ficou em pe ao lado, pois a mesa de piquenique era muito pequena para um centauro.
Annabeth sentou-se a mesa 6 com um bando de criancas atleticas de aparencia seria, todas com olhos cinzentos e cabelo loiro da cor do mel.
Clarisse sentou-se atras de mim a mesa de Ares. Parecia recuperada do banho, pois estava rindo e arrotando ao lado das amigas.
Finalmente, Quiron bateu o casco contra o piso de marmore do pavilhao e todos se calaram. Ele ergueu um copo.
- Aos deuses!
Todos ergueram os copos.
- Aos deuses!
Ninfas do bosque avancaram com bandejas de comida: uvas, macas, morangos, queijo, pao fresco e, sim, churrasco! Meu copo estava vazio, mas Luke disse;
- Fale com ele. Qualquer coisa que queria. Nao alcoolica, e claro.
- Cherry Coke - falei.
O copo se encheu de liquido espumante cor de caramelo.
Entao tive uma ideia.
- Cherry Coke azul.
O refrigerante assumiu um tom berrante de cobalto.
Tomei um gole cauteloso. Perfeito
Fiz um brinde a minha mae.
Ela nao se foi, disse a mim mesmo. De qualquer modo, nao para sempre. Ela esta no Mundo Inferior. E, se ele e um lugar real, entao algum dia...
- Vai, Percy - disse Luke, me passando uma travessa de peito defumado.
Enchi meu prato e estava prestes a dar uma grande garfada quando notei que todos se levantavam, levando os pratos para o fogo no centro do pavilhao. Imaginei se estavam indo buscar a sobremesa ou coisa assim.
- Venha - disse-me Luke.
Quando cheguei mais perto, vi que todos estavam pegando algo do prato e jogando dentro do fogo, o morango mais maduro, a fatia mais suculenta de carne, o pao mais quente e mais amanteigado.
Luke murmurou ao meu ouvido:
- Oferendas queimadas para os deuses. Eles gostam do cheiro.
- Fala serio!
O olhar dele me advertiu a nao debochar daquilo, mas nao pude deixar de me perguntar por que um ser imortal, todo-poderoso, gostaria do cheiro de comida queimada.
Luke aproximou-se do fogo, inclinou a cabeca e atirou um cacho de uvas gordas e vermelhas.
- Hermes.
Eu era o proximo.
Eu gostaria de saber o nome de qual deus eu devia dizer.
Acabei fazendo um pedido silencioso. Quem quer que seja, conte-me. Por favor.
Empurrei uma grande fatia de peito para as chamas.
Quando inalei um pouco de fumaca, nao engasguei
Nao parecia nem um pouco cheiro de comida queimada. Cheirava a chocolate quente e brownies recem-assados, hamburgueres grelhados e flores silvestres, e uma centena de outras coisas boas que nao deviam combinar, mas combinavam. Dava ate para acreditar que os deuses podiam viver daquela fumaca.
Depois que todos voltaram aos lugares e terminaram de comer, Quiron bateu novamente o casco para chamar nossa atencao.
O sr. D levantou-se com um enorme suspiro.
- Sim, suponho que deva dizer ola a todos voces, moleques. Bem, ola. Nosso diretor de atividades, Quiron, diz que a proxima captura da bandeira sera na sexta-feira. Atualmente, o chale 5 detem os laureis.
Um monte de aplausos disformes se ergueu da mesa de Ares.
- Pessoalmente - continuou o sr. D -, nao me importo nem um pouco, mas congratulacoes. Tambem devo lhes dizer que temos um novo campista hoje. Peter Johnson.
Quiron murmurou alguma coisa.
- Ahn, Percy Jackson - corrigiu o sr. D. - Esta certo. Viva, e tudo o mais. Agora vao correndo para a sua fogueira boba. Andem.
Todos aplaudiram. Dirigimo-nos para o anfiteatro, onde o chale de Apolo liderou a cantoria. Cantamos cancoes de acampamento sobre os deuses, comemos besteiras e nos divertimos, e o engracado foi que nao senti ninguem mais olhando para mim. Era como estar em casa.
Mais a noite, quando as fagulhas da fogueira se enroscavam em um ceu estrelado, a trombeta de caramujo soou de novo, e todos nos formamos filas para voltar aos nossos chales. Nao me dei conta de como estava exausto ate desmoronar em meu saco de dormir emprestado.
Meus dedos se fecharam em volta do chifre do Minotauro. Pensei em minha mae, mas tive bons pensamentos: o sorriso dela, as historias que lia para mim antes de dormir quando eu era pequeno, o jeito como me dizia para nao deixar os percevejos morderem.
Quando fechei os olhos, adormeci instantaneamente.
Assim foi meu primeiro dia no Acampamento Meio-Sangue.
Queria ter sabido antes que em tao pouco tempo passaria a gostar do meu novo lar.
OITO . Nos capturamos uma bandeira.
Em poucos dias me acomodei em uma rotina que parecia quase normal, se descontarmos o fato de que eu tinha aulas com satiros, ninfas e um centauro.
Todas as manhas estudava grego antigo com Annabeth e conversavamos sobre deuses e deusas no presente, o que era um pouco estranho. Descobri que Annabeth estava certa a respeito de minha dislexia: o grego antigo nao era tao dificil de ler. Pelo menos, nao mais dificil que ingles. Depois de algumas manhas eu ja conseguia ler sem muita dor de cabeca algumas linhas de Homero, tropecando aqui e ali.
No resto do dia eu alternava atividades ao ar livre, procurando alguma coisa em que fosse bom. Quiron tentou me ensinar arco-e-flecha, mas descobrimos bem depressa que eu nao dava para aquilo. Ele nao reclamou nem mesmo quando teve de arrancar de sua cauda uma flecha perdida.
Corrida? Eu tambem nao era bom. As instrutoras, as ninfas do bosque, me faziam comer poeira. Disseram-me para nao me preocupar com isso. Tiveram seculos de praticas fugindo de deuses apaixonados. Mas ainda assim era meio humilhante ser mais lento que uma arvore.
E as lutas? Esqueca. Toda vez que ia para a esteira, Clarisse acabava comigo.
\E vem mais por ai, seu Mane., murmurava ao meu ouvido.
A unica coisa em que eu era mesmo excelente era canoagem, e essa nao era o tipo de habilidade de heroi que as pessoas esperavam do cara que venceu o Minotauro.
Sabia que os campistas mais velhos e os conselheiros me observavam, tentando concluir quem era meu pai, mas nao estava sendo facil para eles. Eu nao era tao forte quanto os garotos de Ares, nem tao bom em arco-e-flecha quanto os garotos de Apolo. Nao tinha a pericia de Hefesto com metais ou - os deuses me livrem - o jeito de Dionisio com as vinhas. Luke me disse que eu podia ser filho de Hermes, uma especie de pau para toda obra, mestre nada. Mas eu tinha a sensacao de que ele so estava tentando me fazer sentir melhor. Na verdade, tambem nao sabia o que fazer comigo.
A despeito disso tudo, eu gostava do acampamento. Eu me acostumei com a neblina matinal sobre a praia, com o cheiro dos campos de morangos a tarde e ate com os ruidos esquisitos dos monstros nos bosques à noite. Eu jantava com o chalé 11, empurrava parte da minha refeição para o fogo e tentava sentir alguma conexão com meu verdadeiro pai. Não vinha nada. Apenas aquela sensação morna que eu sempre tive, a lembrança do seu sorriso. Tentei não pensar demais em minha mãe, mas ficava matutando: se deuses e monstros eram reais, se todas aquelas coisas mágicas eram possíveis, certamente haveria algum jeito de salvá-la, de trazê-la de volta...
Comecei a entender o ressentimento de Luke e como ele parecia magoado com o pai, Hermes. Certo, talvez os deuses tivessem tarefas importantes a fazer. Mas não poderiam fazer uma visita de vez enquando, trovejar ou alguma coisa? Dionísio podia fazer Diet Coke aparecer do nada. Por que meu pai, quem quer que fosse, não podia fazer aparecer um telefone?
*****
Quinta-feira à tarde, três dias depois de chegar ao Acampamento Meio-Sangue, tive minha primeira aula de esgrima. Todos do chalé 11 se reuniram na grande arena circular, onde Luke seria nosso instrutor.
Começamos com estocadas e cutiladas básicas, usando bonecos recheados de palha com armaduras gregas. Acho que fui bem. Pelo menos entendi o que devia fazer e meus reflexos foram bons.
O problema era que eu não conseguia encontrar uma lâmina que se adaptasse às minhas mãos. Eram pesadas demais, leves demais ou compridas demais. Luke fez o melhor que pôde para me ajudar, mas concordou que nenhuma das lâminas de prática parecia funcionar para mim.
Passamos adiante, para duelo em duplas. Luke anunciou que seria meu parceiro, já que era a minha primeira vez.
- Boa sorte - disse um dos campistas. - Luke é o melhor espadachim dos últimos trezentos anos.
- Talvez ele pegue leve comigo - comentei.
O campista riu, desdenhoso.
Luke me mostrou as estocadas, paradas e defesas com escudo do jeito difícil. A cada golpe eu estava um pouco mais surrado e contundido.
- Mantenha a guarda alta, Percy - dizia ele, e então me atingia com força nas costelas usando a parte chata da lâmina. - Não, não tanto assim! - Plaft! - Ataque! - Plaft! - Agora, recue! - Plaft!
Quando ele pediu um tempo, eu estava empapado de suor. Todos correram para o isopor de bebidas. Luke despejou água gelada em cima da própria cabeça, o que me pareceu uma ótima idéia. Fiz a mesma coisa.
Na mesma hora me senti melhor. A força percorreu novamente os meus braços. A espada não parecia mais tão difícil de manejar.
- O.k., todo mundo em circulo! - ordenou Luke. - Se Percy não se importar, vou fazer uma pequena demonstração.
Incrível, pensei. Vamos todos assistir enquanto Percy é triturado.
Os garotos de Hermes se reuniram em volta. Estavam todos contendo o riso. Imaginei que já tinham passado por aquilo e mal podiam esperar para ver Luke me usar como saco de pancadas. Ele disse a todos que ia mostrar uma técnica para desarmar o oponente: como girar a lâmina do inimigo com a parte chata da própria espada para que ele não tenha alternativa a não ser deixar a arma cair.
- Isso é difícil - enfatizou. - Já usaram contra mim. Não riam de Percy agora. A maioria dos espadachins precisa trabalhar anos para dominar essa técnica.
Ele demonstrou o movimento para mim em câmera lenta. Como previsto, a espada pulou da minha mão.
- Agora, em tempo real - disse ele depois que recuperei minha arma. - Vamos fazer o movimento até que um de nós tenha sucesso. Pronto, Percy?
Eu assenti, e Luke veio para cima de mim. De algum modo, eu o impedi de golpear o cabo da minha espada. Meus sentidos se aguçaram. Vi seus ataques chegando. Eu rebati. Dei um passo à frente e tentei minha própria estocada. Luke a revidou facilmente, mas notei uma mudança em seu rosto. Seus olhos se estreitaram, e ele começou a me pressionar com mais força.
A espada estava pesando em minha mão. Mas equilibrada. Eu sabia que era apenas uma questão de segundos antes que Luke me derrubasse, então decidi: Que se dane!
Tentei a manobra para desarmar.
Minha lâmina atingiu a base da de Luke e eu a girei, pondo todo o meu peso em um golpe para baixo.
Plem!
A espada de Luke retiniu contra as paredes. A ponta da minha lâmina estava a dois centímetros do seu peito desprotegido.
Os outros campistas ficaram em silencio.
Baixei a minha espada.
- Ahn, sinto muito.
Por um momento, Luke ficou perplexo demais para falar.
- Sinto muito? - Seu rosto marcado abriu-se num sorriso. - Pelos deuses, Percy, você sente muito?
Mostre-me aquilo de novo!
Eu não queria. A rápida explosão de energia maníaca me abandonara completamente. Mas Luke insistiu.
Dessa vez, não houve disputa. No momento em que nossas espadas entraram em contato, Luke atingiu o cabo da minha, que saiu deslizando pelo chão.
Depois de uma longa pausa, alguém do público disse:
- Sorte de principiante?
Luke enxugou o suor da testa. Ele me avaliou com um interesse totalmente novo.
- Talvez - disse. - Mas fico pensando o que Percy poderia fazer com uma espada equilibrada...
*****
Sexta-feira à tarde. Eu estava sentado com Grover perto do lago, descansando de uma experiência quase fatal no muro de escalada. Grover subira até o topo como um bode montanhês, mas a lava por pouco não me atingiu. Minha camisa ficou com buracos fumegantes. Os pêlos dos meus antebraços ficaram chamuscados.
Sentamos no píer, olhando as náiades que teciam cestos embaixo d’água, até que reuni coragem para pergunta a Grover como tinha sido a conversa com o sr. D.
Seu rosto assumiu um tom doentio de amarelo.
- Ótima - disse. - Legal mesmo.
- Então sua carreira ainda está nos trilhos?
Ele me lançou um olhar nervoso.
- Quíron c-contou a você que eu quero uma licença de buscador?
- Bem... não. - Eu não tinha idéia do que era uma licença de pesquisador, mas aquele não parecia ser o momento certo para perguntar. - Ele só me disse que você tinha grandes planos, sabe... e que precisava de reconhecimento por completar uma tarefa. Então você conseguiu?
Grover baixou os olhos para as náiades.
- O sr. D suspendeu o julgamento. Disse que ainda não fracassei nem tive sucesso com você, portanto nossos destinos ainda estão ligados. Se você ganhar uma missão, eu for junto para protegê-lo e nós dois voltarmos vivos, então talvez ele considere a tarefa concluída.
Meu ânimo melhorou.
- Bem, isso não é mau, certo?
- Bééé-é-é! Ele poderia igualmente ter me transferido para o serviço de limpeza de estábulos. As chances de você ganhar uma missão... e mesmo se ganhasse, por que haveria de querer que eu fosse junto?
- É claro que eu ia querer você junto!
Grover continuou olhando melancolicamente para a água.
- Tecer cestas... Deve ser bom ter uma habilidade útil.
Tentei convencê-lo de que ele tinha uma porção de talentos, mas isso só o fez parecer ainda mais infeliz. Conversamos sobre canoagem e esgrima por algum tempo, e então debatemos os prós e os contras dos diferentes deuses. Por fim, perguntei-lhe sobre os quatro chalés vazios.
- O número 8, o prateado, pertence a Ártemis - disse ele. - Ela jurou ser virgem para sempre. Portanto, é claro, sem filhos. O chalé é honorário, entende? Se ela não tivesse um ficaria zangada.
- Sim, certo. Mas os outros três, os que ficam no fim. São os Três Grandes?
Grover ficou tenso. Estávamos chegando perto de um assunto delicado.
- Não. Um deles, o de número 2, é de Hera - disse ele. - É outra coisa honorária. Ela é a deusa do casamento, portanto é claro que não iria sair por aí tendo casos com mortais. Isso é serviço do marido dela. Quando falamos dos Três Grandes, queremos dizer os três irmãos poderosos, os filhos de Cronos.
- Zeus, Poseidon e Hades.
- Certo. Você sabe. Depois da grande batalha com os Titãs, eles tomaram o mundo do pai e tiraram a sorte para decidir quem ficava com o quê.
- Zeus ficou com o céu - lembrei. - Poseidon, com o mar, Hades, com o Mundo Inferior.
- A-hã.
- Mas Hades não tem chalé aqui.
- Não. Também não tem um trono no Olimpo. Ele, bem, fica na dele lá embaixo no Mundo Inferior. Se tivesse um chalé aqui... - Grover estremeceu. - Bem, isso não seria agradável. Vamos deixar assim.
- Mas Zeus e Poseidon... os dois tinham zilhões de filhos nos mitos. Por que os chalés deles estão vazios?
Grover se balançou de um casco para outro, pouco à vontade.
- Há cerca de sessenta anos, depois da Segunda Guerra Mundial, os Três Grandes combinaram que não iriam procriar mais nenhum herói. Os filhos deles eram poderosos demais. Estavam interferindo muito no curso dos eventos humanos, causando muitas carnificinas. A Segunda Guerra Mundial, sabe, foi basicamente uma luta entre os filhos de Zeus e Poseidon, de um lado, e os filhos de Hades do outro. O lado vencedor, Zeus e Poseidon, obrigou Hades a fazer um juramento junto com eles: nada de casos com mulheres mortais. Todos juraram sobre o rio Styx.
Um trovão.
- Esse é o juramento mais sério que se pode fazer - disse eu.
Grover assentiu.
- E os irmãos mantiveram a palavra, sem filhos?
O rosto de Grover se anuviou.
- Há dezessete anos, Zeus retornou aos maus hábitos. Havia uma estrela de tevê com um penteado alto e armado, estilo anos 80... Ele simplesmente não conseguiu evitar. Quando o bebê nasceu, uma menininha chamada Thalia... Bem, o rio Styx é sério no que diz respeito a promessas. Zeus se safou com facilidade porque é imortal, mas causou um destino terrível para sua filha.
- Mas isso não é justo! Não foi culpa da menininha.
Grover hesitou.
- Percy, os filhos dos Três Grandes são mais poderosos que os outros meios-sangues. Eles têm uma aura forte, um odor que atrai monstros. Quando Hades descobriu a respeito da criança, não ficou muito feliz com o fato de Zeus ter quebrado o juramento. Hades libertou os piores monstros do Tártaro para atormentar Thalia. Um sátiro foi designado para ser guardião dela quando completou doze anos, mas não havia nada que pudesse fazer. Ele tentou escoltá-la para cá com outros meios-sangues com quem ela fizera amizade. Eles quase conseguiram. Chegaram até o topo da colina.
Ele apontou para o outro lado do vale, para o pinheiro onde eu enfrentara o Minotauro.
- As três Benevolentes estavam atrás deles com um bando de cães infernais. Estavam quase sendo alcabçados quando Thalia disse a seu sátiro que levasse os outros dois meios-sangues para um lugar seguro enquanto ela tentava conter os monstros. Estava ferida e cansada, e não desejava viver como um animal caçado. O sátiro não queria deixá-la, mas não conseguiu fazê-la mudar de idéia e tinha de proteger os outros. Assim, Thalia defendeu-se no final sozinha, no topo daquela colina. Quando ela morreu, Zeus se apiedou dela. Transformou-a naquele pinheiro. Seu espírito ainda ajuda a proteger as fronteiras do vale. É por isso que a colina é chamada Colina Meio-Sangue.
Olhei para o pinheiro distante.
A história me fez sentir oco, e também culpado. Uma menina da minha idade se sacrificara para salvar os amigos. Enfrentara todo um exército de monstros. Perto disso, minha vitória sobre o Minotauro não parecia grande coisa. Perguntei a mim mesmo se agindo diferente poderia ter salvado minha mãe.
- Grover, os heróis realmente partiram em missões para o Mundo Inferior?
- Algumas vezes - disse ele. - Orfeu. Hércules. Houdini.
- E chegaram a trazer alguém de volta da morte?
- Não. Nunca. Orfeu chegou perto.... Percy, você não está pesando mesmo em...
- Não - menti. - Estava só imaginando. Então... um sátiro é sempre designado para guardar um semideus?
Grover me estudou cauteloso. Eu não o tinha convencido de que desistira da idéia do Mundo Inferior.
- Nem sempre. Vamos disfarçados para uma porção de escolas. Tentamos farejas os meios-sangues que tenham atributos de grandes heróis. Se encontramos um com uma aura muito forte, como uma criança dos Três Grandes, alertamos Quíron. Ele tenta ficar de olho neles, já que podem causar problemas realmente enormes.
- E você me encontrou. Quíron disse que você achava que eu poderia ser algo especial.
Grover soou como se eu acabasse de atraí-lo para uma armadilha.
- Eu não... Ora, escute, não pense assim. Se você fosse... você sabe... jamais lhe permitiriam uma missão, e eu jamais teria a minha licença. Você provavelmente é filho de Hermes. Ou talvez até de um dos deuses menores, como Nêmesis, a deusa da vingança. Não se preocupe, ta?
Percebi que ele estava tentando tranqüilizar mais a si mesmo que a mim.
*****
Naquela noite após o jantar havia muito mais agitação que de costume.
Finalmente, era hora da captura da bandeira.
Quando os pratos foram levados embora, a trombeta de caramujo soou e todos nos postamos junto às nossas mesas.
Os campistas gritaram e aplaudiram quando Annabeth e dois de seus irmãos entraram correndo no pavilhão, carregando um estandarte de seda. Tinha cerca de três metros de comprimento, reluzindo em cinza, com a pintura de uma coruja em cima de uma oliveira. Do lado oposto do pavilhão, Clarisse e as amigas entraram correndo com outro estandarte, de tamanho idêntico, mas vermelho-brilhante, com a pintura de uma lança sanguinolenta e uma cabeça de javali.
Virei-me para Luke e gritei por cima do barulho:
- Aquelas são as bandeiras?
- Sim.
- Ares e Atena sempre lideram as equipes?
- Nem sempre - disse ele. - Mas freqüentemente.
- Então, se um outro chalé capturar uma delas, o que vocês fazem, pintam de novo a bandeira?
Ele sorriu ironicamente.
- Você vai ver. Primeiro temos de conseguir uma.
- De que lado nós estamos?
Ele me deu uma olhada astuta, como se soubesse algo que eu não sabia. A cicatriz em seu rosto o fazia parecer quase mau à luz das tochas.
- Fizemos uma aliança temporária com Atena. Esta noite, tiraremos a bandeira de Ares. E voce vai ajudar.
As equipes foram anunciadas. Atena tinha feito uma alianca com Apolo e Hermes, os dois chales maiores. Aparentemente, haviam trocados privilegios - horarios de chuveiro, escala de deveres, as melhores posicoes nas atividades - a fim de ganhar apoio.
Ares tinha se aliado a todos os outros: Dionisio, Demeter, Afrodite e Hefesto. Pelo que eu tinha visto, os campistas de Dionisio eram na verdade bons atletas, mas havia apenas dois deles. Os de Demeter tinham ligeira vantagem em habilidades na natureza e atividades ao ar livre, mas nao eram muito agressivos. Como os filhos e filhas de Afrodite eu nao estava muito preocupado. Eles, na maioria das vezes, esperavam sentados todas as atividades acabarem e iam conferir seus reflexos no lago, penteavam os cabelos e fofocavam. Os de Hefesto nao eram bonitos, e havia apenas quatro deles, mas eram grandes e corpulentos de tanto trabalhar na oficina de metais o dia inteiro. Poderiam ser um problema. Com isso, e claro, restava o chale de Ares: uma duzia dos maiores, mais feios e mais perversos garotos e garotas de Long Island, ou de qualquer outro lugar no planeta.
Quiron bateu o casco no marmore.
- Herois! - anunciou. - Voces conhecem as regras. O riacho e o limite. A floresta inteira esta valendo. Todos os itens magicos sao permitidos. A bandeira deve ser ostentada de modo destacado e nao deve ter mais de dois guardas. Os prisioneiros podem ser desarmados, mas nao podem ser amarrados ou amordacados. Nao e permitido matar nem aleijar. Servirei de juiz e medico do campo de batalha. Armem-se!
Ele estendeu as maos e as mesas subitamente se cobriram de equipamentos: capacetes, espadas de bronze, lancas, escudos de couro de boi recobertos de metal.
- Uau! - falei. - Temos mesmo que usar isso?
Luke olhou para mim como se eu estivesse louco.
- A nao ser que voce queira ser espetado pelos seus amigos do chale. Aqui... Quiron achou que estes devem lhe servir. Voce ficara na patrulha da fronteira.
Meu escudo era do tamanho de uma tabela de basquete da NBA, com um grande caduceu no meio. Pesava cerca de um milhao de quilos. Eu poderia muito bem usa-lo como prancha de snowboard, mas tinha esperancas de que ninguem tivesse expectativas reais de que eu corresse com aquilo. Meu capacete, como todos os capacetes do lado de Atena, tinha um penacho de crina azul no topo. Ares e seus aliados tinham penachos vermelhos.
Annabeth gritou:
- Equipe azul, para frente!
Aplaudimos e agitamos nossas espadas, e a seguimos para baixo pelo caminho para os bosques do sul. A equipe vermelha gritou nos provocando enquanto seguia em direcao ao norte.
Consegui alcancar Annabeth sem tropecar em meu proprio equipamento.
- Ei!
Ela continuou marchando.
- Entao, qual e o plano? - perguntei. - Tem alguns itens magicos para me emprestar?
A mao dela se desviou para o bolso, como se estivesse com medo de que eu roubasse alguma coisa.
- So digo para ter cuidado com a lanca de Clarisse. Voce nao vai querer que aquela coisa toque em voce. Fora isso, nao se preocupe. Vamos tomar a bandeira de Ares. Luke determinou sua tarefa?
- Patrulha de fronteira, seja la o que isso for.
- E facil. Fique junto ao riacho, mantenha os vermelhos longe. Deixe o resto comigo. Atena sempre tem um plano.
Ela seguiu adiante, me deixando na poeira.
- Certo - murmurei. - Fico contente por me querer na sua equipe.
Era uma noite quente e umida, grudenta. Os bosques estavam escuros, com vaga-lumes aparecendo e sumindo. Annabeth me designou para um pequeno regato que rumorejava por cima de algumas pedras, depois ela e o restante da equipe se espalharam entre as arvores.
Ali sozinho, com meu grande capacete de penacho azul e meu enorme escudo, me senti um idiota. A espada de bronze, como todas as espadas que eu experimentara ate entao, parecia mal equilibrada. O cabo de couro pesava em minha mao como uma bola de boliche.
Nao havia como alguem me atacar de verdade, nao e? Quer dizer, o Olimpo tinha de ter responsabilidade, certo?
Longe, a trombeta de caramujo soou. Ouvi brados e gritos nos bosques, metais chocando-se, gente lutando. Um aliado de Apolo de penacho azul passou por mim correndo como um cervo, pulou o regato e desapareceu em territorio inimigo.
Essa e boa, pensei. Vou ficar de fora da diversao, como sempre.
Entao ouvi um som que me deu um calafrio na espinha, um rosnado canino grave em algum lugar por perto.
Ergui o escudo instintivamente; tinha a sensacao de que alguma coisa estava me espreitando.
Entao o rosnado parou. Senti a presenca recuando.
Do outro lado do regato, a vegetacao rasteira explodiu. Cinco guerreiros de Ares sairam gritando e berrando da escuridao.
- Acabem com o Mane! - berrou Clarisse.
Seus olhos feios de porco faiscaram nas fendas do capacete. Ela brandiu uma lanca de um metro e meio de comprimento, a ponta de metal farpado lancando chispas de luz vermelha. Seus irmaos so tinham espadas de bronze comuns - nao que isso me fizesse sentir melhor.
Eles atacaram cruzando o regato. Nao havia ajuda a vista. Eu podia correr. Ou podia me defender contra a metade do chale de Ares.
Consegui me esquivar do golpe do primeiro garoto, mas aqueles caras nao eram estupidos como o Minotauro. Eles me cercaram, e Clarisse investiu contra mim com sua lanca. Meu escudo desviou a ponta, mas senti um formigamento doloroso em todo o corpo. Meus cabelos se ericaram. O braco que segurava o escudo ficou dormente e o ar queimou.
Eletricidade. Aquela lanca estupida era eletrica. Eu recuei.
Outro cara de Ares me golpeou no peito com a parte mais grossa da espada e eu cai.
Eles podiam ter me chutado ate eu virar geleia, mas estavam muito ocupados rindo.
- Facam um corte no cabelo dele - disse Clarisse. - Agarrem o cabelo dele.
Consegui me por de pe. Ergui a espada, mas Clarisse a jogou violentamente para o lado com sua lanca, e fagulhas voaram. Agora meus bracos estavam dormentes.
- Ah, uau! - disse Clarisse. - Estou com medo desse cara. Realmente apavorada.
- A bandeira esta para la - disse a ela. Queria parecer zangado, mas acho que nao consegui.
- E - disse um dos irmaos dela. - Mas, veja bem, nos nao nos importamos com a bandeira. A gente se importa com um cara que fez o pessoal do nosso chale de idiota.
- Voces nao precisam de mim para isso. - Provavelmente nao foi a coisa mais esperta a dizer.
Dois deles vieram para cima de mim. Recuei em direcao ao regato, tentei erguer meu escudo, mas Clarisse era muito rapida. Sua lanca me pegou bem nas costelas. Se eu nao estivesse usando uma armadura blindada, teria virado churrasco no espeto. Do jeito que foi, a ponta eletrica quase fez meus dentes saltarem da boca com o choque. Um de seus colegas de chale desferiu a espada contra o meu braco, fazendo um bom talho.
Ver meu proprio sangue me deixou zonzo - quente e frio ao mesmo tempo.
- Sem aleijar - consegui dizer.
- Oops - disse o cara. - Acho que perdi meu direito a sobremesa.
Ele me empurrou para o regato e eu cai espalhando agua. Todos riram. Calculei que assim que acabassem de se divertir eu iria morrer. Mas entao algo aconteceu. A agua pareceu despertar meus sentidos, como se eu tivesse acabado de comer um saco duplo das jujubas da minha mae.
Clarisse e seus companheiros de chale entraram no regato para me pegar, mas eu me pus de pe para recebe-los. Sabia o que fazer. Desferi a parte chata da minha espada contra a cabeca do primeiro cara e arranquei seu capacete. Atingi-o com tanta forca que pude ver seus olhos tremendo enquanto ele desmoronava na agua.
O Feio Numero 2 e o Feio Numero 3 vieram para cima de mim. Golpeei um no rosto com o escudo e usei a espada para decepar o penacho da crina do outro. Os dois recuaram depressa. O Feio Numero 4 nao
pareceu muito ansioso para atacar, mas Clarisse continuava vindo, a ponta da lanca crepitando de eletricidade. Assim que ela investiu, peguei a vara da lanca entre a borda do meu escudo e a minha espada, e a parti como se fosse um graveto.
- Ah! - berrou ela. - Seu idiota! Seu verme com bafo de cadaver!
Ela provavelmente ainda teia dito coisas piores, mas eu a golpeei entre os olhos com a base da espada e a joguei cambaleando de costas para fora do regato.
Entao ouvi gritos exultantes, e vi Luke correndo em direcao a linha limite com o estandarte da equipe vermelha erguido alto. Vinha flanqueado por alguns garotos de Hermes, cobrindo a sua retirada, e alguns Apolos atras dele, combatendo os garotos de Hefesto. O pessoal de Ares se levantou e Clarisse resmungou uma praga estupefata.
- Uma armadilha! - berrou. - Foi uma armadilha.
Eles sairam cambaleando atras de Luke, mas era tarde demais. Todo mundo convergiu para o regato enquanto Luke atravessava para territorio amigo. Nosso lado explodiu em vivas. O estandarte vermelho tremulou e ficou prateado. O javali e a lanca foram substituidos por um enorme caduceu, o simbolo do chale 11. Todos da equipe azul ergueram Luke nos ombros e comecaram a carrega-lo. Quiron saiu a meio galope do bosque e soprou a trombeta de caramujo.
O jogo terminara. Tinhamos vencidos.
Eu estava prestes a me juntar a comemoracao quando a voz de Annabeth, bem a meu lado no regato, disse:
- Nada mau, heroi.
Eu olhei, mas ela nao estava la.
- Onde diabo aprendeu a lutar assim? - perguntou ela. O ar tremulou e Annabeth se materializou, segurando um bone de beisebol dos Yankees como se tivesse acabado de tira-lo da cabeca.
Senti que estava ficando zangado. Nao fiquei nem mesmo perturbado com o fato de ela estar invisivel um segundo antes.
- Voce armou isso para mim - disse eu. - Voce me pos aqui porque sabia que Clarisse viria atras de mim, enquanto voce mandava Luke dar a volta pelos flancos. Ja tinha tudo preparado.
Annabeth encolheu os ombros.
- Eu disse para voce. Atena sempre, sempre tem um plano.
- Um plano para que eu fosse reduzido a po.
- Eu vim o mais rapido que pude. Estava pronta para entrar na briga, mas... - Ela encolheu os ombros. - Voce nao precisava de ajuda.
Entao ela reparou no braco ferido:
- Como arranjou isso?
- Corte de espada - disse eu. - O que voce acha?
- Nao. Era um corte de espada. Olhe so.
O sangue se fora. No lugar do rasgo enorme havia uma longa cicatriz branca, e mesmo estava desaparecendo. Enquanto eu olhava, ela se transformou em uma cicatriz pequena e sumiu.
- Eu... eu nao entendo - disse.
Annabeth raciocinava com empenho. Eu quase podia ver as engrenagens girando. Ela baixou os olhos para os meus pes, depois para a lanca quebrada de Clarisse e disse:
- Saia da agua, Percy.
- O que...
- Apenas saia.
Sai do regato e logo me senti extremamente cansado. Meus bracos comecaram a ficar dormentes de novo. Minha descarga de adrenalina me abandonou. Quase cai, mas Annabeth me segurou.
- Oh, Styx - praguejou ela. - Isso nao e bom. Eu nao queria... Eu pensei que podia ser Zeus...
Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer, ouvi o rosnado canino de novo, porem muito mais perto. Um uivo cortou a floresta.
A comemoracao dos campistas cessou imediatamente. Quiron bradou alguma coisa em grego antigo que eu, so mais tarde me daria conta, tinha entendido perfeitamente:
- Preparem-se! Meu arco!
Annabeth sacou a espada.
Sobre as pedras, logo acima de nos, havia um cao preto de tamanho de um rinoceronte, com olhos vermelhos como lava e presas que pareciam punhais.
Estava olhando diretamente para mim.
Ninguem se moveu exceto Annabeth, que gritou:
- Percy, corra!
Ela tentou se interpor entre mim e o cao, mas o bicho foi rapido demais. Pulou por cima dela - uma enorme sombra com dentes - e, assim que me atingiu, quando cambaleei para tras e senti as garras afiadas como navalhas rasgando minha armadura, houve uma cascata de sons de pancadas, como quarenta pedacos de papel sendo rasgados um apos o outro. Um amontoado de flechas brotou no pescoco do cao. O monstro caiu morto aos meus pes.
Por algum milagre eu ainda estava vivo. Nao quis olhar embaixo das ruinas da minha armadura esfrangalhada. Meu peito parecia morno e molhado, e eu sabia que estava gravemente ferido. Mais um segundo e o monstro teria me transformado em quarenta e cinco quilos de carne fatiada.
- Di immortales! - disse Annabeth. - Aquilo e um cao infernal dos Campos de Punicao. Eles nao... eles nao deviam...
- Alguem o convocou - disse Quiron. - Alguem de dentro do acampamento.
Luke se aproximou, o estandarte esquecido em suas maos, o momento de gloria acabado.
Clarisse berrou:
- E tudo culpa do Percy! Percy o convocou!
- Fique quieta, crianca - ordenou-lhe Quiron.
Nos assistimos enquanto o cao infernal se dissolvia em sombra e era absorvido pela terra ate desaparecer.
- Voce esta ferido - disse-me Annabeth. - Rapido, Percy, entre na agua.
- Eu estou bem.
- Nao, voce nao esta - disse ela. - Quiron, veja isto.
Eu estava cansado demais para discutir. Voltei para dentro do regato, o acampamento inteiro reunido a minha volta.
No mesmo instante me senti melhor. Pude perceber os cortes em meu peito se fechando. Alguns dos campistas sufocaram um grito.
- Olhem, eu... eu nao sei por que - falei, tentando me desculpar. - Sinto muito.
Mas eles nao estavam olhando minhas feridas cicatrizarem. Olhavam para algo acima da minha cabeca.
- Percy - disse Annabeth apontando. - Ahn...
Quando olhei para cima, o sinal ja estava desaparecendo, mas ainda pude distinguir o holograma de luz verde, girando e cintilando. Uma lanca de tres pontas: um tridente.
- Seu pai - murmurou Annabeth. - Isso realmente nao e bom.
- Esta determinado - anunciou Quiron.
Por toda a minha volta, os campistas comecaram a se ajoelhar, ate mesmo o chale de Ares, embora nao parecessem muito felizes com isso.
- Meu pai? - perguntei, completamente perplexo.
- Poseidon - disse Quiron. - Senhor dos Terremotos. Portador das Tempestades. Pai dos Cavalos. Salve, Perseu Jackson, Filho do Deus do Mar.
NOVE . Oferecem-me uma missao.
Na manha seguinte, Quiron me mudou para o chale 3.
Nao tive de compartilha-lo com ninguem. Tinha espaco a vontade para todas as minhas coisas: o chifre do Minotauro, um conjunto de roupas de reserva e uma sacola de artigos de toalete. Ia me sentar a minha propria mesa de jantar, escolhia todas as minhas atividades, determinava o \apagar das luzes. sempre que tinha vontade e nao ouvia mais ninguem.
E me sentia totalmente infeliz.
Bem quando comecava a me sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chale 11 e poderia ser um garoto normal - ou tao normal quanto e possivel quando se e um meio-sangue -, fui separado como se tivesse alguma doenca rara.
Ninguem mencionou o cao infernal, mas tive a sensacao de que estavam todos falando sobre isso pelas minhas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas mensagens: a primeira, que eu era filho do Deus do mar; a segunda, que os monstros nao mediriam esforcos para me matar. Podiam ate invadir um acampamento que sempre foi considerado seguro.
Os outros campistas mantinham distancia de mim na medida do possivel. O chale 11 estava agitado demais para receber aula de esgrima junto comigo depois do que eu fizera com o pessoal de Ares no bosque, e assim minhas aulas com Luke passaram a ser particulares. Ele me exigia mais do que nunca, e nao tinha medo de me machucar.
- Voce vai precisar de todo o treinamento que puder obter - prometeu, enquanto trabalhavamos com espadas e tochas flamejantes. - Agora vamos tentar de novo aquele golpe de decapitar viboras. Mais cinquenta repeticoes.
Annabeth ainda me ensinava grego pela manha, mas aprecia distraida. A cada vez que eu dizia alguma coisa, ela fechava a cara, como se eu tivesse acabado de lhe dar um soco.
Depois das aulas, ela ia embora resmungando consigo mesma:
- Missao... Poseidon?... Grande porcaria... Preciso de um plano...
Ate Clarisse mantinha distancia, embora os olhares venenosos deixassem claro que queria me matar por ter quebrado sua lanca magica. Queria que ela simplesmente gritasse, me desse um soco ou coisa assim. Era melhor me meter em brigar todos os dias a ser ignorado.
*****
Soube que alguem no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei no meu chale e achei um jornal horrivel jogado porta adentro, um exemplar do New York Daily News, aberto na pagina Metropole. Levei quase uma hora para ler a materia, porque quanto mais ficava zangado mais as palavras pareciam flutuar na pagina.
MENINO E SUA MAE AINDA DESAPARECIDOS DEPOIS DE ESTRANHO ACIDENTE DE CARRO
Por Ellen Smythe
Sally Jackson e seu filho Percy ainda nao foram encontrados uma semana depois de seu misterioso desaparecimento. O carro da familia, um Camaro 1978, totalmente queimado, foi descoberto no ultimo sabado em uma estrada ao norte de Long Island com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado por varias centenas de metros antes de explodir.
Mae e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas sairam as pressas, sob circunstancias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro e perto da cena do desastre, mas nao havia outros indicios dos Jackson desaparecidos. Residentes da area rural declararam nao ter visto nada de inusitado por volta da hora do acidente.
O marido da sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, e uma crianca problematica que foi expulsa de inumeros internatos e demonstrou tendencias violentas no passado.
A policia nao diz se o filho Percy e suspeito do desaparecimento da mae, porem nao descarta a hipotese de crime. Abaixo estao fotografias recentes de Sally Jackson e Percy. A policia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informacao que ligue gratuitamente para o disque-denuncia de crimes, a seguir.
O numero do telefone estava circulado com marcador preto.
Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chale vazio.
\Apagar das luzes., disse para mim mesmo, arrasado.
*****
Naquela noite, tive meu pior pesadelo ate entao.
Eu corria pela praia no meio de uma tempestade. Dessa vez, havia uma cidade atras de mim. Nao Nova York. O panorama era diferente: os edificios eram mais afastados uns dos outros, havia palmeiras e colinas baixas a distancia.
Cem metros adiante, na arrebentacao, dois homens estavam brigando. Pareciam lutadores de teve, musculosos, com barbas e cabelos compridos. Ambos usavam tunicas gregas esvoacantes, uma guarnecida de azul, a outra, de verde. Atracavam-se, lutavam, chutavam e davam cabecadas, e a cada vez que tocavam, caiam raios, o ceu escurecia e ventos sopravam.
Eu precisava dete-los. Nao sabia por que. Mas, quanto mais eu corria, mais o vento me empurrava de volta, ate eu correr sem sair do lugar, os calcanhares se enterrando inultimente na areia.
Por cima do rugido da tempestade, pude ouvir o de tunica azul gritando para o de tunica verde: Devolva! Devolva! Era como se uma crianca do jardim-de-infancia estivesse brigando por causa de um brinquedo.
As ondas ficaram maiores, arrebentando na praia e me borrifando com sal.
Eu gritei: Parem com isso! Parem de brigar!
O chao estremeceu. Risadas vieram de algum lugar embaixo da terra, e uma voz profunda e maligna me gelou o sangue.
Venha para baixo, pequeno heroi, a voz sussurrou. Venha para baixo!
A areia se abriu embaixo de mim numa fenda que ia direto ao centro da Terra. Meus pes escorregaram e as trevas me engoliram.
Acordei, certo de que estava caindo.
Ainda estava na cama, no chale 3. Meu corpo me dizia que ja era manha, mas estava escuro la fora e o trovão ribombava pelas colinas. Uma tempestade estava se formando. Isso eu não havia sonhado.
Ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira.
- Entre.
Grover trotou para dentro, parecendo preocupado.
- O sr. D quer vê-lo.
- Por quê?
- Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte.
Eu me vesti, agitado, e fui, certo de que estava em uma grande encrenca.
Havia dias eu estava esperando uma convocação para a Casa Grande. Agora que tinha sido declarado filho de Poseidon, um dos Três Grandes deuses que não deveriam ter filhos, imaginei que o simples fato de estar vivo já fosse um crime. Os outros deuses provavelmente haviam debatido sobre o melhor jeito de me punir por existir, e agora o sr. D estava pronto para dar seu veredicto.
Acima do estreito de Long Island, o céu parecia uma sopa de tinta em ponto de fervura. Uma cortina brumosa de chuva vinha em nossa direção. Perguntei a Grover se precisávamos de um guarda-chuva.
- Não - disse ele. - Aqui nunca chove, anão ser que queiramos.
Apontei a tempestade.
- Então o que diabo é aquilo?
Ele olhou, preocupado, para o céu.
- Vai passar em volta de nós. O mau tempo sempre faz isso.
Percebi que ele estava certo. Fazia uma semana que estava ali e nunca vira o tempo fechado. As poucas nuvens de chuva que tinha notado contornavam os limites do vale.
Mas aquela tempestade... aquela era imensa.
Na arena de vôlei as crianças do chalé de Apolo jogavam uma partida matinal contra os sátiros. Os gêmeos de Dionisio caminhavam em volta dos campos de morangos fazendo as plantas crescerem. Todos estavam cuidando de suas tarefas normais, mas pareciam tensos. Estavam de olho na tempestade.
Grover e eu caminhamos até a varanda da frente da Casa Grande. Dionísio estava sentado à mesa de pinoche com sua Diet Coke, usando a camisa havaiana com listras de tigre, exatamente como no meu primeiro dia. Quíron estava do outro lado da mesa em sua falsa cadeira de rodas. Jogavam contra oponentes invisíveis - duas mãos de cartas flutuavam no ar.
- Bem, bem - disse o sr. D sem erguer os olhos. - Nossa pequena celebridade.
Eu aguardei.
- Chegue mais perto - disse o sr. D. - E não espere que eu me prostre diante de você, mortal, só porque o velho Barbas de Craca é seu pai.
Uma rede de raios brilhou através das nuvens. Um trovão fez tremerem as janelas da casa.
- Blablablá - disse Dionisio.
Quíron fingiu interesse em suas cartas de pinoche. Grover se encolheu junto ao gradil, os cascos batendo para a frente e para trás.
- Se as coisas fossem do meu jeito - disse Dionisio -, eu faria suas moléculas irromperem em chamas. Nós varreríamos as cinzas e estaríamos livres de um monte de problemas. Mas Quíron parece achar que isso seria contra a minha missão neste acampamento maldito: manter vocês, moleques, a salvo do mal.
- Combustão espontânea é uma forma de mal, sr. D - interveio Quíron.
- Bobagem - disse Dionisio. - O menino não sentiria nada. No entanto, eu concordei em me conter. Estou pensando em transformar você em um golfinho em vez disso, e mandá-lo de volta para seu pai.
- Sr. D... - advertiu Quíron.
- Ora, está bem - cedeu Dionisio. - Há mais uma opção. Mas é uma insensatez descomunal. - Dionsio levantou-se, e as cartas dos jogadores invisíveis caíram sobre a mesa. - Estou indo ao Olimpo para uma reunião de emergência. Se o menino ainda estiver aqui quando eu voltar, vou transformá-lo em um nariz-de-garrafa do Atlântico. Entendeu? E Perseu Jackson, se você for mesmo esperto, verá que se trata de uma escolha muito mais sensata do que aquela que Quíron imagina.
Dionísio pegou uma carta, torceu-a e ela se transformou em um retângulo de plástico. Cartão de crédito?
Não. Um passe de segurança.
Ele estalou os dedos.
O ar pareceu se dobrar e se curvar em volta dele. Ele transformou-se em um holograma, depois em um vento e depois desapareceu, deixando para trás apenas o cheiro de uvas recém-prensadas.
Quíron sorriu para mim, mas parecia cansado e tenso.
- Sente-se, Percy, por favor. Grover também.
Nós obedecemos.
Quíron pôs suas cartas na mesa. A mão vencedora que ele não chegara a usar.
- Diga-me, Percy - disse ele. - O que você fez com o cão infernal?
Só de ouvir o nome, eu estremeci.
Quíron provavelmente queria que eu dissesse: Ora, aquilo não foi nada. Costumo comer cães infernais no café-da-manhã. Mas eu não estava com vontade de mentir.
- Ele me apavorou - falei. - Se vocês não o tivessem acertado, eu estaria morto.
- Você vai enfrentar coisas piores, Percy. Muito piores, antes de terminar.
- Terminar... o quê?
- Sua missão, é claro. Você vai aceitá-la?
Dei uma olhada para Grover, que estava cruzando os dedos.
- Ahn, senhor, ainda não me contou qual será.
Quíron fez uma careta.
- Bem, essa é a parte difícil, os detalhes.
Um trovão irrompeu pelo vale. As nuvens de tempestade haviam agora chegado ao limite da praia. Até onde eu podia ver, o céu e o mar estavam fervendo juntos.
- Poseidon e Zeus - disse eu. - Eles estão lutando por algo valioso... algo que foi roubado, não estão?
Quíron e Grover trocaram olhares.
- Como você sabe disso?
Senti o rosto quente. Desejei não ter aberto meu bocão.
- Desde o Natal o tempo está esquisito, como se o mar e o céu estivessem brigando. Então falei com Annabeth, e ela tinha ouvido alguma coisa sobre um roubo. E ... também andei sonhando umas coisas.
- Eu sabia - disse Grover.
- Quieto, sátiro - ordenou Quíron.
- Mas essa é a missão dele! - Os olhos de Grover estavam brilhantes de excitação. - Tem de ser!
- Só o Oráculo pode determinar. - Quíron alisou a barba eriçada. - No entanto, Percy, você está correto. Seu pai e Zeus estão tendo sua pior disputa em séculos. Estão lutando por uma coisa valiosa que foi roubada. Para ser preciso: um relâmpago.
Eu ri nervoso.
- Um o quê?
- Não brinque com isso - advertiu Quíron. - Não estou falando de um ziguezague recoberto de papel-alumínio como você vê em peças da escola. Estou falando de um cilindro de bronze celestial de alto grau, com sessenta centímetros de comprimento, arrematado em ambos os lados com explosivos de nível deífico.
- Ah.
- O raio-mestre de Zeus - disse Quíron, agora ficando emocionado. - O símbolo de seu poder, conforme o qual todos os outros raios são moldados. A primeira arma feita pelos Ciclopes para a guerra contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio-mestre, que acumula potência suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifícios.
- E ele desapareceu? - Roubaram - disse Quíron.
- Quem roubaram?
- Quem roubou - corrigiu Quíron. Uma vez professor, sempre professor. - Você.
Meu queixo caiu.
- Pelo menos - Quíron ergueu uma das mãos -, é isso que Zeus pensa. Durante o solstício de inverno, na ultima assembleia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma discussao. As tolices de sempre: \A Mae Rhea sempre gostou mais de voce., \Os desastres aereos sao mais espetaculares que os maritimos. etc. Mais tarde, Zeus se deu conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus nao pode usurpar diretamente o simbolo de poder de outro deus - isso e proibido pela mais antiga das leis divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um heroi humano a pega-lo.
- Mas eu nao...
- Paciencia, e escute, crianca - disse Quiron. - Zeus tem boas razoes para suspeitar. As forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que da a Poseidon alguma influencia sobre os fabricantes dos raios do seu irmao. Zeus acredita que Poseidon pegou o raio-mestre e esta agora mandando os Ciclopes construirem secretamente um arsenal de copias ilegais, que poderiam ser usadas par derrubar Zeus do seu trono. A unica coisa de que Zeus nao tinha certeza era qual heroi Poseidon usara para roubar o raio. Agora Poseidon declarou abertamente que voce e filho dele. Voce estava em Nova York nas ferias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que encontrou o seu ladrao.
- Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus esta maluco!
Quiron e Grover olharam nervosamente para o ceu. As nuvens nao pareciam estar se separando a nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixao.
- Ahn, Percy...? - disse Grover. - Nos nao usamos essa palavra que comeca com m para descrever o Senhor do Ceu.
- Paranoico, quem sabe - sugeriu Quiron. - Mas, por outro lado, Poseidon ja tentou derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... - Ele olhou para mim como quem realmente esperava que e me lembrasse da pergunta 38.
Como podia alguem me acusar de roubar a arma de um deus? Eu nao conseguia nem furtar um pedaco de pizza da mesa de poquer de Gabe sem ser pego. Quiron estava esperando por uma resposta.
- Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? - adivinhei. - Poseidon, e Hera, e alguns outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e nao o deixaram sair ate ele prometer ser um soberano melhor, certo?
- Correto - disse Quiron. - E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde entao. Poseidon, e claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusacao. Os dois vem discutindo o tempo todo ha meses, com ameacas de guerra. E agora voce apareceu - a famosa gota-dfagua.
- Mas eu sou apenas uma crianca!
- Percy - interveio Grover -, se voce fosse Zeus, e ja achasse que o seu irmao estava planejando derruba-lo, e entao subitamente admitisse que havia quebrado o juramento sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo heroi mortal que poderia ser usado como uma arma contra voce... Isso nao o deixaria com a pulga atras da orelha?
- Mas eu nao fiz nada. Poseidon - meu pai -, ele realmente nao mandou roubar o raio-mestre, mandou?
Quiron suspirou.
- A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo nao faz o estilo de Poseidon. Mas o Deus do Mar e orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio ate o solsticio de verao. Isso sera em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrao ate essa mesma data. Eu tinha esperancas de que a diplomacia prevalecesse, que Hera ou Demeter ou Hestia fariam os dois irmaos verem a razao. Mas a sua chegada inflamou o genio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A nao ser que alguem intervenha, a nao ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solsticio, havera guerra. E voce sabe como poderia ser uma guerra total, Percy?
- Ruim ? - adivinhei.
- Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forcados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruicao. Carnificina. Milhoes de mortos. A civilizacao ocidental transformada em um campo de batalha tao grande que fara a Guerra de Troia parecer uma luta de baloes dfagua.
- Ruim - repeti.
- E voce, Percy Jackson, sera o primeiro a sentir a ira de Zeus.
Comecou a chover. Os jogadores de volei interromperam o jogo e olhavam perplexo para o ceu.
Eu havia trazido a tempestade para a Colina Meio-Sangue, Zeus estava punindo o acampamento inteiro por minha causa. Eu estava furioso.
- Entao eu tenho de encontrar aquele raio estupido - disse. - E devolve-lo a Zeus.
- Que melhor oferenda de paz - disse Quiron -, do que fazer filho de Poseidon devolver o que e de Zeus?
- Se nao esta com Poseidon, onde esta essa coisa?
- Eu creio que sei. - A expressao de Quiron era soturna. - Parte da profecia que recebi anos atras... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu possa dizer mais, voce precisa aceitar oficialmente a missao. Voce precisa procurar o conselho do Oraculo.
- Por que voce nao pode dizer de antemao onde esta o raio?
- Porque, se eu fizer isso, voce ficara assustado demais para aceitar o desafio.
Eu engoli em seco.
- Boa razao.
- Entao voce concorda?
Olhei para Grover, que assentiu encorajadoramente.
Facil para ele. Era a mim que Zeus queria matar.
- Esta bem - disse eu. - E melhor do que ser transformado em um golfinho.
- Entao e hora de voce consultar o Oraculo - disse Quiron. - Va para cima, Percy Jackson, para o sotao. Quando descer de novo, presumindo que ainda esteja lucido, conversaremos mais.
*****
Quatro lances acima, a escada terminava embaixo de um alcapao verde.
Puxei o cordao. A porta se abriu e uma escada de madeira caiu ruidosamente no lugar.
O ar morno que vinha de cima cheirava a mofo, madeira podre e mais alguma coisa... um cheiro que me lembrou a aula de biologia. Repteis. O cheiro de serpentes.
Prendi a respiracao e subi.
O sotao estava atulhado de sucata de herois gregos: suportes de armaduras cobertos de teias de aranha; escudos outrora brilhantes cheios de adesivos dizendo ITACA, ILHA DE CIRCE E TERRA DAS AMAZONAS. Sobre uma mesa comprida estavam amontoados potes de vidro cheios de coisas em conserva - garras peludas decepadas, enormes olhos amarelos e diversas outras partes de monstros. Um trofeu empoeirado na parede parecia ser uma cabeca de serpente gigante, mas com chifres e uma arcada completa de dentes de tubarao. Uma placa dizia: CABECA N. 1 DA HIDRA, WOOSSTOCK, N.Y., 1969.
Junto a janela, sentado em uma banqueta de madeira com tres pernas, estava o suvenir mais pavoroso de todos: uma mumia. Nao do tipo enfaixada em panos, mas um corpo humano feminino, ressecado ate ficar so a casca. Usava um vestido de verao estampado em batique, com uma porcao de colares de contas e uma bandana por cima de longos cabelos pretos. A pele do rosto era fina e parecia couro por cima do cranio, e os olhos eram fendas brancas vitreas, como se os olhos de verdade tivessem sido substituidos por bolas de gude; devia estar morta fazia muito, muito tempo.
Olhar para ela me deu arrepios nas costas. E isso foi antes de ela se endireitar na banqueta e abrir a boca. Uma nevoa verde jorrou da garganta da mumia, serpenteando pelo chao em aneis grossos, sibilando como vinte mil cobras. Tropecei em mim mesmo tentando chegar ate o alcapao, mas ele se fechou com uma batida. Dentro da minha cabeca, ouvi uma voz, deslizando por um ouvido e se enroscando por meu cerebro: Eu sou o espirito de Delfos, porta-voz das profecias de Febo Apolo, assassino da poderosa Piton. Aproxime-se, voce que busca, e pergunte.
Eu quis dizer: Nao, obrigado, porta errada, so estava procurando o banheiro. Mas me forcei a respirar fundo.
A múmia não estava viva. Era algum tipo de receptáculo horripilante para uma outra coisa, o poder que girava em espiral à minha volta na névoa verde. Mas sua presença não parecia maligna, como a da professora demoníaca de matemática, a sra. Dodds ou a do Minotauro. Era mais como as Três Parcas que eu tinha visto tricotando o fio de lã ao lado da banca de frutas da rodovia: antiga, poderosa e, sem duvida, não-humana. E também não parecia especialmente interessada em me matar.
Reuni coragem para perguntar:
- Qual é o meu destino?
A névoa rodopiou, mais densa, juntando-se bem na minha frente e em volta da mesa com os potes que continham partes de monstros em conserva. De repente, havia quatro homens sentados à volta da mesa, jogando cartas. Os rostos ficaram mais nítidos. Era Gabe Cheiroso e seus cupinchas.
Meus punhos se contraíram, embora eu soubesse que aquele jogo de pôquer não podia ser real. Era uma ilusão, feita d névoa.
Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo: Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal.
O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz: Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.
O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse: Você será traído por aquele que o chama de amigo.
Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, preferiu a por sentença de todas: E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.
As figuras começaram a se dissolver. De início fiquei atordoado demais para dizer alguma coisa, mas quando a névoa recuou, enrolando-se como uma enorme serpente verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia, eu gritei:
- Espere! O que quer dizer? Que amigo? O que não vou conseguir salvar?
A cauda da serpente de névoa desapareceu na boca da múmia. Ela se reclinou de volta contra a parede. A boca fechou-se bem apertada, como se não tivesse sido aberta em cem anos. O sótão ficou silencioso de novo, abandonado, nada além de uma sala cheia de suvenires.
Tive a sensação de que poderia ficar lá parado até juntar teias de aranha também, e não ficaria sabendo mais nada.
Minha audiência com o Oráculo estava encerrada.
*****
- E então? - Quíron me perguntou.
Desabei em uma cadeira à mesa de pinoche. - Ela disse que eu devia recuperar o que foi roubado.
Grover se inclinou para frente, mascando animado os restos de uma lata de Diet Coke.
- Isso é ótimo!
- O que foi que o Oráculo disse exatamente? - pressionou Quíron. - Isso é importante.
- Ela... ela disse que eu iria para o oeste e enfrentaria um deus que se tornou desleal. Recuperaria o que foi roubado e devolveria em segurança.
- Eu sabia - disse Grover.
Quíron não pareceu satisfeito.
- Mais alguma coisa?
Eu não queria contar a ele.
Que amigo iria me trair? Eu não tinha tantos assim.
E a última sentença - eu fracassaria em salvar o que mais importa. Que tipo de Oráculo me mandaria em uma missão e me diria, Ah, a propósito, você vai se dar mal.
Como eu poderia confessar aquilo?
- Não - falei. - Isso é tudo.
Ele estudou meu rosto.
- Muito bem, Percy. Mas saiba disto as palavras do Oráculo freqüentemente têm duplo sentido. Não se fie demais nelas. A verdade nem sempre fica clara até que os eventos aconteçam.
Tive a sensação de que ele sabia que eu estava escondendo algo ruim, e tentava fazer com que eu me sentisse melhor.
- Certo - falei, ansioso por mudar de assunto. - Então, aonde vou? Quem é esse deus no oeste?
- Ah, pense, Percy - disse Quíron. - Se Zeus e Poseidon enfraquecem um ao outro numa guerra, quem tem a ganhar com isso?
- Algum outro que queira tomar o poder? - adivinhei.
- Sim, exatamente. Alguém que guarda um ressentimento, alguém que está infeliz com a parte que lhe coube desde que o mundo foi dividido eras atrás, cujo reinado se tornará poderoso com a morte de milhões. Alguém que odeia os irmãos por forçá-lo a um juramento de não ter mais filhos, um juramento que ambos quebraram.
Pensei nos meus sonhos, na voz maligna que falara do fundo da terra.
- Hades.
Quíron assentiu.
- O Senhor dos Mortos é a única possibilidade.
Grover babou um pedaço de alumínio pelo canto da boca.
- Opa, espere aí. O-o quê?
- Uma das Fúrias veio trás de Percy - lembrou Quíron. - Ela observou o rapaz até ter certeza da sua identidade, e então tentou matá-lo. As Fúrias obedecem a um só senhor: Hades.
- Sim, mas... mas Hades odeia todos os heróis - protestou Grover. - Especialmente se tiver descoberto que Percy é filho de Poseidon...
- Um cão infernal conseguiu entrar na floresta - continuou Quíron. - Eles só podem ser convocados dos Campos da Punição, e ele tinha de ser convocado por alguém de dentro do acampamento. Hades deve ter um espião aqui. Ele deve suspeitar que Poseidon tentará usar Percy para limpar seu nome. Hades gostaria muito de matar esse jovem meio-sangue antes que ele possa assumir a missão.
- Boa - murmurei. - São dois dos deuses mais importantes querendo me matar.
- Mas uma missão para... - Grover engoliu em seco. - Quer dizer, o raio-mestre não poderia estar em algum lugar como o Maine? O Maine é muito agradável nesta época do ano.
- Hades enviou um protegido para roubar o raio-mestre - insistiu Quíron. - Ele o escondeu no Mundo Inferior, sabendo muito BM que Zeus culparia Poseidon. Não pretendo entender perfeitamente os motivos do Senhor dos Mortos ou por que ele escolheu esta época para começar uma guerra, mas uma coisa é certa: Percy precisa ir ao Mundo Inferior; encontrar o raio-mestre e revelar a verdade.
Um fogo estranho queimou em meu estômago. O mais esquisito era que não se tratava de medo. Era expectativa. O desejo de vingança. Hades tentara me matar três vezes até agora, com a Fúria, o Minotauro e o cão infernal. Por sua culpa minha mãe desaparecera em um clarão. Agora ele tentava enquadrar eu e meu pai por um roubo que não tínhamos cometido. Eu estava pronto para enfrentá-lo. Além disso, se minha mãe estava no Mundo Inferior... Epa, rapaz!, disse a pequena parte do meu cérebro que ainda estava lúcida. Você é um garoto. Hades é um deus. Grover estava tremendo. Tinha começado a comer cartas de pinoche como se fossem batatinhas fritas.
O pobre sujeito precisava completar uma missão comigo para obter sua licença de buscador, o que quer que fosse isso, mas como poderia lhe pedir que participasse daquilo, principalmente sabendo que o Oráculo dissera que eu ia fracassar? Era suicídio. - Olhe, se nós abemos que é Hades - disse a Quíron -, Zeus ou Poseidon poderiam descer ao Mundo Inferior e fazer rolar algumas cabeças. - suspeitar e saber não são o mesmo - disse Quíron. - Além disso, mesmo que suspeitem de Hades... imagino que Poseidon suspeite.. os outros deuses não poderiam recuperar o raio por si mesmos. Deuses não podem entrar nos territórios um do outro a não ser que sejam convidados. Essa é outra regra muito antiga. Heróis, por outro lado, têm certos privilégios. Podem ir a qualquer lugar, desafiar qualquer um, desde que sejam corajosos e fortes o bastante para fazê-lo. Nenhum deus pode ser responsabilidade pelos atos de um herói. Por que acha eu os deuses sempre agem por intermédio de seres humanos? - Você está dizendo que estou sendo usado. - Estou dizendo que não é por acaso que Poseidon o assumiu agora. É uma jogada muito arriscada, mas ele está em uma situação desesperadora. Precisa de você. Meu pai precisa de mim. As emoções giraram dentro de mim como pedaços de vidro em um caleidoscópio. Eu não sabia se sentia ressentimento, gratidão, alegria ou raiva. Poseidon me ignorara por doze anos. Agora de repente, precisava de mim. Olhei para Quíron. - Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é? - Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo.
Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora. Afinal, eu também estava sonegando informações. - Então, deixe-me entender direito - falei. - Preciso ir para o Mundo Inferior e confrontar o Senhor dos Mortos. - Confere - disse Quíron. - Para encontrar a arma mais poderosa do universo.
- Confere.
E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias. - Isso mesmo. Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas. - Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? - perguntou ele de um jeito cansado. - Você não precisa ir - disse a ele. - Não posso lhe exigir isso. - Ah... - Ele se balançou de um casco para o outro. - Não... é só que os sátiros, e os lugares embaixo da terra... bem... Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da camiseta. - Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto, não vou deixá-lo na mão. Fiquei tão aliviado que tive vontade de chorar, embora não achasse isso muito heróico. Grover era o único amigo que já tivera por mais que alguns meses. Não sabia muito bem o que um sátiro poderia fazer contra as forças dos mortos, mas me senti melhor sabendo que ele estaria comigo. - Juntos até o fim, homem-bode. Eu me virei para Quíron. - Então, para onde vamos? O Oráculo só disse para ir para oeste. - A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era, como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos. - Onde? Quíron pareceu surpreso.
Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles. - Ah - falei. - Claro. Então é só pegar um avião... - Não! - gritou Grover. - Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em um avião? Sacudi a cabeça, sem graça. Minha mãe nunca me levara para lugar algum de avião. Ela sempre dizia que não tínhamos dinheiro pra isso. Além disso, os pais dela tinham morrido em um desastre de avião. - Percy, pense - disse Quíron. - Você é filho do Deus do Mar. O rival mais rancoroso do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você a um avião. Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombo. - Certo - disse eu, determinado a não olhar para a tempestade. - Então, viajarei por terra.
- Certo - disse Quíron. - Dois parceiros poderão acompanhá-lo. Grover é um. O outro já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela. - Puxa - falei, fingindo surpresa. - Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar para uma missão como essa? O ar tremulou atrás de Quíron.
Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás. - Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, cabeça de alga - disse ela. - Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para impedir que estrague tudo. - Se é você quem diz. Tem algum plano, sabidinha? As bochechas dela coraram. - Você quer a minha ajuda ou não? A verdade é que eu queria. Precisava de toda a ajuda que pudesse encontrar. - Um trio - disse eu. - Isso vai dar certo.
- Excelente - disse Quíron. - Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria. Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um temporal violento. - Não há tempo a perder - disse Quíron. - Acho que todos vocês devem fazer as malas.
DEZ – Eu destruo um ônibus.
Não precisei de muito tempo para fazer as malas. Decidi deixar o cifre do Minotauro no meu chalé, então só restaram uma muda extra de roupas e uma escova de dentes para enfiar numa mochila que Grover encontrara para mim.
A loja do acampamento me emprestou cem dólares em dinheiro mortal e vinte dracmas de ouro. Essas moedas eram grandes como um biscoito gigante, tinham imagens de diversos deuses gregos estamapadas de um lado e o Edifício Empire States do outro. Os dracmas dos mortais antigos eram de prata, Quíron nos contou, mas os olimpianos nunca usavam nada menos que ouro puro. Quíron disse que as moedas poderiam vir a calhar para transações não-mortais - o que quer que isso significasse. Ele deu a Annabeth e a mim um cantil de néctar e um saco hermético cheio de quadradinhos de ambrosia, para usar somente em emergências, se fôssemos gravemente feridos. Aquilo era o alimento dos deuses, Quíron lembrou. Iria nos curar de qualquer ferimento, mas era letal para mortais. Em excesso, poderia deixar um meio-sangue com muita, muita febre. Uma overdose nos faria pegar fogo, literalmente.
Annabeth carregava seu boné mágico dos Yankees, que era, ela me contou, um presente da mãe pelo seu décimo segundo aniversario. Ela levou um livro sobre a famosa arquitetura clássica, escrito em grego antigo, para ler quando estivesse entediada, e carregava uma comprida faca de bronze escondida na manga da camisa. Eu tinha certeza de que a faca ia nos causar problemas na primeira vez em que passássemos por um detector de metais.
Grover estava com seus pés falsos e calças para passar por ser humano. Usava uma touca verde estilo rastafári, porque, quando chovia, seu cabelo encaracolado se achatava, deixando aparecer a ponta dos chifres. Sua mochila berrante, alaranjada, estava cheia de sucata de metal e maçãs para o lanche. Em seu bolso havia um conjunto de flautas de bambu que o papai-bode esculpira para ele, muito embora ele só conhecesse duas músicas: o Concerto para Piano n° 12, de Mozart, e So Yesterday, de Hilary Duff, e ambas soassem muito mal em flautas de bambu.
Acenamos em despedida para os outros campistas, demos uma última olhada para os campos de morangos, o oceano e a Casa Grande, depois subimos a Colina Meio-Sangue até o alto pinheiro que outrora fora Thalia, filha de Zeus.
Quíron nos esperava em sua cadeira de rodas. Ao lado dele estava o surfista que eu tinha visto quando me recuperava no quarto doente. De acordo com Grover, o cara era chefe de segurança do acampamento. Supostamente, tinha olhos espalhados pelo corpo inteiro para jamais ser pego de surpresa. Naquele dia, no entanto, usava uniforme de chofer, então só pude ver os olhos extras das mãos, do rosto e do pescoço.
- Este é Argos - disse Quíron. - Vai levar vocês de carro até a cidade e, ahn, bem, ficar de olho em tudo.
Ouvi passos atrás de nós.
Luke veio correndo colina acima, carregando um par de tênis de basquete.
- Ei! - ofegou ele. - Ainda bem que alcancei vocês.
Annabeth corou, como sempre acontecia quando Luke estava por perto.
- Só queria desejar boa sorte - disse ele para mim. - E pensei... ahn, quem sabe você poderia usar isso.
Ele me entregou os tênis, que pareciam bastante normais. Tinham até cheiro de normais.
Luke disse:
- Maia!
Asas brancas de ave brotaram dos calcanhares, deixando-me tão surpreso que os deixei cair. Os tênis bateram as asas no chão até que estas se dobraram e desapareceram.
- Impressionante! - disse Grover.
Luke sorriu.
- Ajudaram muito quando eu estava na minha missão. Presente do papai. É claro, eu não os uso muito hoje em dia... - Sua expressão tornou-se triste.
Eu não sabia o que dizer. Já era bem legal o fato de Luke ter ido se despedir. Tinha receio de que ele estivesse magoado comigo por ter ganho tanta atenção nos últimos dias. Mas ali estava ele, com um presente mágico... Aquilo me fez corar quase tanto quanto Annabeth.
- Ei, cara, obrigado.
- Escute, Percy... - Luke pareceu sem graça. - Todos esperam muito de você. Então, apenas... mate alguns monstros por mim, ok?
Trocamos um aperto de mãos. Luke afagou a cabeça de Grover entre os chifres e depois deu um grande abraço em Annabeth, que pareceu que ia desmaiar.
Depois que Luke se foi, eu disse a ela:
- Você está com a respiração acelerada.
- Não estou, não.
- Você o deixou capturar a bandeira em seu lugar, não foi?
- Ai... por que mesmo eu quero ir a algum lugar com você, Percy?
Ela desceu batendo os pés para outro lado da colina, onde um utilitário esportivo branco esperava no acostamento da estrada. Argos a seguiu, balançando as chaves do carro.
Peguei os tênis voadores e tive uma súbita sensação ruim. Olhei para Quíron.
- Eu não vou poder usar isso, não é?
Ele sacudiu a cabeça.
- A intenção de Luke foi boa, Percy. Mas subir para o ar.... não seria muito inteligente de sua parte.
Eu assenti, desapontado, mas então tive uma idéia.
- Ei, Grover. Você quer um apetrecho mágico?
Seus olhos se iluminaram.
- Eu?
Rapidamente, amarramos os tênis por cima dos seus falsos pés, e o primeiro menino-bode voador do mundo estava pronto para o lançamento.
- Maia! - bradou.
Ele se ergueu do chão muito bem, mas então tombou de lado e sua mochila arrastou-se pela grama. Os tênis alados ficaram corcoveando para o alto e para baixo como minúsculos cavalos selvagens.
- Prática - gritou Quíron para ele. - Você só precisa de prática.
- Aaaaaa! - Grover saiu voando de lado colina baixo, como um cortador de grama ensandecido, em direção à van.
Antes que eu pudesse segui-lo, Quíron segurou meu braço.
- Eu devia tê-lo treinado melhor, Percy - disse ele. - Se ao menos tivesse tido mais tempo. Hércules, Jasão... todos receberam mais treinamento.
- Tudo bem. Só queria....
Eu me interrompi pois estava prestes a soar como uma criança mimada. Queria que meu pai tivesse me dado uma coisa mágica legal para ajudar na minha missão, algo tão bom quanto os tênis voadores de Luke ou o boné invisível de Annabeth.
- Onde estou com a cabeça? - exclamou Quíron. - Não posso deixar você ir sem isso.
Ele puxou uma caneta do bolso do casaco e me entregou. Era uma esferográfica descartável comum, tinta preta, tampa removível. Custava provavelmente trinta centavos.
- Puxa disse eu. - Obrigado.
- Percy, isto foi um presente de seu pai. Guardei durante anos, sem saber que era você que eu estava esperando. Mas a profecia agora está clara para mim. Você é o escolhido.
Lembrei-me da excursão ao Metropolitan Museum of Art, quando reduzi a Poá a sra. Dodds. Quíron me jogara uma caneta que se transformou em espada. Será que aquilo era...?
Tirei a tampa, e a caneta ficou mais comprida e pesada em minha mão. Em meio segundo eu estava segurando uma reluzente espada de bronze com lâmina de fio duplo, cabo envolvido em couro e uma guarda chata rebitada com pinos de ouro. Era a primeira arma que realmente parecia equilibrada em minha mão.
- A espada tem uma história longa e trágica, sobre a qual não precisamos falar - contou-me Quíron. - Seu nome é Anaklusmos.
- Contracorrente - traduzi, surpreso que o grego antigo me tenha vindo tão fácil.
- Mas só a use para emergências - disse Quíron, e apenas contra monstros. Nenhum herói deve ferir mortais, só se for absolutamente necessário, é claro, mas esta espada não os feriria em nenhum caso.
Olhei para a lâmina cruelmente afiada.
- Como assim, não feriria mortais? Como ela pode não ferir?
- A espada é de bronze celestial. Forjada pelos Ciclopes, temperada no coração do monte Etna, resfriada no rio Lete. É mortífera para monstros, para qualquer criatura do Mundo Inferior, desde que não matem você primeiro. Mas a lâmina passará através de mortais como uma ilusão. Eles não são bastante importantes para serem mortos pela lâmina. E devo avisá-lo: como um semideus, você pode ser morto tanto por armas celestiais quanto por armas normais. Você é duas vezes mais vulnerável.
- Bom saber.
- Agora recoloque a tampa na caneta.
Encostei a tampa da caneta na ponta da espada e instantaneamente Contracorrente encolheu e se transformou de novo em uma esferográfica. Enfiei-a no bolso um pouco nervoso, porque na escola tinha a fama de perder canetas.
- Não há riscos - disse Quíron.
- De quê?
- De perder a caneta - disse ele. - É encantada. Sempre vai reaparecer no seu bolso. Experimente.
Eu estava desconfiado, mas atirei a caneta o mais longe que pude colina abaixo e a vi desaparecer na grama.
- Pode levar alguns instantes - disse Quíron. - Agora verifique o bolso.
Sem dúvida, a caneta estava lá.
- Certo, isso é muito legal - admiti. - Mas e se um mortal me vir puxando uma espada?
Quíron sorriu.
- A Névoa é algo poderoso, Percy.
- A Névoa?
- Sim. Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de realidade.
Pus Contracorrente de volta no bolso.
Pela primeira vez, senti a missão como algo real. Eu estava de fato deixando a Colina Meio-Sangue. Estava indo para o oeste sem nenhuma supervisão de adulto, sem um plano B, nem mesmo um telefone celular. (Quíron disse que os telefones podiam ser rastreados por monstros; se usasse um, seria pior do que lançar um foguete de sinalização.) Eu não tinha nenhuma arma mais poderosa do que uma espada para combater monstros e chegar à Terra dos Mortos.
- Quíron... - falei. - Quando você diz que os deuses são imortais... quer dizer, havia um tempo antes deles, certo?
- Quatro era antes deles, na verdade. O Tempo dos Titãs foi a Quarta Era, às vezes chamada de Era de Ouro, o que sem dúvida é um nome impróprio. Esta época, a época da civilização ocidental e reinado de Zeus, é a Quinta Era.
- Então como era... antes dos deuses?
Quíron contraiu os lábios.
- Nem mesmo eu sou bastante velho para me lembrar disso, criança, mas sei que era um tempo de trevas e selvageria para os mortais. Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento. Foi só no início do reinado do Senhor Zeus, quando Prometeu, o bom Titã, trouxe o fogo para a humanidade, que sua espécie começou a evoluir, e mesmo então Prometeu foi estigmatizado como pensador radical. Zeus o castigou severamente, como você deve se lembrar. É claro, por fim os deuses se interessaram pelos seres humanos, e nasceu a civilização ocidental.
- Mas agora os deuses não podem morrer, certo? Quero dizer, enquanto a civilização ocidental estiver viva, eles estarão vivos. Assim... mesmo se eu fracassar, nada pode acontecer de tão ruim a ponto de estragar tudo, certo?
Quíron me deu um sorriso melancólico.
- Ninguém sabe quanto tempo a Era do Ocidente irá durar, Percy. Os deuses são imortais, sim. Mas os Titãs também eram imortais. Eles ainda existem, trancados em suas várias prisões, forçados a suportar dores e castigos infinitos, com o poder reduzido, mas ainda muito vivos. Que as Parcas não permitam que os deuses sofram tal maldição, ou que retornemos às trevas e aos caos do passado. Tudo o que podemos fazer, criança, é seguir nosso destino.
- Nosso destino... presumindo que saibamos qual é.
- Relaxe - disse-me Quíron. - Mantenha as idéias no lugar. E lembre-se, você pode estar a ponto de evitar a maior guerra da história humana.
- Relaxe - disse eu. - Estou muito relaxado.
Quando cheguei ao pé da colina, olhei para trás. Sob o pinheiro que outrora era Thalia, filha de Zeus, Quíron estava em plena forma de homem-cavalo, segurando no alto seu arco em saudação. Uma típica despedida do acampamento de verão pelo seu típico centauro.
*****
Argos nos levou para fora da zona rural em direção ao oeste de Long Island. Era esquisito estar novamente em uma auto-estrada, com Annabeth e Grover sentados ao meu lado como se fôssemos caronas normais. Depois de duas semana na Colina Meio-Sangue, o mundo real parecia uma fantasia. Surpreendi-me olhando para cada McDonald’s, cada criança no banco traseiro do carro dos pais, cada cartaz e cada shopping center.
- Até agora, tudo bem - disse a Annabeth. - Quinze quilômetros e nem um único monstro.
Ela me lançou um olhar irritado.
- Falar desse jeito traz má sorte, cabeça de alga.
- Ajude-me a lembrar: por que você me odeia tanto?
- Eu não odeio você.
- Posso estar enganado.
Ela dobrou o boné de invisibilidade.
- Olhe... é só que não deveríamos nos dar bem, ok? Nossos pais são rivais.
- Por quê?
Ela suspirou.
Quantas razoes voce quer? Uma vez minha mae pegou Poseidon com a namorada dele no templo de Atena, o que e superdesrespeitoso. Outra vez, Atena e Poseidon competiram para ser o deus patrono da cidade de Atenas. Seu pai criou uma estupida fonte de agua salgada como presente. Minha mae criou a oliveira. As pessoas viram que o presente dela era melhor, portanto deram a cidade o nome dela.
- Elas realmente devem gostar de azeitonas.
- Ah, deixa pra la.
- Agora, se ela tivesse inventado a pizza... isso eu poderia entender.
- Eu disse: deixa pra la.
No assento dianteiro, Argos sorriu. Ele nao disse nada, mas olho azul na sua nuca piscou para mim.
O transito ficou lento no Queens. Quando chegamos a Manhattan ja era por-do-sol e comecava a chover.
Argos nos largou na Estacao Greyhound no Upper East Side, nao longe do apartamento de minha mae e Gabe. Em uma caixa de correio, preso com fita adesiva, havia um folheto encharcado com meu retrato: VOCE VIU ESTE MENINO?
Eu o arranquei antes que Annabeth e Grover pudessem ve-lo.
Argos descarregou nossas malas, certificou-se de que haviamos conseguido as passagens de onibus e entao foi embora, o olho nas costas de sua mao se abrindo para nos observar enquanto tirava o carro do estacionamento.
Pensei em como estava perto do meu velho apartamento. Em um dia normal, minha mae estaria chegando em casa da doceria mais ou menos naquela hora. Gabe Cheiroso provavelmente estava la, jogando poquer, sem nem sentir a falta dela.
Grover pos sua mochila nos ombros. Olhou rua abaixo, na direcao em que eu estava olhando.
- Quer saber por que ela se casou com ele, Percy?
Olhei para ele.
- Voce esta lendo a minha mente ou coisa assim?
- So as suas emocoes. - Ele encolheu os ombros. - Acho que me esqueci de contar que os satiros podem fazer isso. Voce estava pensando na sua mae e no seu padrasto, certo?
Eu assenti, me perguntando o que mais Grover teria esquecido de contar.
- Sua mae se casou com gabe por voce - Grover me contou. - Voce o chama de \Cheiroso., mas nao tem ideia. O cara tem essa aura... Eca, eu posso sentir o cheiro dele daqui. Posso sentir vestigios do cheiro dele em voce, e ja faz uma semana que voce esteve perto dele.
- Obrigado - falei. - Onde fica o chuveiro mais proximo?
- Voce devia ser grato, Percy. Seu padrasto tem um cheiro tao repulsivamente humano que pode mascarar a presenca de qualquer semideus. Assim que inalei o ar dentro do seu Camaro, eu soube: Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se voce nao tivesse morado com ele durante todos os veroes, provavelmente teria sido encontrado por monstros muito tempo atras. Sua mae ficou com ele para proteger voce. Era uma senhora esperta. Devia amar muito voce para aturar aquele cara... se e que isso o faz se sentir melhor.
Nao fazia, mas me forcei para nao demonstrar. Eu a varei de novo, pensei. Ela nao se foi.
Fiquei imaginando se Grover ainda podia ler as minhas emocoes, confusas como estavam. Estava grato por ele e Annabeth estarem comigo, mas me sentia culpado porque nao fora sincero com eles. Nao lhes contara a verdadeira razao de ter dito sim para aquela missao maluca.
A verdade era que eu nao me importava em recuperar o relampago de Zeus, em salvar o mundo ou mesmo em ajudar meu pai a sair da encrenca. Quanto mais pensava nisso, mas me ressentia de Poseidon por nunca ter me visitado, nunca ter ajudado a minha mae, nunca se quer mandado uma droga de cheque de pensao alimenticia. Ele so me reconhecera porque tinha um servico a ser feito.
Eu so me preocupava com minha mae. Hades a levara injustamente, e Hades iria devolve-la.
Voce sera traido por aquele que chama de amigo, sussurrou o Oraculo em minha mente. E, no fim, ira fracassar em salvar aquilo que mais importa.
Cale a boca, respondi.
*****
A chuva continua caindo.
Ficamos impacientes esperando o onibus e decidimos brincar de footbag com uma das macas de Grover. Annabeth foi incrivel. Ela era capaz de arremeter a maca com o joelho, com o cotovelo, com o ombro, ou o que fosse. Eu mesmo nao era de todo ruim.
O jogo terminou quando arremessei a maca para Grover e ela chegou perto demais da sua boca. Em uma megamordida de bode, nossa footbag desapareceu - miolo, pedunculo e tudo.
Grover enrubesceu. Ele tentou se desculpar, mas Annabeth e eu estavamos muito ocupados dando risada.
Finalmente o onibus chegou. Enquanto estavamos na fila para embarcar, Grover comecou a olhar em volta, farejando o ar do jeito como farejava seu lanche favorito na cantina da escola - enchiladas.
- O que foi isso? - perguntei.
- Nao sei - disse ele, tenso. - Talvez nao seja nada.
Mas podia perceber que era alguma coisa. Tambem comecei a olhar para tras por cima do ombro.
Fiquei aliviado quando afinal embarcamos e encontramos lugar juntos na parte de tras do onibus. Guardamos nossas mochilas. Annabeth batia nervosamente seu bone dos Yankees na coxa.
Quando os ultimos passageiros subiram, Annabeth apertou com forca o meu joelho. \Percy..
Uma senhora acabava de embarcar no onibus. Usava vestido de veludo amarrotado, luvas de renda e chapeu laranja, tricotado e disforme, que encobria seu rosto, e carregava uma grande bolsa de la estampada. Quando ergueu a cabeca seus olhos pretos faiscaram, e meu coracao deu um pulo.
Era a sra. Dodds. Mais velha, mas enrugada, mas sem duvida a mesma cara maligna.
Eu me encolhi no assento.
Atras dela subiram mais duas senhoras: uma de chapeu verde, outra de chapeu roxo. A nao ser por isso, eram parecidissimas com a sra. Dodds - as mesmas maos encarquilhadas, as mesmas bolsas de la, os mesmo vestidos de veludo enrugados. Um trio de avos demoniacas.
Elas se sentaram na fileira da frente, logo atras do motorista. As duas no corredor cruzaram as pernas bem na passagem, formando um X. Aquilo era bastante normal, mas enviava uma mensagem clara: ninguem sai.
O onibus partiu da estacao e seguimos pelas ruas escorregadias de Manhattan.
- Ela nao ficou morta muito tempo - disse eu, tentando impedir minha voz de tremer. - Achei que voce tivesse dito que eles podem ser afastados por toda uma vida.
- Eu disse, se voce tiver sorte - disse Annabeth. - Voce obviamente nao tem.
- Todas as tres - choramingou Grover. - Di immortales!
- Esta tudo bem - disse Annabeth, obviamente se empenhando em pensar. - As Furias. Os tres piores monstros do Mundo Inferior. Sem problemas. Sem problemas. Vamos simplesmente saltar pelas janelas.
- Nao abrem - gemeu Grover.
- Uma saida nos fundos? - sugeriu ela.
Nao havia nenhuma. E, mesmo que houvesse, nao teria ajudado. Aquela altura, estavamos na Nona Avenida, em direcao ao Tunel Lincoln.
- Elas nao vao nos atacar com testemunhas em volta - disse eu. - Ou vao?
- Os mortais nao tem bons olhos - lembrou-me Annabeth. - Seus cerebros so podem processar o que eles veem atraves da Nevoa.
- Eles vao ver tres velhas nos matando, nao vao?
Ela pensou a respeito.
- Dificil dizer. Mas nao podemos contar com a ajuda de mortais. Talvez uma saida de emergencia no teto...?
Chegamos ao Tunel Lincoln, e o onibus ficou as escuras a nao ser pelas luzes do corredor. Estava assustadoramente silencioso sem o ruido da chuva.
A sra. Dodds se levantou. Com uma voz inexpressiva, como se tivesse ensaiado aquilo, ela anunciou para o onibus inteiro:
- Preciso usar o toalete.
- Eu tambem - disse a segunda irma.
- Eu tambem - disse a terceira irma.
Todas elas comecaram a se aproximar pelo corredor.
- Ja sei - disse Annabeth. - Percy, pegue meu chapeu.
- O que?
- E voce que elas querem. Fique invisivel e siga pelo corredor. Deixe que elas passem por voce. Talvez voce possa chegar ate a frente e escapar.
- Mas voces...
- Ha uma pequena possibilidade de que elas nao reparem em nos - disse Annabeth. - Voce e filho de um dos Tres Grandes. Seu cheiro deve encobrir o nosso.
- Nao posso abandonar voces.
- Nao se preocupe conosco - disse Grover. - Va!
Minhas maos tremiam. Eu me senti um covarde, mas peguei o bone dos Yankees e pus na cabeca.
Quando olhei para baixo, meu corpo nao estava mais ali.
Comecei a me esgueirar pelo corredor. Consegui passar dez fileiras, depois me esquivei para um assento vazio bem quando as Furias passaram.
A sra. Dodds parou, farejando, e olhou diretamente para mim. Meu coracao estava disparado.
Parecia nao ter visto nada. Ela e as irmas continuaram andando.
Eu estava livre. Cheguei ate a frente do onibus. Ja estavamos quase saindo do Tunel Lincoln. Estava a ponto de apertar o botao de parada de emergencia quando ouvi lamentos abominaveis vindos da fileira do fundo.
As velhas nao eram mais velhas. Os rostos ainda eram os mesmos - acho que seria impossivel ficarem mais feios -, mas os corpos haviam murchado e tinham o aspecto de um couro marrom sobre formas de bruxas, com asas de morcego e maos e pes como garras de gargulas. As bolsas viraram chicotes chamejantes.
As Furias cercaram Grover e Annabeth estalando os chicotes e sibilando:
- Onde esta? Onde?
As outras pessoas no onibus estavam gritando, escondendo-se em seus bancos. Certo, elas viram alguma coisa.
- Ele nao esta aqui! - gritou Annabeth. - Saiu!
As Furias ergueram os chicotes.
Annabeth sacou a faca de bronze. Grover agarrou uma lata da sua sacola de lanches e se preparou para joga-la.
O que eu fiz a seguir foi tao impulsivo e perigoso que eu merecia ser o rei do transtorno do deficit de atencao do ano.
O motorista do onibus estava distraido, tentando enxergar o que estava acontecendo pelo espelho retrovisor.
Ainda invisivel, agarrei o volante e dei um tranco para a esquerda. Todos gritaram ao serem jogados para a direita, e ouvi o que esperava ser o som das tres Furias esmagadas contra as janelas.
- Ei! - gritou o motorista. - Ei! Oaaa!
Ele lutou para segurar o volante. O onibus chocou-se com a lateral do tunel, o metal arrastado pela parede lancando fagulhas um quilometro atras de nos.
Saimos de lado do tunel, de volta a tempestade, com pessoas e monstros arremessados de um canto a outro do onibus e carros jogados de lado como se fossem pinos de boliche.
De algum modo o motorista achou uma saida. Arremessamo-nos para fora da auto-estrada, passamos meis duzia de semaforos e acabamos disparando por uma daquelas estradas rurais de New Jersey, nas quais nao da para acreditar que exista tanto nada do outro lado do rio quando se deixa Nova York. Havia bosques a nossa esquerda e o rio Hudson a direita, e o motorista parecia se desviar na direcao do rio.
Outra grande ideia: aperto o freio de emergencia.
O onibus gemeu, tracou um circulo completo sobre o asfalto molhado e se chocou contra as arvores. As luzes de emergencia se acenderam. A porta se abriu. O motorista foi o primeiro a sair, com os passageiros gritando enquanto fugiam em panico atras dele. Subi no assento do motorista e deixei-os passar.
As Furias retomaram o equilibrio. Estalaram os chicotes para Annabeth enquanto ela brandia a faca e gritava em grego antigo que recuassem. Grover atirava latas.
Olhei para a porta aberta. Eu estava livre para partir, mas nao podia abandonar meus amigos. Tirei o bone invisivel.
- Ei!
As Furias se viraram, mostrando as presas amareladas para mim, e a saida de repente me pareceu uma excelente ideia. A sra. Dodds avancou de modo arrogante pelo corredor, como costumava fazer em classe, pronta para entregar meu F na prova de matematica. Cada vez que ela estalava o chicote, chamas vermelhas dancavam pelo couro farpado.
Suas duas irmas horrorosas pularam para cima dos assentos de ambos os lados e se arrastaram na minha direcao como dois lagartos enormes e asquerosos.
- Perseu Jackson - disse a sra.Dodds com um sotaque que vinha de algum lugar mais distante do que o sul da Georgia. - Voce ofendeu os deuses. Voce deve morrer.
- Eu gostava mais de voce como professora de matematica - falei.
Ela rosnou.
Annabeth e Grover se aproximaram com cautela por tras das Furias, procurando uma passagem.
Tirei a esferografica do bolso e a destampei. Contracorrente se alongou e virou uma reluzente espada de fio duplo.
As Furias hesitaram.
A sra. Dodds ja havia sentido a lamina de Contracorrente antes. Obviamente nao gostou de ve-la de novo.
- Renda-se agora - sibilou. - E nao sofrera o tormento eterno.
- Boa tentativa - disse a ela.
- Percy, cuidado! - gritou Annabeth.
A sra. Dodds lancou seu chicote em volta da mao com a qual eu segurava a espada, enquanto as Furias em cada lado pularam em cima de mim.
Era como se minha mao estivesse envolta em chumbo derretido, mas consegui nao soltar Contracorrente. Atingi a Furia da esquerda com o cabo e a mandei cambaleando de costas para a poltrona. Virei e fiz um corte na Furia da direita. Assim que a lamina entrou em contato com o pescoco dela, ela gritou e explodiu em po. Annabeth agarrou a sra. Dodds em um golpe de luta e a atirou para tras, enquanto Grover arrancava o chicote de suas maos.
- Ai! - gritou ele. - Ai! Quente! Quente!
A Furia que eu havia atingido com o cabo da espada veio de novo para cima de mim, garras a mostra, mas desferi um golpe com Contracorrente e ela estourou como um saco cheio de bolinhas de isopor.
A sra. Dodds estava tentando tirar Annabeth das costas. Ela esperneou, arranhou, sibilou e mordeu, mas Annabeth se agarrou firme enquanto Grover amarrava suas pernas com seu proprio chicote. Depois os dois a empurraram de costas para o corredor. A sra. Dodds tentou se erguer, mas nao havia espaco para ela bater as asas de morcego, portanto continuou caindo.
- Zeus o destruira! - prometeu ela. - Hades tera sua alma!
- Braccas meas vescimini! - gritei.
Eu nao sabia muito bem de onde viera o latim. Acho que queria dizer: \Coma as minhas calcas!.
Um trovao sacudiu o onibus. Os cabelos se ericaram na minha nuca.
- Fora! - gritou Annabeth para mim. - Agora!
Nao era necessario.
Corremos para fora e encontramos os outros passageiros andando de uma lado para outro, atordoados, discutindo com o motorista ou correndo em circulos e gritando: \Nos vamos morrer!. Um turista de camisa com estampa havaiana e uma camara bateu uma foto minha antes que eu pudesse por a tampa na minha espada.
- Nossas malas! - Grover se deu conta. - Nos deixamos nossas...
BUUUUUUM!!
As janelas do onibus explodiram enquanto os passageiros corriam para se abrigar. Um relampago rasgara uma enorme cratera no teto, mas um lamento furioso la dentro me disse que a sra. Dodds ainda nao estava morta.
- Corram! - disse Annabeth. - Ela esta chamando reforcos! Temos de sair daqui!
Mergulhamos para dentro dos bosques enquanto a chuva despencava torrencialmente, com o onibus em chamas atras de nos e nada a frente a nao ser trevas.
ONZE . Nossa visita ao Emporio de Anoes de Jardim.
De certo modo, e bom saber que ha deuses gregos la fora, porque ai temos alguem para culpar quando as coisas dao errado. Por exemplo, quando voce esta se afastando a pe de um onibus que acaba de ser atacado por bruxas monstruosas e explodido por um relampago, e ainda por cima esta chovendo, a maioria das pessoas acha que na verdade isso e apenas muita falta de sorte - quando se e um meio-sangue, a gente sabe que alguma forca divina esta tentando estragar o nosso dia.
Entao la estavamos nos, Annabeth, Grover e eu, andando pelos bosques ao longo da margem do rio, em New Jersey, as luzes de Nova York tornando o ceu amarelo atras de nos e o fedor do rio Hudson entrando por nosso nariz.
Grover estava tremendo e balindo, e seus grandes olhos de bode, cujas pupilas haviam se transformado em fendas, estavam cheios de terror.
- Tres Benevolentes. As tres de uma vez.
Eu mesmo estava em estado de choque. A explosao das janelas do onibus ainda ecoava em meus ouvidos. Mas Annabeth nos fazia seguir, dizendo:
- Vamos! Quanto mais longe chegarmos, melhor.
- Todo o nosso dinheiro ficou la atras - lembrei. - Nossa comida e nossas roupas. Tudo.
- Bem, quem sabe se voce nao tivesse decidido entrar na briga...
- O que queria que eu fizesse? Deixasse voces serem mortos?
- Voce nao precisava me proteger, Percy. Eu ia ficar bem.
- fatiada como pao de forma - interveio Grover -, mas bem.
- Cale a boca, garoto-bode - disse Annabeth.
Grover baliu, triste.
- As latas... Uma sacola de latas perfeitamente boa.
Nos chapinhamos pelas terras lamacentas, por entre horriveis arvores retorcidas que tinham um cheiro azedo de roupa suja.
Depois de alguns minutos, Annabeth veio para o meu lado.
- Olhe, eu... - sua voz vacilou. - Eu gostei de voce ter voltado para nos defender, ok? Aquilo foi realmente corajoso.
- Somos uma equipe, certo?
Ela ficou em silencio por mais alguns passos.
- E so que, se voce morresse... alem do fato de que seria realmente uma droga para voce, isso significaria o fim da missao. Esta pode ser a minha unica chance de ver o mundo real.
A tempestade havia finalmente acalmado. As luzes da cidade diminuiram atras de nos, deixando-nos em uma escuridao quase total. Nao conseguia ver nada de Annabeth a nao ser um reflexo de seu cabelo loiro.
- Voce nao sai do Acampamento Meio-Sangue desde que tinha sete anos? - perguntei-lhe.
- Nao... apenas excursoes rapidas. Meu pai...
- O professor de historia.
- E. Nao deu certo morar em casa. Quer dizer, o Acampamento Meio-Sangue e a minha casa. - Ela agora estava despejando as palavras como se tivesse medo de que alguem a interrompesse. - No acampamento a gente treina, treina. E e legal e tudo mais, mas o mundo real e onde os monstros estao. E onde a gente descobre se serve para alguma coisa ou nao.
Se nao a conhecesse bem, poderia ter jurado que ouvi duvida em sua voz.
- Voce e muito boa com aquela faca - falei.
- Voce acha?
- Qualquer um que seja capaz de montar nas costas de uma Furia, para mim, e muito bom.
Nao pude ver direito, mas acho que ela deu um sorrisinho.
- Sabe - disse ela -, talvez eu deva lhe contar... Uma coisa engracada la no onibus...
O que quer que ela quisesse dizer foi interrompido por um piado estridente, como o som de uma coruja sendo torturada.
- Ei, as minhas flautas de bambu ainda funcionam! - exclamou Grover. - Se ao menos eu pudesse me lembrar de uma melodia de \achar caminho., poderiamos sair desses bosques!
Ele soprou algumas notas, mas a semelhanca da melodia com a de Hilary Duff ainda era questionavel.
Em vez de achar um caminho, imediatamente colidi com uma arvore e arranjei um galo de bom tamanho na cabeca.
Adicionar a lista de superpoderes que eu nao tenho: visao infravermelha.
Depois de tropecar, praguejar e, de modo geral, me sentir infeliz por mais um quilometro ou algo assim, comecei a ver luzes a frente: as cores de um letreiro de neon. Senti cheiro de comida. Comida frita, gordurosa, excelente. Percebi que nao havia comido nada que nao fosse saudavel desde que chegara a Colina Meio-Sangue, onde viviamos de uvas, pao, queijo e churrasco light preparado por ninfas. O garoto aqui precisava de um cheeseburguer duplo.
Continuamos andando ate que vi por entre as arvores uma estrada deserta de duas pistas. Do outro lado havia um posto de gasolina fechado, um cartaz de um filme dos anos 90 e uma loja aberta, que era a fonte de luz de neon e do cheiro gostoso.
Nao era um restaurante de fast-food como eu esperava. Era uma dessas estranhas lojas de curiosidades de beira de estrada, que vendem flamingos de jardim, indios de madeira, ursos-pardos de cimento e coisas do genero. A construcao principal era um armazem comprido e baixo, cercado por quilometros de estatuas. O letreiro de neon acima do portao era para mim impossivel de ler, pois, se existe coisa pior para a minha dislexia do que ingles normal, e ingles em letras cursivas, vermelhas, em neon.
Para mim, parecia MEOPROI ED NESOA ED JIDARN AD IAT MEE.
- Que diabos que dizer aquilo? - perguntei.
- Nao sei - disse Annabeth.
Ela gostava tanto de ler que eu esquecera que ela tambem era dislexica.
Grover traduziu:
- Emporio de Anoes de Jardim da Tia Eme.
Nas laterais da entrada, conforme anunciado, havia dois anoes de jardim de cimento, uns nanicos e feios e barbados, sorrindo e acenando como se estivessem posando para uma fotografia.
Atravessei a rua, seguindo o cheiro dos hamburgeres.
- Ei... - avisou Grover.
- As luzes estao acessas la dentro - disse Annabeth. - Talvez esteja aberto.
- Lanchonete - falei, ansioso.
- Lanchonete - concordou ela.
- Voces dois estao loucos? - disse Grover. - Este lugar e esquisito.
Nos o ignoramos.
O terreno da frente era uma floresta de estatuas: animais de cimento, criancas de cimento, ate um satiro de cimento tocando as flautas, o que deixou Grover arrepiado.
- Beeee! - baliu. - Parece meu tio Ferdinando!
Paramos diante da porta do armazem.
- Nao bata - implorou Grover. - Sinto cheiro de monstros.
- Seu nariz esta congestionado com as Furias - disse-lhe Annabeth. - O unico cheiro que estou sentindo e de hamburgueres. Voce nao esta com fome?
- Carne! - disse ele, desdenhoso. - Sou vegetariano.
- Voce come enchiladas de queijo e latas de aluminio - lembrei-o.
- Sao vegetais. Venham, vamos embora. Essas estatuas estao... olhando para mim.
Entao a porta se abriu rangendo, e diante de nos estava uma mulher alta, do Oriente Medio - eu pelo presumi que fosse de la, porque usava um longo vestido preto que escondia tudo menos as maos, e sua cabeca estava totalmente coberta por um veu. Seus olhos brilhavam embaixo de uma cortina de gaze preta, mas isso foi tudo o que pude distinguir. As maos cor de cafe pareciam velhas, mas bem cuidadas e elegantes, portanto imaginei que se tratasse de uma avo que fora outrora uma bonita dama.
O sotaque dela tambem tinha um que do Oriente Medio. Ela disse:
- Criancas, ja e muito tarde para estarem sozinhas na rua. Onde estao seus pais?
- Eles estao... ahn... - Annabeth comecou a dizer.
- Nos somos orfaos - falei.
- Orfaos? - disse a mulher. A palavra soou estranha em sua boca. - Mas meus queridos! Certamente nao!
- Nos nos perdemos da caravana - disse eu. - A caravana do nosso circo. O Mestre-de cerimonias nos disse para encontra-lo no posto de gasolina se nos perdessemos, mas ele pode ter esquecido, ou talvez se referisse a outro posto de gasolina. De qualquer modo, estamos perdidos. Esse cheiro e de comida?
- Ah, meus queridos - disse a mulher. - Voces precisam entrar, pobres criancas. Eu sou a tia Eme. Vao direto para os fundos do armazem, por favor. Ali ha um lugar para refeicoes.
Agradecemos e entramos.
Annabeth murmurou para mim;
- Caravana do circo?
- Sempre ha uma estrategia, certo?
- Sua cabeca esta cheia de algas.
O armazem era abarrotado de mais estatuas - pessoas, todas em poses diferentes, usando roupas diferentes e com expressoes diferentes no rosto. Fiquei imaginando que era preciso ter um jardim bem grande para alojar ainda que uma unica estatua daquelas, porque eram todas em tamanho natural. Mas eu estava mesmo era pensando em comida.
Va em frente, pode me chamar de idiota por ir entrando na loja de uma senhora estranha como aquela so porque estava com fome, mas as vezes faco as coisas por impulso. Alem disso, voce nunca sentiu o cheiro dos hamburgueres da tia Eme. O aroma era como um gas hilariante na cadeira do dentista . fazia sumir todo o resto. Mal reparei nos solucos nervosos de Grover, nem no modo como os olhos das estatuas pareciam me seguir ou no fato de que a tia Eme trancara a porta atras de nos.
Tudo o que me preocupava era achar o lugar das refeicoes. E, sem duvida, la estava, no fundo do armazem, um balcao de sanduiches com uma grelha, uma maquina de refrigerantes, uma estufa de pretzels e uma maquina de queijo nacho. Tudo o que poderiamos querer, mais algumas mesas de piquinique de aco na frente.
- Por favor, sentem-se - disse a tia Eme.
- Fantastico - comentei.
- Hum - disse Grover com relutancia -, nao temos nenhum dinheiro, senhora.
Antes que eu pudesse dar uma cotovelada nas costelas dele, a tia Eme disse:
- Nao, nao, criancas. Nada de dinheiro. Esse e um caso especial, certo? Para orfaos tao simpaticos, e por minha conta.
- Obrigada, senhora - disse Annabeth.
Tia Eme enrijeceu-se, como se Annabeth tivesse dito algo de errado, mas depois, com a mesma rapidez, relaxou. Portanto achei que estivesse imaginando coisas.
- Nao tem de que, Annabeth. Voce tem uns olhos cinzentos tao bonitos, crianca. - So depois me perguntei como ela sabia o nome de Annabeth, ja que nao tinhamos nos apresentado.
Nossa anfitria desapareceu atras do balcao e comecou a cozinhar. Antes que eu me desse conta, ela nos tinha trazido bandejas de plastico com cheesburguer duplos, Milk-shakes de baunilha e porcoes gigantes de batas fritas.
Eu ja tinha comido metade do meu sanduiche quando me lembrei de respirar.
Annabeth sorveu ruidosamente seu Milk-shake.
Grover beliscou as batatas fritas e olhou para o papel-toalha da bandeja como quem poderia experimentar aquilo, mas ainda parecia nervoso demais para comer.
- O que e esse chiado? - perguntou ele.
Prestei atencao, mas nao ouvi nada. Annabeth sacudiu a cabeca.
- Chiado? - perguntou tia Eme. - Talvez voce esteja ouvindo o oleo de fritura. Voce tem bons ouvidos, Grover.
- Eu tomo vitaminas. Para os ouvidos.
- Admiravel - disse ela. - Mas, por favor, relaxe.
Tia Eme nao comeu nada. Ela nao descobrira a cabeca nem para cozinhar, e agora estava sentada com os dedos entelacados, observando enquanto comiamos. Era um pouco incomodo ser observado por alguem cujo o rosto eu nao conseguia ver, mas me sentia satisfeito depois do sanduiche, e um pouco sonolento, e imaginei que o minimo que podia fazer era puxar um pouco de conversa com nossa anfitria.
- Entao, voce vende anoes - falei, tentando parecer interessado.
- Ah, sim - disse tia Eme. - E animais. E pessoas. Tudo para o jardim. Sob encomenda. As estatuas sao muito populares, sabe.
- Muito movimento nessa estrada?
- Nao, nem tanto. Desde que a auto-estrada foi construida... a maioria dos carros ja nao passa por este caminho. Preciso cuidar bem de cada cliente que recebo.
Senti um formigamento na nuca, como se alguem estivesse me observando. Virei-me, mas era apenas a estatua de uma garotinha segurando uma cesta de Pascoa. Os detalhes eram incriveis, muito melhores que os vistos na maioria das estatuas de jardim. Mas havia algo de errado com seu rosto. Ela parecia assustada, ate aterriorizada.
- Ah! - disse tia Eme com tristeza. - Voce pode notar que alguma das minhas criacoes nao dao muito certo. Elas sao defeituosas. Nao vendem. O rosto e a parte mais dificil de sair perfeito. Sempre o rosto.
- Voce mesma faz estas estatuas? - perguntei.
- Ah, sim. Ja tive duas irmas para me ajudar no negocio, mas elas faleceram, e a tia Eme ficou sozinha. So tenho as minhas estatuas. E por isso que as faco, sabe? Sao minha compania. - a tristeza na voz dela parecia tao profunda e tao real que nao pude deixar de sentir pena.
Annabeth tinha parado de comer. Ela se inclinou e disse:
- Duas irmas?
- E uma historia terrivel - disse tia Eme. - Nao e para criancas, na verdade. Veja, Annabeth, uma mulher ma estava com inveja de mim, muito tempo atras, quando eu era jovem. Eu tinha um... um namorado, sabe, e essa mulher ma estava determinada a nos separar. Ela provocou um acidente terrivel. Minhas irmas ficaram do meu lado. Compartilharam a minha ma sorte enquanto foi possivel, mas por fim morreram. Elas se esvairam. So eu sobrevivi, mas a um preco. Que preco.
Nao entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti pena. Minhas palpebras estavam cada vez mais pesadas, o estomago cheio me deixara sonolento. Coitada da velha senhora. Quem ia querer fazer mal a alguem tao gentil?
- Percy? - Annabeth me sacudia para chamar minha atencao. - Acho que devemos ir. Quer dizer, o mestre-de-cerimonias do circo deve estar esperando.
A voz dela pareceu tensa. Eu nao sabia muito bem por que. Grover estava comendo o papel encerado da bandeja, mas se tia Eme estranhou aquilo, nao disse nada.
- Que olhos cinzentos bonitos - disse ela, outra vez para Annabeth. - Ah, mas faz muito tempo que nao vejo olhos cinzentos como esses.
Ela estendeu o braco como se fosse acariciar o rosto de Annabeth, mas Annabeth se levantou abruptamente.
- Precisamos mesmo ir.
- Sim! - Grover engoliu o papel toalha encerado e pos-se de pe. - O mestre-de-cerimonia esta esperando! Isso!
Eu nao queria ir. Estava satisfeito e contente. Tia Eme era muito gentil. Queria ficar um pouco com ela.
- Por favor, queridos - implorou a tia Eme. - E tao raro eu estar com criancas... Antes de ir, nao gostariam de pelo menos de posar para uma foto?
- Uma foto? - perguntou Annabeth com cautela.
- Sim, uma fotografia. Vou usa-la como modelo para um novo conjunto de estatuas. Criancas sao muito populares, sabem? Todo mundo ama criancas.
Annabeth se balancou de um pe para o outro.
- Acho que nao podemos, senhora. Vamos, Percy...
- Claro que podemos - disse eu. Estava irritado com Annabeth por ser tao mandona, tao mal-educada com uma velha senhora que acabara de nos dar comida de graca. - E so uma foto, Annabeth. Qual e o problema?
- Sim, Annabeth - a mulher murmurou. - Nao ha mal nenhum.
Percebi que Annabeth nao tinha gostado, mas deixou que tia Eme nos levasse para fora pela porta da frente, para o jardim de estatuas.
Tia Eme nos conduziu ate um banco de jardim perto do satiro de pedra.
- Agora - disse ela - vou posicionar voces corretamente. A mocinha no meio, e os dois jovens cavalheiros em cada lado.
- Nao ha muita luz para uma foto - observei.
- Ah, e o suficiente - disse tia Eme. - Suficiente para enxergarmos um ao outro, nao e?
- Onde esta a sua camera? - perguntou Grover.
Tia Eme deu um passo atras, como que para admirar a foto.
- Agora, o rosto e o mais dificil. Voces podem sorrir para mim, por favor, todo mundo? Um grande sorriso?
Grover deu uma olhada para o satiro de cimento a seu lado e murmurou:
- Parece mesmo com o tio Ferdinando.
- Grover! - ralhou tia Eme. - Olhe para este lado, querido.
Ela ainda nao tinha nenhuma camera nas maos.
- Percy... - disse Annabeth.
Algum instinto
me advertiu a dar ouvidos a Annabeth, mas eu estava lutando contra a sensacao de sono, a agradavel moleza induzida pela comida e pela voz da velha senhora.
- Nao vai demorar nem um segundo - disse tia Eme. - Sabe, nao consigo ve-los muito bem por causa desse maldito veu...
- Percy, alguma coisa esta errada - insistiu Annabeth.
- Errada? - disse tia Ema, erguendo as maos para remover p veu em volta da cabeca. - De modo algum, querida. Estou em tao nobre companhia esta noite. O que poderia estar errado?
- Aquele e o tio Ferdinando! - disse Grover, arfando.
- Nao olhem para ela! - gritou Annabeth. Num piscar de olhos, ela enfiou o bone dos Yankees na cabeca e desapareceu. Suas maos invisiveis empurrara Grover e eu para fora do banco.
Eu me vi caido no chao, olhando para as sandalias nos pes de tia Eme.
Pude ouvir Grover correndo para um lado e Annabeth para o outro. Mas eu estava aturdido demais para me mexer.
Entao ouvi um som estranho, um chiado, acima de mim. Meus olhos se ergueram para as maos de tia Eme, que se tornaram enrugadas e cheias de verrugas, com afiadas garras de bronze no lugar das unhas.
Quase olhei mais para o alto, mas em algum lugar a minha esquerda Annabeth gritou:
- Nao! Nao olhe!
Mais chiados - o som de pequenas serpentes, logo acima de mim, que vinham de... de onde deveria estar a cabeca da tia Eme.
- Corra! - baliu Grover.
Ouvi-o correndo pelos pedregulhos, gritando gMaia!h para dar partida em seus tenis voadores. Eu nao conseguia me mexer. Fiquei olhando ficamente para as garras encarquilhadas de tia Eme, e tentei lutar contra o transe entorpecedor em que a velha me pusera.
- Que pena ter de destruir um jovem rosto tao bonito - disse-me em tom confortador. - Fique comigo, Percy. Tudo o que tem a fazer e olhar para cima.
Combati o impeto de obedecer. Em vez disso, olhei para o lado e vi uma daquelas bolas de vidro que as pessoas poem nos jardins - uma esfera espelhada. Pude ver o reflexo escuro de tia Eme no vidro alaranjado; seu veu se fora, revelando o rosto como um circulo palido tremeluzente. Os cabelos se mexiam, se contorcendo como serpentes.
Tia Eme.
Tia \M..
Como pude ser tao estupido?
Pense, disse a mim mesmo. Como foi que a Medusa morreu no mito?
Mas eu nao conseguia pensar. Algo me dizia que a Medusa do mito estava dormindo quando foi atacada por meu xara, Perseu. Agora, nao estava nem um pouco sonolenta. Se quisesse, poderia usar aquelas garras ali mesmo e rasgar o meu rosto.
- A dos Olhos Cinzentos fez isso comigo, Percy - disse a Medusa, ela nao soava como um monstro. Sua voz me convidava a olhar para cima, a simpatizar com a pobre vovo velhinha. - A mae de Annabeth, a maldita Atena, transformou a bela mulher que eu era nisto aqui.
- Nao de puvidos a ela! - gritou a voz de Annabeth, de algum lugar entre as estaturas. - Corra, Percy!
- Silencio! - rosnou a Medusa. Depois sua voz voltou a ser um murmurar tranquilizante. - Voce esta vendo por que preciso destruir a menina, Percy. Ela e filha de minha inimiga. Vou esmagar a sua estatua ate virar po. Mas voce, querido, voce nao precisa sofrer.
- Nao - murmurei. Tentei fazer minhas pernas se mexerem.
- Voce quer mesmo ajudar os deuses? - perguntou a Medusa. - Entende o que o espera nessa missao boba, Percy? O que acontecera se chegar ao Mundo Inferior? Nao seja um peao dos olimpianos, meu querido. Voce estara melhor como estatua. Menos dor. Menos dor.
- Percy!
Atras de mim, ouvi um zumbido, como o de um beija-flor de cem quilos dando um mergulho. Grover gritou:
- Abaixe-se!
Eu me virei, e la estava ele, Grover, no ceu noturno, vindo bem na minha frente, com os tenis voadores batendo as assas, segurando um galho de arvore do tamanho de um bastao de beisebol. Seus olhos estavam fechados com forca, a cabeca se agitando de um lado para o outro. Guiava-se so pelos ouvidos e o nariz.
- Abaixe-se! - gritou ele de novo. - Vou pega-la!
Aquilo por fim me acordou para acao. Conhecendo Grover, tinha certeza de que ele ia errar a Medusa e me acertar. Mergulhei para um lado.
Plaft!
De inicio pensei que fosse o som de Grover atingindo uma arvore. Entao a Medusa rugiu de raiva.
- Seu satiro miseravel - rosnou. - Vou acrescenta-lo a minha colecao!
- Essa foi pelo tio Ferdinando! - gritou Grover de volta.
Sai correndo aos tropecoes e me escondi entre as estatuas enquanto Grover mergulhava para mais um ataque.
Pimba!
- Aaargh! - berrou a Medusa, as serpentes do cabelo sibilando e cuspindo.
Bem ao meu lado, a voz de Annabeth disse:
- Percy!
Pulei tao alto que meus pes quase derrubaram um anao de jardim.
- Ai! Nao faca isso!
Annabeth tirou o bone dos Yankees e se tornou visivel.
- Voce tem de cortar a cabeca dela.
- O que?
- Esta louca? Vamos dar o fora daqui.
- A Medusa e uma ameaca. Ela e ma. Eu mesma a mataria, mas... - Annabeth engoliu em seco, como se estivesse prestes a admitir algo dificil. - Mas voce tem a melhor arma. Alem disso, nunca vou conseguir chegar perto dela. Ela me faria em pedacinhos por causa da minha mae. Voce... voce tem uma chance.
- O que? Eu nao posso...
- Olhe, voce quer que ela transforme mais gente inocente em estatua?
Ela apontou para as estatuas de um casal apaixonado, um homem e uma mulher abracados, transformados em pedra pelo monstro.
Annabeth, agarrou uma esfera espelhada verde de um pedestal proximo.
- Um escudo espelhado seria melhor. - Ela estudou a esfera com ar critico. - A convexidade causara uma certa distorcao. O tamanho do reflexo estara distorcido por uma fator de...
- Quer falar numa lingua que eu entenda?
- Estou falando! - Ela me jogou a bola de vidro. - So olhe para a Medusa pelo espelho. Nunca olhe diretamente para ela.
- Ei, gente! - gritou Grover em algum lugar acima de nos. - Acho que ela esta inconsciente!
- Grrraaaurrr!
- Talvez nao - corrigiu ele. E mergulhou para mais um ataque.
- Depressa - disse Annabeth para mim. - Grover tem um excelente nariz, mas vai acabar caindo.
Peguei minha caneta e tirei a tampa. A lamina de bronze de Contracorrente se alongou em minha mao.
Segui os sons de silvos e cuspidas do cabelo de Medusa.
Mantive os olhos cravados na esfera espelhada para ver somente o reflexo do monstro, e nao a coisa real. Entao, no vidro tingido de verde, eu a enxerguei.
Grover vinha descendo para mais um assalto com o bastao, mas dessa vez voou um pouco baixo demais. A Medusa agarrou o bastao e o desviou do curso. Ele deu uma cambalhota no ar e tombou nos bracos de um urso-pardo de pedra com um dolorido gUummmpffh.
A Medusa estava a ponto de pular em cima dele quando eu gritei:
- Ei!
Avancei na direcao dela, o que nao foi facil, segurando uma espada e uma bola de vidro. Se a Medusa atacasse, seria dificil me defender.
Mas ela deixou que eu me aproximasse - seis metros, tres metros.
Agora era possivel para ver o reflexo do seu rosto. Certamente nao era assim tao feio. As curvas verdes da bola espelhada deviam estar distorcendo a imagem, tornando-a ainda pior.
- Voce nao machucaria uma velhinha, Percy - sussurrou ela. - Sei que nao faria isso.
Hesitei, fascinado pelo rosto que vi refletido no vidro - os olhos que pareciam arder refletidos no tom esverdeado, fazendo mes bracos fraquejarem.
De cima do urso-pardo de cmento, Grover gemeu:
- Percy, nao lhe de ouvidos!
A Medusa gargalhou.
- Tarde demais.
Ela se lancou ate mim com suas garras.
Dei um golpe com a espada, ouvi um plof! nauseante, e entao um chiado como o de vento escapando de uma caverna - o som de um monstro se desintegrando.
Algo caiu no chao ao lado do meu pe. Precisei reunir toda a minha forca de vontade para nao olhar. Pude sentir uma secrecao morna empapando minha meia e pequenas serpentes agonizantes puxando os cadarcos dos meus sapatos.
- Ah, eca! - disse Grover. Seus olhos ainda estavam bem fechados, mas imagino que conseguisse ouvir aquilo gorgolejando e fumegando. - Megaeca.
Annabeth se aproximou de mim, os olhos fixos no ceu. Estava segurndo o veu da medusa.
- Nao se mova - disse ela.
Com muito, muito cuidado, sem olhar para baixo, ajoelhou-se e embrulhou a cabeca do monstro no pano preto, depois a ergueu. Ainda estava pingando um suco verde.
- Tudo bem com voce? - perguntou-me com a voz tremula.
- Sim - conclui, embora sentisse vontade de vomitar meu cheesburguer duplo. - Por que... por que a cabeca nao evaporou?
- Depois que voce a decepa, ela se torna um trofeu de guerra - disse ela. - Como o chifre do Minotauro. Mas nao a desembrulhe. Ainda pode petrifica-lo.
Grover gemeu enquanto descia da estatua do urso-pardo. Estava com um grande vergo na testa. O bone rastafari verde estava pendurado em um dos pequenos chifres de bode e os pes falsos haviam sido arrancados dos cascos. Os tenis magicos voavam sem rumo em volta de sua cabeca.
- Nosso grande aviador - disse eu. - Bom trabalho, cara.
Ele conseguiu dar um sorriso envergonhado.
- Se bem que, na verdade, nao foi nada divertido. Bem, a parte de acerta-la com o pau, isso foi bom. Mas me arrebentar contra um urso de concreto? Nada divertido.
Ele agarrou os tenis no ar. Eu pus a tampa em minha espada. Juntos, nos tres voltamos cambaleando para o armazem.
Encontramos alguns sacos plasticos velhos atras do balcao de lanches e embrulhamos duas vezes a cabeca da Medusa. Com um plop, largamos a coisa em cima da mesa onde haviamos jantado e nos sentamos em volta, exaustos demais para falar.
Por fim eu disse:
- Entao temos de agradecer a Atena por esse monstro?
Annabeth me lancou um olhar irritado.
- A seu pai, na verdade. Medusa era namorada de Poseidon. Eles combinaram um encontro no templo de minha mae. Foi por isso que Atena a transformou em monstro. A Medusa e suas irmas, que a ajudaram a entrar no templo, se transformaram nas tres Gorgonas. E por isso que ela queria me picar em pedacinhos, mas ia conservar voce como uma bela estatua. Ainda gosta de seu pai. Voce deve te-la feito se lembrar dele.
Meu rosto estava ardendo.
- Ah, entao a culpa de termos encontrado a Medusa e minha?
Annabeth endireitou o corpo. Em uma pessima imitacao de minha voz, disse:
- \E so uma foto, Annabeth. Qual e o problema?.
- Deixa para la - falei. - Voce e impossivel.
- Voce e insuportavel.
- Voce e...
- Ei! - Interrompeu Grover. - Voces dois estao me dando enxaqueca. E satiros nem tem enxaqueca. O que vamos fazer com a cabeca?
Eu olhei para aquilo. Uma pequena serpente estava pendurada para fora de um buraco no plastico. As palavras impressas no saco diziam: AGRADECEMOS SUA VISITA!
Eu estava zangado, nao so com Annabeth ou a mae dela, mas com todos os deuses por causa daquela missao, por nos terem tirado da estrada e pelas duas grandes batalhas logo no primeiro dia fora do acampamento. Nesse ritmo, jamais chegariamos vivos a Los Angeles, muito menos antes do solsticio de verao.
O que a Medusa tinha dito? Nao seja um peao dos olimpianos, meu querido. Voce estara melhor como estatua.
Eu me levantei.
- Volto ja.
- Percy - chamou Annabeth. - O que voce...
Vasculhei os fundos do armazem ate encontrar o escritorio da Medusa. Seu livro-caixa mostrava as seis vendas mais recentes, todas remessadas para o Mundo Inferior para decorar o jardim de Hades e Persefone. De acordo com uma nota de embarque, o endereco de cobranca do Mundo Inferior era os Estudios de Gravacao M.A.C. . Morto ao Chegar -, West Hollywood, California. Dobrei a nota e a enfiei no bolso.
Na caixa registradora encontrei vinte dolares, uns dracmas de ouro e algumas guias de remessa do Expresso Noturno de Hermes, cada qual com uma pequena bolsa de couro anexa, para moedas. Vasculhei o restante do escritorio ate encontrar uma caixa do tamanho certo.
Voltei para a mesa de piquenique, encaixotei a cabeca da Medusa e preenchi uma guia de remessa:
AOS DEUSES
MONTE OLIMPO,
600o ANDAR,
EDIFICIO EMPIRE STATE
NOVA YORK, NY
COM OS MELHORES VOTOS,
PERCY JACKSON
- Eles nao vao gostar disso - advertiu Grover. - Vao acha-lo impertinente.
Coloquei alguns dracmas de ouro na bolsa anexa. Assim que a fechei, veio um som como o de uma caixa registradora. O pacote flutuou para fora da mesa e desapareceu com um pop!
- Eu sou impertinente - disse.
Olhei para Annabeth, desafiando-a a me criticar.
Ela nao criticou. Parecia resignada com o fato de eu ter um talento especial para chatear os deuses.
- Vamos - murmurou ela. - Precisamos de um novo plano.
DOZE . Um poodle e o nosso conselheiro.
Estavamos nos sentindo superinfelizes naquela noite.
Acampamos no bosque, a cem metros da estrada principal, em uma clareira pantanosa que as criancas do lugar obviamente vinham usando para festas. O chao estava repleto de latas de refrigerantes amassadas e embalagens de fast-food.
Tinhamos pego um pouco de comida e cobertores da tia Eme, mas nao ousamos acender uma fogueira para secar nossas roupas molhadas. As Furias e a Medusa ja haviam proporcionado animacao suficiente para um dia. Nao queriamos atrair mais nada.
Decidimos dormir em turnos. Prontifiquei-me a ser o primeiro a ficar de guarda.
Annabeth enroscou-se sobre os cobertores e ja estava roncando quando sua cabeca tocou o chao. Grover subiu com seus tenis voadores para o galho mais baixo de uma arvore, encostou-se no tronco e ficou olhando para o ceu da noite.
- Va em frente e durma - disse a ele. - Acordo voce se houver problemas.
Ele assentiu, mas ainda assim nao fechou os olhos.
- Isso me deixa triste, Percy.
- O que? Ter se juntado a essa missao estupida?
- Nao. Isso me deixa triste. - Ele apontou para todo aquele lixo no chao. - E o ceu. Nao da nem para ver as estrelas. Eles poluiram o ceu. Esta e uma epoca terrivel para ser um satiro.
- Ah, sim. Acho que voce seria um ambientalista.
Ele me lancou um olhar penetrante.
- So um ser humano nao seria. Sua especie esta entulhando o mundo tao depressa que... Ora, nao importa. E inutil fazer sermoes para um ser humano. Do jeito que as coisas vao, nunca encontrarei Pan.
- Que Pan?
- Pan! - bradou, indignado. - P-A-N. O grande deus Pan! Acha que quero uma licenca de buscador para que?
Uma brisa estranha faz farfalhar a clareira, encobrindo por um momento o fedor de lixo e putrefacao. Trazia o cheiro de frutas e flores selvagens, e de agua limpa de chuva, coisas que devem ter existido algum dia naqueles bosques. De repente, senti saudades de algo que jamais conhecera.
- Fale-me sobre a busca - disse eu.
Grover olhou para mim com receio, como se temesse que eu estivesse apenas me divertindo as custas dele.
- O Deus dos Lugares Selvagens desapareceu ha dois mil anos - contou. - Um marinheiro vindo da costa de Efeso ouviu uma voz misteriosa gritando na praia: \Conte a eles que o grande deus Pan morreu!. Quando os seres humanos ouviram a noticia, acreditaram. Estao pilhando o reino de Pan desde entao. Mas, para os satiros, Pan era nosso senhor e mestre. Era nosso protetor, e tambem dos lugares selvagens na Terra. Nao acreditamos que tenha morrido. A cada geracao, os satiros mais valentes empenham a vida para encontrar Pan. Eles esquadrinham o planeta, explorando todos os locais mais selvagens a espera de encontrar o lugar onde ele se esconder e desperta-lo de seu sono.
- E voce quer ser um buscador.
- E o sonho da minha vida - disse ele.- Meu pai era um buscador. E meu tio Ferdinando... a estatua que voce viu la...
- Ah, certo, desculpe.
Grover sacudiu a cabeca.
- Tio Ferdinando sabia os riscos. Meu pai tambem. Mas eu terei sucesso. Serei o primeiro buscador a retornar com vida.
- Espere... o primeiro?
Grover tirou suas flautas de bambu do bolso.
- Nenhum buscador jamais voltou. Depois que partem, eles desaparecem. Nunca mais sao vistos vivos de novo.
- Nem uma vez em dois mil anos?
- Nao.
- E seu pai? Voce nao tem ideia do que aconteceu com ele?
- Nenhuma.
- Mas ainda assim quer ir - falei, admirado. - Quer dizer, voce realmente acha que sera voce quem vai encontrar Pan?
- Preciso acreditar nisso, Percy. Todo buscador acredita. E a unica coisa que nos impede de ficar desesperados quando olharmos para o que os seres humanos fizeram com o mundo. Tenho de acreditar que Pan ainda pode estar despertado.
Olhei para o nevoeiro alaranjado do ceu e tentei entender como Grover podia perseguir um sonho que parecia tao impossivel. Mas, por outro lado, sera que eu era melhor?
- Como vamos entrar no Mundo Inferior? - perguntei. - Quer dizer, que chances temos contra um deus?
- Eu nao sei - admitiu ele. - Mas antes, na casa da Medusa, quando voce estava vasculhando o escritorio dela, Annabeth me disse...
- Ah, esqueci. Annabeth sempre tem um plano todo esquematizado.
- Nao seja tao duro com ela, Percy. Annabeth teve uma vida dificil, mas e boa pessoa. Afinal, ela me perdoou... - ele se interrompeu.
- O que quer dizer? - perguntei. - Perdoou o que?
De repente, Grover pareceu muito interessado em tirar notas das suas flautas.
- Espere um minuto - disse eu. - Seu primeiro trabalho de guardiao foi cinco anos atras. Annabeth esta no acampamento ha cinco anos. Ela nao era... quer dizer, a sua primeira tarefa que deu errado...
- Nao posso falar sobre isso - disse Grover, e o tremor em seu labio inferior me sugeriu que ele comecaria a chorar se eu o pressionasse. - Mas como eu estava dizendo, la na casa da Medusa Annabeth e eu achamos em que ha algo estranho com esta missao. Algo que nao e o que parece.
- Ah, novidades. Estou sendo acusado de roubar um relampago que foi Hades quem pegou.
- Nao me refiro a isso. As Fu... as Benevolentes pareciam estar se segurando. Como a sra. Dodds na Academia Yancy... por que ela esperou tanto tempo para tentar mata-lo? Depois, no onibus, elas nao foram tao agressivas quanto poderiam.
- Elas me pareceram bastante agressivas.
Grover sacudiu a cabeca.
- Estavam guinchando para nos: \Onde esta? Onde?.
- Perguntavam sobre mim - falei.
- Talvez... mas tanto eu como Annabeth tivemos a sensacao de que nao estavam perguntando sobre uma pessoa. Elas perguntaram apenas \Onde esta?., e nao onde ele ou ela esta. Pareciam falar de um objeto.
- Isso nao faz sentido.
- Eu sei. Mas, se tivermos entendido mal alguma coisa a respeito desta missao, e so temos nove dias para encontrar o raio-mestre... - Ele olhou para mim como se estivesse esperando por respostas, mas eu nao tinha nenhuma.
Pensei no que a Medusa dissera: eu estava sendo usado pelos deuses. O que me aguardava era pior que a petrificacao.
- Nao fui sincero com voce - contei a Grover. - Eu nao me importo com o raio-mestre. Concordei em ir para o Mundo Inferior para poder trazer de volta a minha mae.
Grover soprou uma nota suave nas suas flautas.
- Eu sei, Percy. Mas voce tem certeza de que esse e o unico motivo?
- Nao estou fazendo isso para ajudar meu pai. Ele nao se importa comigo eu nao me importo com ele.
Do seu galho, Grover olhou atentamente para baixo.
- Olhe, Percy. Nao sou tao esperto quanto Annabeth. Nao sou tao valente quanto voce. Mas sou muito bom em ler emocoes. Voce esta contente porque seu pai esta vivo. Sente-se bem pelo fato de ele o ter assumido como filho, e parte de voce quer que ele fique orgulhoso. Foi por isso que voce despachou a cabeca da Medusa para o Olimpo. Voce queria que ele visse o que voce fez.
- E mesmo? Bem, talvez as emocoes dos satiros funcionem de um jeito diferente das emocoes humanas. Porque voce esta errado. Nao me importo com o que ele pensa.
Grover puxou os pes para cima do galho.
- Certo, Percy. Tanto faz.
- Alem disso, nao fiz nada demais para me vangloriar. Mas saimos de Nova York e ja estamos aqui encalhados sem dinheiro e sem ter como ir para o oeste.
Grover olhou para o ceu noturno, como se estivesse pensando no problema.
- Que tal eu ficar com o primeiro turno, heim? Va dormir um pouco.
Eu quis protestar, mas ele comecou a tocar Mozart, suava e doce, e eu me virei para o outro lado, os olhos ardendo. Depois de alguns compassos do Concerto para Piano n.12 eu estava dormindo.
*****
Em meus sonhos, eu estava em uma caverna escura a beira de um enorme abismo. Criaturas cinzentas de nevoa se revolviam a minha volta, sussurrando tiras de fumaca que eu, de algum modo, sabia que eram os espiritos dos mortos.
Eles puxavam as minhas roupas, tentando me empurrar de volta, mas eu me sentia compelido a andar para frente, para a beira.
Olhar para baixo me dava vertigens.
O abismo se abria tao voraz e tao largo, e era tao completamente negro, que eu sabia que nao devia ter fundo. Contudo tinha a sensacao de que algo tentava emergir dali, algo enorme e maligno.
O pequeno heroi, ressoou uma voz em deleite, vinda la de baixo, das trevas. Fraco demais, jovem demais, mas talvez voce sirva.
A voz parecia ancestral - fria e pesada. Envolveu-me como lencois de chumbo.
Eles o enganaram, menino, disse ela. Faca comigo uma troca. Eu lhe darei o que quer.
Uma imagem tremeluzente pairou acima do vazio: minha mae, congelada no momento em que se dissolveu em uma chuva de ouro. Seu rosto estava distorcido de dor, como se o Minotauro ainda apertasse seu pescoco. Os olhos me encaravam, implorando: Va!
Tentei gritar, mas minha voz nao saiu.
De dentro do abismo, um riso frio ecoou.
Uma forca invisivel me puxou para frente. Ia me arrastar para o precipicio se eu nao aguentasse firme.
Ajude-me a subir, menino. A voz ficou mais avida. Traga-me o raio. Desfira um golpe contra os deuses traicoeiros!
Os espiritos dos mortos sussurravam a minha volta: Nao! Acorde!
A imagem da minha mae comecou a sumir. A coisa no abismo apertou sua garra invisivel em volta de mim.
Percebi que ela nao queria me puxar para dentro. Estava me usando para erguer a si mesma para fora.
Bom, a coisa murmurou. Bom.
Acorde! sussurraram os mortos. Acorde!
*****
Alguem estava me sacudindo.
Meus olhos se abriram, e era dia.
- Ah! - disse Annabeth. - O zumbi volta a vida.
Eu tremia por causa do sonho. Ainda podia sentir o aperto do monstro do abismo em volta do meu peito.
- Quanto tempo estive dormindo?
- O suficiente para eu preparar o cafe-da-manha - Annabeth me jogou um saco de flocos de milho sabor nacho, da lanchonete da tia Eme. - E para Grover sair e explorar. Olhe, ele encontrou um amigo.
Tive dificuldades em focalizar o olhar.
Grover estava sentado de pernas cruzadas em um cobertor com alguma coisa felpuda no colo, um bicho de pelucia sujo e de um cor-de-rosa artificial.
Nao. Nao era um animal de pelucia. Era um poodle cor-de-rosa.
O poodle latiu para mim, desconfiado. Grover disse:
- Nao, ele nao e.
Eu pisquei.
- Voce esta... falando com essa coisa?
O poodle rosnou.
- Esta coisa - avisou Grover - e nossa passagem para o oeste. Seja simpatico com ele.
- Voce pode falar com animais?
Grover ignorou a pergunta.
- Percy, apresento-lhe Gladiola. Gladiola, Percy.
Olhei para Annabeth, calculando que ela fosse rir da peca que eles estavam me pregando, mas ela pareceu extremamente seria.
- Nao vou dizer ola para um poodle cor-de-rosa - falei. - Esqueca.
- Percy - disse Annabeth -, eu disse ola para o poodle. Diga ola para o poodle.
O poodle rosnou.
Eu disse ola para o poodle.
Grover explicou que havia encontrado Gladiola no bosque e que comecaram a conversar. O poodle tinha fugido de uma familia endinheirada do lugar, que oferecera duzentos dolares de recompensa para quem o devolvesse. Gladiola na verdade nao queria voltar para a familia, mas estava disposto a faze-lo, se isso fosse ajudar Grover.
- Como Gladiola sabe da recompensa? - perguntei.
- Ele leu os avisos - disse Grover. - Obvio...
- E claro - retruquei. - Que bobagem a minha.
- Entao nos entregamos Gladiola - explicou Annabeth, em seu melhor tom de estrategista -, recebemos o dinheiro e compramos passagens para Los Angeles. Simples.
Pensei no sonho - as vozes sussurrantes dos mortos, a coisa no abismo e o rosto de minha mae, tremeluzindo enquanto se dissolvia em dourado. Tudo aquilo podia estar esperando por mim no oeste.
- Nao em outro onibus - disse, cauteloso.
- Nao - concordou Annabeth.
Ela apontou colina abaixo, para os trilhos de trem que eu nao conseguira ver na noite anterior, no escuro.
- Ha uma estacao da Amtrack a um quilometro naquela direcao. De acordo com Gladiola, o trem para o oeste parte ao meio-dia.
TREZE . Meu mergulho para morte.
Passamos dois dias no trem, rumo a oeste pelas colinas, por cima de rios, atravessando ondas de trigo cor de ambar.
Nao fomos atacados nem uma vez, mas nao relaxei. Sentia que estavamos viajando em uma vitrine, sendo observados de cima e, talvez de baixo, que alguma coisa estava aguardando o momento certo.
Tentei ser discreto, pois meu nome e fotografia estavam estampados nas primeiras paginas de varios jornais da Costa Leste. O Trenton Register-News publicou uma foto tirada por um turista quando desci do onibus da Greyhound. Estava com uma expressao ensandecida nos olhos. Minha espada era um borrao metalico em minhas maos. Poderia ser um taco de beisebol ou de lacrose.
A legenda da foto dizia:
Percy Jackson, 12 anos, procurando para interrogatorio sobre o desaparecimento em Long Island de sua mae ha duas semanas, aparece aqui fugindo do onibus onde abordou diversas passageiras idosas. O onibus explodiu no acostamento de uma rodovia a leste de New Jersey logo depois que Jackson fugiu da cena do crime. Com base em relatos de testemunhas, a policia acredita que o menino possa estar viajando com dois cumplices adolescentes. O padrasto, Gabe Ugliano, ofereceu uma recompensa em dinheiro para qualquer informacao que leve a sua captura.
- Nao se preocupe - disse-me Annabeth. - A policia dos mortais nunca nos encontraria.
Mas nao pareceu muito segura.
Passei o resto do dia alternando entre andar de uma ponta a outra do trem (pois para mim era dificil ficar sentado) e olhar pelas janelas.
Numa oportunidade avistei uma familia de centauros galopando por um campo de trigo, arcos de prontidao, como se estivessem cacando o almoco. O menininho centauro, que era do tamanho de um ponei, percebeu que eu estava olhando e acenou. Olhei em volta no vagao de passageiros, porem mais ninguem reparou. Os passageiros adultos estavam todos com a cara enterrada em laptops ou revistas.
Em outra, mais ao anoitecer, vi algo muito grande se movendo pelo bosque. Poderia jurar que era um leao, so que nao ha leoes vivendo soltos nos Estados Unidos, e aquilo era do tamanho de um tanque de guerra. O pelo tinha reflexos dourados a luz do entardecer. Ele entao saltou por entre as arvores e desapareceu.
*****
O dinheiro de recompensa por devolver o poodle Gladiola so foi bastante para comprar passagens ate Denver. Nao pudemos comprar leitos no vagao-dormitorio, entao cochilamos nos assentos. Meu pescoco ficou duro. Tentei nao babar enquanto dormia, ja que Annabeth estava sentada bem a meu lado.
Grover ficou roncando e balindo, e me acordava. Num momento ele se agitou demais e um de seus pes falsos caiu. Annabeth e eu tivemos de enfia-lo de volta antes que algum dos outros passageiros notasse.
- E entao - Annabeth me perguntou depois que recolocamos o tenis de Grover -, quem quer a sua ajuda?
- O que quer dizer?
- Quando estava dormindo agora mesmo, voce murmurou \Nao quero ajudar voce.. Com quem estava sonhando?
Estava em duvida sobre dizer alguma coisa. Era a segunda vez que sonhava com a voz maligna do abismo. Aquilo me incomodava tanto que, por fim, contei a ela.
Annabeth ficou em silencio por um bom tempo.
- Nao parece ser Hades. Ele sempre aparece sentado em um trono negro, e nunca ri.
- Ele ofereceu minha mae em troca. Quem mais poderia fazer isso?
- Eu acho... se ele queria dizer \Ajude-me a subir do Mundo Inferior.... Se ele quer guerra com os olimpianos... Mas por que pedir a voce o raio-mestre, se ele ja o tem?
Sacudi a cabeca, desejando saber a resposta. Pensei no que Grover havia contado, que as Furias no onibus pareciam estar procurando alguma coisa.
Onde esta? Onde?
Talvez Grover tivesse sentido as minhas emocoes. Ele bufou dormindo, resmungou algo sobre vegetais, e virou a cabeca.
Annabeth ajeitou o bone dele para cobrir os chifres.
- Percy, voce nao pode negociar com Hades. Sabe disso, certo? Ele e enganador, cruel e ganancioso. Nao me importo se suas Benevolentes nao foram tao agressivas dessa vez...
- Dessa vez? - perguntei. - Voce quer dizer que ja cruzou com elas antes?
A mao dela deslizou ate o colar. Ela manuseou uma conta branca vitrificada, na qual estava pintada a imagem de um pinheiro, um dos seus marcos de fim de verao, em argila.
- Digamos apenas que nao morro de amores pelo Senhor dos Mortos. Voce nao pode ficar tentado a negociar sua mae.
- O que faria se fosse seu pai?
- Essa e facil - disse ela. - Eu o deixaria apodrecer.
- Serio?
Os olhos cinzentos de Annabeth se fixaram em mim. Estavam com a mesma expressao que vi no bosque, no acampamento, no momento em que ela puxou a espada contra o cao infernal.
- Meu pai me detestou desde o dia em que nasci, Percy - disse ela. - Ele nunca quis um bebe. Quando me ganhou, pediu a Atena que me levasse de volta e me criasse no Olimpo, porque estava muito ocupado com seu trabalho. Ela nao ficou contente com isso. Disse a ele que os herois tem de ser criados por seu parente mortal.
- Mas como... quer dizer, voce nao nasceu em um hospital...
- Apareci na porta do meu pai, em um berco de ouro, trazido do Olimpo por Zefiro, o Vento Ocidental. Dai voce imaginaria que meu pai se lembrasse disso como um milagre, nao e? Como se, quem sabe, tivesse feito algumas fotos digitais ou algo do tipo. Mas ele sempre falou sobre a minha chegada como se fosse a coisa mais inconveniente que ja lhe acontecera. Quando eu tinha cinco anos, ele se casou e esqueceu totalmente Atena. Arranjou uma esposa mortal \normal. e teve dois filhos mortais \normais., e tentou fazer de conta que eu nao existia.
Olhei pela janela do trem. As luzes de uma cidade adormecida estavam passando. Quis fazer Annabeth se sentir melhor, mas nao sabia como.
- Minha mae se casou com um cara horroroso demais - contei a ela. - Grover disse que ela fez isso para me proteger, para me esconder no cheiro de uma familia humana. Quem sabe seu pai nao estava pensando nisso?
Annabeth continuou focada em seu colar. Apertava o anel de formatura de ouro que estava pendurado entre as contas. Ocorreu-me que o anel devia ser do pai dela. Fiquei imaginando por que ela o usava se o odiava tanto.
- Ele nao liga para mim - disse ela. - A mulher dele... minha madrasta... me tratava como uma aberracao. Ela ia me deixar brincar com os filhos dela. Meu pai concordava. Sempre que acontecia alguma coisa perigosa... sabe, algo a ver com monstros... os dois me olhavam com raiva, do tipo \Como voce ousa por nossa familia em perigo.. No fim, entendi a indireta. Eu nao era querida. Eu fugi.
- Que idade voce tinha?
- A mesma idade que comecei o acampamento. Sete.
- Mas... voce nao ia conseguir chegar ate a Colina Meio-Sangue sozinha.
- Nao, sozinha nao. Atena me protegeu, me guiou em direcao a ajuda. Fiz amigos inesperados que cuidaram de mim, bem, por pouco tempo.
Quis perguntar o que havia acontecido, mas Annabeth parecia perdida em lembrancas tristes. Entao ouvi o som dos roncos de Grover e fiquei olhando para fora, pelas janelas do trem, enquanto os campos escuros de Ohio iam passando.
*****
Perto do fim do nosso segundo dia no trem, em 13 de junho, oito dias antes do solsticio de verao, passamos por algumas colinas douradas e sobre o rio Mississipi, e entramos em St. Louis.
Annabeth esticou o pescoco para ver o Portal em Arco, que me pareceu uma enorme alca de sacola de compras fincada na cidade.
- Eu quero fazer aquilo - suspirou ela.
- O que? - perguntei.
- Construir algo como aquilo. Voce ja viu o Partenon, Percy?
- So em fotos.
- Algum dia eu vou ve-lo em pessoa. Vou construir o maior monumento aos deuses que ja foi feito. Algo que vai durar mil anos.
Eu ri.
- Voce? Uma arquiteta?
Nao sei por que, mas achei aquilo engracado: a ideia de Annabeth tentando ficar sentada em silencio desenhando o dia inteiro.
As bochechas dela coraram.
- Sim, uma arquiteta. Atena espera que seus filhos criem coisas, nao apenas as derrubem, como um certo deus dos terremotos.
Observei as aguas marrons e turbulentas do Mississipi embaixo.
- Desculpe - disse Annabeth. - Isso foi maldoso.
- Nao da para trabalharmos juntos? - implorei. - Quer dizer, Atena e Poseidon nao poderiam colaborar um com o outro?
Annabeth teve de pensar a respeito.
- Eu acho... a carruagem - disse ela, hesitante. - Minha mae a inventou, mas Poseidon criou os cavalos saidos das cristas das ondas. Entao eles tiveram de trabalhar juntos para torna-la completa.
- Entao nos tambem podemos colaborar um com o outro. Certo?
Entramos na cidade. Annabeth olhava enquanto o Arco desaparecia atras de um hotel.
- Acho que sim - disse, afinal.
Entramos na estacao da rede ferroviaria no centro da cidade. O alto falante nos avisou que teriamos uma parada de tres horas antes de partir para Denver.
Grover se espreguicou. Ainda despertando, disse:
- Comida.
- Vamos, menino-bode - disse Annabeth. - Fazer um passeio.
- Passeio?
- Ate o Portal em Arco - disse ela. - Pode ser a minha unica oportunidade de subir ate o topo. Voce vem ou nao?
Grover e eu nos entreolhamos.
Eu queria dizer nao, mas conclui que, se Annabeth ia, nao poderiamos deixa-la sozinha.
- Desde que haja uma lanchonete sem monstros.
*****
O Arco ficava a cerca de um quilometro e meio da estacao. No fim do dia, as filas para entrar nao eram tao longas. Seguimos cautelosamente pelo museu subterraneo, olhando para vagoes cobertos e outras sucatas do seculo XIX. Nao era assim tao empolgante, mas Annabeth ia contando fatos interessantes sobre como o Arco fora construido e Grover me passava jujubas, portanto, para mim estava bom.
Mas fiquei olhando em volta, para as outras pessoas na fila.
- Esta sentindo algum cheiro? - murmurei para Grover.
Ele tirou o nariz do saco de jujubas por tempo suficiente para farejar.
- Subterraneo - disse ele enojado. - O ar embaixo da terra sempre tem cheiro de monstros. Provavelmente nao quer dizer nada.
Mas eu tinha a sensacao de que algo estava errado. Tinha a sensacao de que nao deviamos estar ali.
- Gente - disse eu -, voces conhecem os simbolos de poder dos deuses?
Annabeth estava no meio da leitura sobre o equipamento de construcao usado para erigir o Arco, mas deu uma olhada.
- Sim?
- Bem, Hades...
Grover pigarreou.
- Estamos em local publico... Voce quer dizer, o nosso amigo do andar de baixo?
- Ahn, certo - falei. - Nosso amigo do andar muito de baixo. Ele nao tem um chapeu como o de Annabeth?
- Voce quer dizer o Elmo das Trevas - disse Annabeth. - Sim, e seu simbolo de poder. Eu o vi junto ao assento dele durante a assembleia do solsticio de inverno.
- Ele estava la? - perguntei.
Ela assentiu.
- E a unica ocasiao em que ele tem permissao de visitar o Olimpo - o dia mais escuro do ano. Mas, se o que ouvi e verdade, o elmo e muito mais poderoso que meu bone da invisibilidade...
- Permite que ele se transforme em trevas - confirmou Grover. - Ele pode se fundir com as sombras ou passar atraves de paredes. Nao pode ser tocado nem visto nem ouvido. E pode irradiar um medo tao intenso que e capaz de enlouquecer voce, ou fazer seu coracao parar de bater. Por que acha que todas as criaturas racionais tem medo do escuro?
- Mas entao... como sabemos se ele nao esta aqui agora mesmo, nos observando? - perguntei.
Annabeth e Grover se entreolharam.
- Nos nao sabemos - disse Grover.
- Obrigado, agora me sinto muito melhor - falei. - Ainda sobrou alguma jujuba azul?
Tinha quase controlado meu desespero quando vi o minusculo elevador no qual iriamos subir ate o topo do Arco, e percebi que estava encrencado. Odeio espacos confinados. Eles me deixam doido.
Fomos espremidos dentro do elevador junto com uma senhora grande e gorda e seu cao, um chihuahua com uma coleira de falsos brilhantes. Calculei que talvez o chihuahua fosse um cao-guia, por que nenhum dos guardas disse uma palavra a respeito.
Comecamos a subir dentro do Arco. Eu nunca havia estado em um elevador que subia em curva, e meu estomago nao gostou muito.
- Sem os pais? - perguntou-nos a senhora gorda.
Tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes; dentes pontudos e manchados de cafe; um chapeu mole de jeans e um vestido de jeans armado demais. Parecia um dirigivel jeans.
- Eles estao la embaixo - disse Annabeth. - Tem medo de altura.
- Ah, pobrezinhos.
O chihuahua rosnou. A mulher disse:
- Vamos, vamos, filhinho. Comporte-se. - O cao tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes como os da dona, inteligentes e malvados.
Eu disse:
- Filhinho. E o nome dele?
- Nao.
Ela falou e sorriu, como se aquilo esclarecesse tudo.
No topo do Arco, a plataforma de observacao me lembrou uma lata acarpetada. Fileiras de janelinhas davam para a cidade, de um lado, e para o rio, do outro. A vista era legal, mas se existe uma coisa de que gosto ainda menos que lugar fechado, e um lugar fechado a duzentos metros de altura.
Annabeth seguiu falando sobre suportes estruturais e sobre como teria feito as janelas maiores e projetado um piso transparente. Ela poderia ter ficado la em cima horas a fio, mas, para minha sorte, o guarda anunciou que a plataforma de observacao seria fechada em poucos minutos.
Guiei Grover e Annabeth em direcao a saida, enfiei-os no elevador e estava quase entrando quando me dei conta de que ja havia outros dois turistas la dentro. Nao tinha espaco para mim.
O guarda disse:
- Proximo carro, senhor.
- Vamos sair - disse Annabeth. - Vamos esperar com voce.
Mas aquilo ia atrapalhar todo mundo e levar ainda mais tempo, entao eu disse:
- Nao, tudo bem. Vejo voces la embaixo.
Grover e Annabeth pareceram nervosos, mas deixaram a porta do elevador se fechar. O carro desapareceu rampa abaixo.
Agora as unicas pessoas que restavam na plataforma de observacao eramos eu, um garotinho com os pais, o guarda e a senhora gorda com o chihuahua.
Sorri pouco a vontade para a senhora gorda. Ela sorriu de volta, a lingua bifurcada tremulando entre os dentes.
Espere um minuto.
Lingua bifurcada?
Antes que eu pudesse concluir se tinha realmente visto aquilo, o chihuahua pulou no chao e comecou a latir para mim.
- Vamos, vamos, filhinho - disse a senhora. - Nao esta divertido? Temos todas essas pessoas simpaticas aqui.
- Cachorrinho! - disse o menino. - Olhe, um cachorrinho!
Os pais o puxaram de volta.
O chihuahua arreganhou os dentes para mim, a espuma pingando dos labios negros.
- Bem, meu filho - suspirou a senhora gorda. - Se voce insiste.
Meu estomago comecou a gelar.
- Ahn, voce chamou esse chihuahua de filho?
- Quimera, querido - corrigiu a senhora gorda. - Nao e um chihuahua. E um engano muito comum.
Ela arregacou as mangas jeans, mostrando que a pele de seus bracos era escamosa e verde. Quando sorriu, vi que seus dentes eram presas. As pupilas dos olhos eram fendas verticais, como as dos repteis.
O chihuahua latiu mais alto, e a cada latido ele crescia. Primeiro ficou do tamanho de um doberman, depois de um leao. O latido se transformou em rugido.
O menininho gritou. Os pais o puxaram para a saida, bem na direcao do guarda, que estava paralisado, de olhos arregalados para o monstro.
A Quimera estava tao alta que suas costas tocavam o teto. Tinha cabeca de leao, com a juba untada de sangue, o corpo e os cascos de um bode gigante e uma serpente no lugar da cauda, losangos de tres metros de comprimento brotavam do traseiro peludo.
Ainda tinha no pescoco a coleira de falsos brilhantes e a placa, do tamanho de um prato, era agora facil de ler: QUIMERA . RAIVOSA, HALITO DE FOGO, VENENOSA . SE ENCONTRADA, FAVOR LIGAR PARA O TATARO . RAMAL 954.
Percebi que nao havia sequer tirado a tampa da minha espada. Minhas maos estavam amortecidas. Eu estava a tres metros da bocarra sangrenta da Quimera, e sabia que assim que me mexesse a criatura iria investir.
A mulher-cobra fez um som sibilante que poderia ter sido uma risada.
- Sinta-se honrado, Percy Jackson. O Senhor Zeus raramente me permite por um heroi a prova com um de minha prole. Pois eu sou a Mae de Monstros, a terrivel Equidna!
Olhei para ela. Tudo que eu pude pensar foi:
- Isso nao e o nome de bicho que come formigas?
Ela uivou, a cara de reptil ficou marrom e verde de raiva.
- Detesto quando as pessoas dizem isso! Detesto a Australia! Dar meu nome aquele animal ridiculo. Por causa disso, Percy Jackson, meu filho o destruira!
A Quimera avancou, os dentes de leao rangendo. Consegui pular para o lado e me esquivar da mordida.
Fui parar junto da familia e do guarda, que agora estavam todos gritando, tentando abrir a forca as portas da saida de emergencia.
Nao podia deixar que eles fossem feridos. Tirei a tampa da espada, corri para o outro lado da plataforma e gritei:
- Ei, chihuahua!
A Quimera se virou mais depressa do que eu achava possivel.
Antes que eu pudesse erguer a espada, ela abriu a boca, soltando um mau cheiro como o da maior churrasqueira do mundo, e lancou uma coluna de chamas bem em cima de mim.
Mergulhei atraves da explosao. O carpete explodiu em chamas; o calor foi tao intenso que quase queimou minhas sobrancelhas.
O lugar onde eu estava um momento antes se tornara um buraco esfarrapado na lateral do Arco, com metal derretido fumegando nas bordas.
Essa e boa, pensei. Acabamos de soldar um monumento nacional.
Contracorrente era agora uma lamina de bronze reluzente em minhas maos, e quando a Quimera se virou, eu a golpeei com violencia no pescoco.
Foi um erro fatal. A lamina faiscou sem efeito contra a coleira de cachorro. Tentei recuperar o equilibrio, mas estava tao preocupado em me defender da boca chamejante de leao que me esqueci completamente da cauda de serpente, ate que ela fez uma volta e cravou as presas na minha panturrilha.
Minha perna inteira ardeu em fogo. Tentei enfiar Contracorrente na boca da Quimera, mas a cauda de serpente enrolou-se nos meus tornozelos e me desequilibrou, e a espada voou de minha mao, saiu rodopiando pelo buraco no Arco e caiu no rio Mississipi.
Consegui ficar em pe, mas sabia que tinha perdido. Estava desarmado. Podia sentir o veneno letal subindo por meu peito. Lembrei-me de Quiron dizendo que Anaklusmos sempre voltaria para mim, mas nao havia nenhuma caneta em meu bolso. Talvez estivesse caido longe demais. Ou so voltasse quando estava em forma de caneta. Eu nao sabia, e nao ia viver o bastante para descobrir.
Recuei para o buraco na parede. A Quimera avancou, rosnando e soltando espirais de fumaca pelos labios. A mulher-serpente, Equidna, gargalhou.
- Ja nao se fazem mais herois como antigamente, heim, filho?
O monstro rosnou. Parecia nao estar com pressa de acabar comigo, agora que eu estava derrotado.
Dei uma olhada para o guarda e a familia. O menininho se escondia atras das pernas do pai. Eu tinha de proteger aquelas pessoas. Nao podia simplesmente... morrer. Tentei pensar, mas meu corpo inteiro estava em fogo. Minha cabeca girava. Eu nao e tinha espada. Estava enfrentando um monstro imenso, que cuspia fogo, e sua mae. E estava apavorado.
Nao havia outro lugar para ir, portanto subi na beira do buraco. Muito, muito embaixo, o rio brilhava.
Sera que se eu morresse os monstros iriam embora? Deixariam os humanos em paz?
- Se voce e o filho de Poseidon - sibilou Equidna -, entao nao tem medo da agua. Pule, Percy Jackson. Mostre-me que a agua nao lhe fara mal. Pule e recupere a espada. Prove a sua linhagem.
Sim, certo, pensei. Eu tinha lido em algum lugar que pular na agua da altura de alguns andares era como se atirar em asfalto. Dali, eu ia me desfazer em pedacos com o impacto.
A boca da Quimera estava vermelha, incandescente, preparando uma nova rajada de fogo.
- Voce nao tem fe - disse a Quimera. - Nao confia nos deuses. Nao posso culpa-lo, pequeno covarde. Melhor que morra agora. Os deuses sao infieis. O veneno esta no seu coracao.
Ela estava certa: eu estava morrendo. Podia sentir a respiracao falhando. Ninguem poderia me salvar, nem mesmo os deuses.
Recuei e olhei para a agua la embaixo. Lembrei-me do calor do sorriso de meu pai quando eu era um bebe. Ele deve ter me visto. Deve ter me visitado quando eu estava no berco.
Lembrei-me do tridente verde que aparecera girando acima da minha cabeca na noite da captura da bandeira, quando Poseidon me reconheceu como seu filho.
Mas aquilo nao era o mar. Aquilo era o Mississipi, bem no meio dos Estados Unidos. Ali nao havia nenhum Deus do mar.
- Morra, infiel - disse a voz rouca de Equidna, e a Quimera mandou uma coluna de fogo na direcao de meu rosto.
- Pai, me ajude - implorei.
Virei-me e pulei. Minhas roupas em chamas, o veneno correndo por minhas veias, mergulhei no rio.
QUATORZE . Me torno um fugitivo conhecido.
Eu adoraria contar que tive alguma revelacao profunda enquanto caia, que aprendi a aceitar minha propria mortalidade, que ri em face da morte etc.
A verdade? Meu unico pensamento foi: Aaaaarggghhhh!
O rio vinha em minha direcao na velocidade de um caminhao. O vento arrancou o folego dos meus pulmoes. Torres, arranha-ceus e pontes giravam entrando e saindo do meu campo de visao.
E entao...
Cata-puuum!
Um turbilhao de bolhas. Afundei nas trevas, certo de que acabaria engolindo por trinta metros de lama e perdido para sempre.
Mas meu impacto com a agua nao doeu. Eu estava agora descendo lentamente, com bolhas passando por entre meus dedos. Fui parar no fundo do rio, em silencio. Um peixe-gato do tamanho do meu padrasto se afastou com uma guinada para a escuridao. Nuvens de lodo e lixo nojento - garrafas de cerveja, sapatos velhos, sacos plasticos - giravam ao meu redor.
Aquela altura me dei conta de algumas coisas. Primeiro: eu nao tinha sido achatado como uma panqueca. Nao havia sido assado como churrasco. Nao sentia nem mesmo o veneno da Quimera fervendo em minhas veias. Eu estava vivo, o que era bom.
Segundo: eu nao estava molhado. Quer dizer, conseguia sentir a friagem da agua. Podia ver onde o fogo em minhas roupas tinha sido apagado. Mas, quando toquei minha camisa, parecia perfeitamente seca.
Olhei para o lixo que passava flutuando e agarrei um velho isqueiro.
Sem chance, pensei.
Risquei o isqueiro. Uma faisca saltou. Uma chama pequenina apareceu, bem ali, no fundo do Mississipi.
Agarrei uma embalagem ensopada de hamburguer na corrente e o papel secou imediatamente. Queimei-o sem problemas. Assim que o soltei, as chamas bruxelearam e se apagaram. A embalagem voltou a se transformar em um trapo viscoso. Esquisito.
Mas a ideia mais estranha me ocorreu por ultimo: eu estava respirando. Estava embaixo dfagua e respirava normalmente.
Fiquei de pe, afundado ate as coxas na lama. Sentia as pernas tremulas. As maos tremiam. Eu devia estar morto. O fato de nao estar parecia... bem, um milagre. Imaginei uma voz de mulher, uma voz que parecia um pouco com a da minha mae: Percy, como e que se diz?
- Ahn... muito obrigado. - Embaixo dfagua, minha voz soava como em gravacoes, identica a de um garoto muito mais velho. - Muito obrigado... pai.
Nenhuma resposta. Apenas o fluir escuro do lixo rio abaixo, o enorme peixe-gato que passava deslizando, o brilho do sol poente na superficie da agua muito acima, deixando tudo da cor de doce de leite.
Por que Poseidon me salvara? Quanto mais eu pensava nisso, mais envergonhado me sentia. Entao, eu tivera sorte algumas vezes. Contra algo como a Quimera, eu nao tinha a menor chance. Aquela pobre gente no Arco provavelmente virara torrada. Nao consegui protege-los. Nao era nenhum heroi. Talvez devesse simplesmente ficar aqui embaixo com o peixe-gato, juntar-me aos comensais do fundo do rio.
Plof-plof-plof. As pas da helice de um barco agitaram a agua sobre mim, revirando o lodo ao redor.
Ali, nao mais de cinco metros a frente, estava minha espada, a guarda de bronze brilhando, espetada na lama.
Ouvi aquela voz de mulher outra vez: Percy, pegue a espada. Seu pai acredita em voce. Dessa vez percebi que a voz nao estava em minha cabeca. Eu nao a estava imaginando. As palavras pareciam vir de toda parte, ondulando pela agua como o sonar de um golfinho.
- Onde esta voce? - perguntei em voz alta.
Entao, nas sombras, eu a vi - uma mulher da cor da agua, um fantasma na corrente, flutuando logo acima da espada. Tinha longos cabelos ondulantes, e os olhos, pouco visiveis, eram verdes como os meus.
Um no se formou em minha garganta.
- Mamae?
Nao, crianca, apenas uma mensageira, embora o destino de sua mae nao seja tao inevitavel como voce acredita. Va para a praia em Santa Monica.
- O que?
E a vontade se seu pai. Antes de descer para o Mundo Inferior, deve ir a Santa Monica. Por favor, Percy, nao posso ficar muito tempo aqui. O rio e sujo demais para a minha presenca.
- Mas... - Eu nao sabia muito bem se a mulher era a minha mae ou, bem, uma visao dela. - Quem... como voce...
Havia muita coisa que eu queria perguntar, as palavras se amontoavam em minha garganta.
Nao posso ficar, meu valente, disse a mulher. Ela estendeu a mao, e sentia a corrente rocar meu rosto como uma caricia. Voce precisa ir a Santa Monica! E, Percy, cuidado com os presentes...
A voz dela sumiu.
- Presentes? - perguntei. - Que presentes? Espere!
Ela tentou falar novamente, mas o som se fora. Sua imagem se desfez. Se era a minha mae, eu a tinha perdido de novo.
Senti vontade de me afogar. O unico problema: eu era imune a isso.
Seu pai acredita em voce, ela dissera.
Ela tambem me chamara de valente... a nao ser que estivesse falando com o peixe-gato.
Fui me arrastando ate Contracorrente e a agarrei pela guarda. A Quimera ainda podia estar la em cima com sua mae gorda e peconhenta, esperando para acabar comigo. Na melhor das hipoteses, a policia mortal estaria chegando, tentando descobrir quem havia aberto um buraco no Arco. Se me achassem, teriam algumas perguntas a fazer.
Pus a tampa na espada e enfiei a esferografica no bolso.
- Muito obrigado, pai - disse de novo para a agua escura. Entao dei um impulso para cima, atraves da sujeira, e nadei ate a superficie.
*****
Emergi ao lado de um McDonaldfs flutuante.
A um quarteirao de distancia, todos os veiculos de emergencia se St. Louis cercavam o Arco. Helicopteros da policia circulavam no alto. A multidao de curiosos me lembrou Times Square no dia de ano-novo.
Uma menininha disse:
- Mamae! Aquele menino saiu andando do rio.
- Que bom, querida - disse a mae, esticando o pescoco para ver as ambulancias.
- Mas ele esta seco!
- Que bom, querida.
Uma reporter estava falando para a camera:
\Tudo leva a crer, pelo que soubemos, que nao se trata de um ataque terrorista, mas as investigacoes ainda estao muito no comeco. Os danos, como podem ver, sao muito serios. Estamos tentando obter acesso a alguns sobreviventes para questiona-los a respeito de testemunhos de que alguem teria caido de cima do Arco..
Sobreviventes. Senti uma onda de alivio. O guarda e a familia tinham escapado ilesos. Eu esperava que Annabeth e Grover estivessem bem.
Tentei abrir caminho na multidao para ver o que estava acontecendo depois da barreira policial.
\...um adolescente., outro reporte estava dizendo. \O Canal 5 soube que as cameras de vigilancia mostram um adolescente enlouquecido na plataforma de observacao, detonando de algum modo aquela estranha explosao. E dificil acreditar, John, mas e isso que estamos ouvindo dizer. Mais uma vez, nao ha nenhuma fatalidade confirmada....
Recuei, tentando manter a cabeca baixa. Tinha de dar uma volta enorme para contornar a perimetro policial. Havia policiais e reporteres por toda parte.
Estava quase perdendo a esperanca de encontrar Annabeth e Grover quando uma voz familiar baliu:
- Perrr-cy!
Virei-me e dei com o abraco de urso de Grover - ou abraco de bode. Ele disse:
- Pensamos que tivesse ido para o Hades pelo pior caminho!
Annabeth estava tras dele, tentando fazer cara de zangada, mas ate ela parecia aliviada por me ver.
- Nao podemos deixar voce cinco minutos sozinho! O que aconteceu?
- Foi como um tombo.
- Percy! Cento e noventa e dois metros?
Atras de nos, um policial gritou:
- Abram passagem! - A multidao se dividiu e uma dupla de paramedicos avancou empurrando uma mulher numa maca. Eu a reconheci imediatamente como a mae do menininho que estava na plataforma. Ela dizia:
- E entao aquele cachorro enorme, aquele chihuahua enorme cuspindo fogo...
- Certo, minha senhora - disse o paramedico. - Acalme-se por favor. Sua familia esta bem. O medicamento esta comecando a fazer efeito.
- Eu nao estou louca! Aquele menino pulou pelo buraco e o monstro desapareceu. - Entao ela me viu. - La esta ele! E aquele menino!
Virei rapidamente e puxei Annabeth e Grover atras de mim. Desaparecemos na multidao.
- O que esta acontecendo? - perguntou Annabeth. - Ela estava falando do chihuahua do elevador?
Contei a eles a historia inteira da Quimera, Equidna, meu show de mergulho e a mensagem da moça embaixo d’água.
- Uau – disse Grover. - Temos de levá-lo a Santa Monica! Não pode ignorar uma ordem de seu pai.
Antes que Annabeth pudesse responder, passamos por outro repórter que gravava um boletim informativo, e quase fiquei paralisado quando ele disse:
- Percy Jackson. É isso mesmo, Dan. O canal 12 soube que o menino que pode ter causado essa explosão se encaixa na descrição de um rapazinho procurado pelas autoridades por um serio acidente com um ônibus em New Jersey três dias atrás. E acredita-se que o menino esteja viajando para o oeste. Para os nossos espectadores de casa, esta é a foto de Percy Jackson.
Nós nos abaixamos atrás do carro de reportagem e nos esgueiramos para um beco.
- Primeiro o mais importante - disse a Grover. - Temos de sair da cidade!
De algum modo conseguimos voltar à estação ferroviária sem sermos vistos. Embarcamos no trem bem no momento em que estava saindo para Denver. O trem seguiu para oeste enquanto a noite caía, com as luzes da policia ainda piscando contra a silhueta de St. Louis atrás de nós.
QUINZE – Um deus compra cheesburgers para nós.
Na tarde seguinte, 14 de junho, sete dias antes do solstício, nosso trem entrou em Denver. Não comíamos nada desde a noite anterior no vagão-restaurante, em algum lugar de Kansas. Não tomávamos banho desde que saímos da Colina Meio-Sangue, e eu tinha certeza de que isso era oóbvio.
- Vamos tentar entrar em contato com Quíron - disse Annabeth. - Quero contar a ele sobre sua conversa com o espírito do rio.
- Não podemos usar telefones, certo?
- Não estou falando de telefones.
Perambulamos pelo centro da cidade por cerca de meia hora, embora eu não soubesse muito bem o que Annabeth estava procurando. O ar estava seco e quente, o que era estranho depois da umidade de St. Louis. Aonde quer que fôssemos, as Montanhas Rochosas pareciam me olhar, como um tsunami prestes a quebrar sobre a cidade.
Finalmente encontramos um lava-jato vazio. Fomos para o boxe mais afastado da rua, atentos a carros de policia. Éramos três adolescentes sem automóvel em um lava-jato; qualquer policial que se prezasse deduziria que não estávamos tramando nada de bom.
- O que exatamente estamos fazendo? - perguntei quando Grover pegou a mangueira de um compressor. - São setenta e cinco centavos - resmungou. Só me restauram duas moedas de vinte e cinco. Annabeth? - Não olhe para mim - disse ela. - O vagão-restaurante me deixou lisa. Pesquei o meu último restinho de trocados e passei uma moeda de vinte e cinco centavos para Grover, o que me deixou com cinco e um dracma da Medusa. - Excelente - disse Grover. - Poderíamos fazer isso com qualquer spray, é claro, mas a conexão não fica boa, e meus braços cansam de tanto bombear. - Do que está falando? Ele depositou as moedas e ajustou o botão para ESGUICHO FINO. - M. I. - Mensagem instantânea? - Mensagem de Íris - corrigiu Annabeth. - A deusa do arco-íris transmite mensagens aos deuses. Se a gente souber como pedir, e ela não estiver atarefada demais, fará o mesmo para meios-sangues. - Você convoca a deusa com um compressor? Grover apontou o bico da mangueira para o ar e água saiu chiando em uma espessa névoa branca. - A não ser que conheça um meio mais fácil de fazer um arco-íris. De fato, a luminosidade do fim de tarde se filtrou através da névoa e se decompôs em cores. Annabeth estendeu a palma da mão para mim. - Dracma, por favor. Eu o entreguei.
Ela ergueu a moeda acima da cabeça. - Ó deusa, aceite nossa oferenda. Jogou o dracma no arco-íris. Ele desapareceu em um tremuluzir dourado. - Colina Meio-Sangue - solicitou Annabeth. Por um momento, nada aconteceu. E então eu estava olhando através da névoa para campos de morangos e o Estreito de Long Island a distância. Era como se estivéssemos na varanda da Casa Grande. Em pé, de costas para nós junto à cerca, estava um cara de cabelos da cor da areia, de short e camiseta regata laranja. Segurava uma espada de bronze e parecia olhar atentamente para algo na campina. - Luke! - chamei. Ele se virou, os olhos arregalados. Poderia jurar que ele estava na minha frente, a um metro de distância, atrás de uma cortina de névoa,só que eu via apenas a parte dele que aparecia no arco-íris. - Percy! - O seu rosto marcado pela cicatriz se abriu em um sorriso. - E Annabeth também? Graças aos deuses! Vocês estão bem? - Estamos... ahn... ótimos - gaguejou Annabeth. Ela tentava deseperadamente alisar a camiseta suja e tirar os cabelos soltos da fente do rosto. - Nós pensamos... Quíron... quer dizer... - Ele esta lá embaixo nos chalés. - O sorriso de Luke se apagou. Estamos tendo alguns problemas com os campistas. Escute, está tudo legal com vocês? Grover está bem? - Estou bem aqui - gritou Grover. Ele virou o esguicho para um lado e entrou no campo de visão de Luke. - Que tipo de problemas? Bem naquele momento um grande Lincoln Continental entrou no lava-jato com o rádio tocando hip-hop no último volume.
Quando o carro entrou no boxe ao lado, os alto-falantes vibravam tanto que sacudiram o calçamento. - Quíron teve de... que barulho é esse? - gritou Luke. - Deixe que eu cuido disso! - gritou Annabeth parecendo muito aliviada por ter uma desculpa para sair de vista. - Grover, venha! - O quê? - disse Grover. - Mas... - Dê a mangueira a Percy e venha! - ordenou ela. Grover resmungou qualquer coisa sobre as meninas serem mais difíceis de entender do que o Oráculo de Delfos, depois me entregou a mangueira e seguiu Annabeth. Eu reajustei o esguicho para manter o arco-íris e ainda ver Luke. - Quíron teve de separar uma briga - gritou Luke, mais alto que música. - A situação anda um bocado tensa por aqui. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon vazou. Ainda não sabemos direito como... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As coisas estão ficando como na Guerra de Tróia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus.
Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para alguma coisa. No boxe ao lado,ouvi Annabeth e algum cara discutindo, e então o volume da música abaixou drasticamente. - Então, qual é a sua situação? - perguntou Luke para mim. - Quíron vai lamentar muito não ter podido falar com você. Contei-lhe praticamente tudo, inclusive meus sonhos. Era tão boa a sensação de vê-lo, de que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos, que não percebi por quanto tempo havia falado até que o alarme do compressor disparou. Vi que só tinha mais um minuto antes que a água desligasse. - Queria poder estar aí - disse Luke. - Não podemos ajudar muito daqui, infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava lá no Olimpo solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o vimos. - Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do outro. - É verdade - disse Luke, parecendo perturbado. - Ainda assim... Hades tem o elmo das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível. Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera. - Ei - protestou ele. - Não quis dizer Annabeth. Ela e eu nos conhecemos há uma eternidade. Ela jamais iria... quer dizer, ela é como uma irmã para mim. Pensei comigo mesmo se Annabeth iria gostar daquela descrição. No boxe ao lado, a música parou. Um homem gritou aterrorizado, portas de carro bateram e o Lincoln saiu a toda do lava-jato. - É melhor você ir ver o que foi aquilo - disse Luke. - Escute, está usando os ténis voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa. - Ah... ahn, sim! - Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. - Sim, foram úteis. - É mesmo? - sorriu. - Serviram e tudo o mais? A água cessou. A névoa começou a dispersar.
- Bem, cuide-se lá em Denver - gritou Luke, a voz ficando mais baixa. - E diga a Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele apenas... Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu. Eu estava sozinho em um boxe molhado e vazio de lava-jato. Annabeth e Grover apareceram no canto, rindo, mas pararam quando viram minha cara. O sorriso de Annabeth sumiu. - O que aconteceu, Percy? O que Luke disse? - Quase nada - menti, sentindo o estômago tão vazio quanto um chalé dos Três Grandes. - Venham, vamos procurar alguma coisa para jantar. ***** Poucos minutos depois, estávamos sentados num reservado de um pequeno e reluzente restaurante todo cromado. À nossa volta, famílias comiam hambúrgueres e bebiam cerveja e refrigerantes. Finalmente, a garçonete veio. Ela ergueu uma sobrancelha com um ar cético.
- Então? Eu disse: - Nós, ahn, queremos pedir o jantar. - Têm dinheiro para pagar, crianças? O lábio inferior de Grover tremeu. Tive medo de que ele começasse a balir, ou, pior, começasse a comer o linóleo. Annabeth parecia prestes a desmaiar de fome. Eu estava tentando pensar em uma história comovente para a garçonete quando um forte ronco sacudiu o edifício inteiro; uma motocicleta do tamanho de um filhote de elefante havia encostado no meio-fío. Todas as conversas cessaram. O farol da motocicleta brilhava em vermelho. Tinha labaredas pintadas sobre o tanque de gasolina e um coldre de cada lado, com espingardas de caca. O assento era de couro - mas um couro que parecia... bem, pele humana, caucasiana. O cara da moto podia fazer lutadores profissionais saírem correndo chamando a mamãe. Vestia uma camiseta justa vermelha, que ressaltava os músculos, jeans pretos e um casaco comprido de couro preto, com um facão de caça preso à coxa. Usava óculos escuros vermelhos, presos na nuca, e tinha a cara mais cruel, mais brutal que eu já tinha visto - boa-pinta, eu acho, porém mau -, com cabelo aparado a máquina negro como petróleo o rosto marcado por cicatrizes de muitas, muitas brigas. O estranho era que parecia que eu já tinha visto aquele homem em algum lugar. Quando ele entrou no restaurante, um vento quente e seco soprou no ambiente. Todos se levantaram, como se estivessem hipnotizados, mas o motociclista acenou a mão com desdém e eles sentaram de novo. Todos voltaram às suas conversas. A garçonete piscou, como se alguém tivesse apertado o botão de retroceder em seu cérebro. Ela perguntou novamente: - Têm dinheiro para pagar, crianças? O cara da moto disse: - É por minha conta. - Escorregou para dentro do nosso reservado, pequeno demais para ele, e espremeu Annabeth contra janela. Encarou a garçonete, que olhava para ele de olhos arregalados, e disse: - Ainda está aí? Ele apontou para ela, e ela ficou rígida. Virou-se como se alguém a tivesse girado e marchou de volta para a cozinha. O homem da moto me olhou. Não pude ver seus olhos atrás dos óculos vermelhos, mas sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento, amargor. Tive vontade de bater na parede.Tive vontade de comprar briga com alguém. Quem aquele cara pensava que era? Ele me deu um sorriso maldoso. - Então você é o garoto do Velho das Algas, ahn? Eu devia ter ficado surpreso, ou assustado, mas em vez disso era como se estivesse olhando para o meu padrasto, Gabe. Quis arrancar a cabeça do cara: - O que você tem com isso? Os olhos de Annabeth me lançaram um alerta.
- Percy, este é... - Tudo bem - disse ele. - Não me incomodo com um pouco de petulância. Desde que você lembre quem manda. Sabe quem eu sou, priminho? Então me veio à cabeça por que o cara me parecia família. Ele tinha o mesmo olhar cruel de algumas crianças do Acampamento Meio-Sangue, os do chalé 5. - Você é o pai de Clansse - disse eu. - Ares, deus guerra. Ares arreganhou um sorriso e tirou os óculos. Onde deveriam estar os olhos havia apenas fogo, órbitas vazias brilhando com miniexplosões nucleares. - Certo, mané. Ouvi que quebrou a lança de Clarisse. - Ela estava pedindo isso. - Provavelmente. Tranqüilo. Não me meto nas brigas dos meus filhos, sabia? Estou aqui porque ouvi dizer que estava na cidade. Tenho uma pequena proposta para você. A garçonete voltou trazendo bandejas com montes de comida - cheeseburgers, batatas fritas, anéis de cebola empados e milk-shakes de chocolate. Ares entregou-lhe alguns dracmas de ouro. Ela olhou nervosa para as moedas. - Mas estas não são... Ares puxou seu enorme facão e começou a limpar as unhas. - Algum problema, benzinho? A garçonete engoliu em seco e se afastou com o ouro. - Não pode fazer isso - disse a Ares. - Não pode ameaçar pessoas com uma faca. Ares riu. - Está brincando? Eu adoro este país. Melhor lugar, depois de Esparta. Você não anda armado, otário? Pois devia. O mundo lá fora é perigoso. O que me traz de volta à minha proposta. Preciso que me faça um favor. - Que favor eu poderia fazer para um deus? - Algo que um deus não tem tempo de fazer ele mesmo. Nada demais. Larguei meu escudo em um parque aquático abandonado aqui na cidade. Estava no meio de um... encontro com minha namorada. Fomos interrompidos. Deixei o escudo para trás. Quero que vá buscá-lo para mim. - Por que não volta lá e pega você mesmo? O fogo nas órbitas dele ficou um pouco mais incandescente. - Por que não transformo você em uma marmota e o atropelo com minha Harley? Porque não estou com vontade. Um deus está dando a você a oportunidade de se pôr à prova, Percy Jackson. Você vai mostrar que é um covarde? - Ele se inclinou para a frente. - Ou, quem sabe, você só luta quando há um rio para mergulhar dentro, para que seu papai possa protegê-lo? Queria dar um murro naquele cara, mas, de algum modo, sabia que ele esperava por isso. O poder de Ares estava causando a minha raiva. Ele adoraria se eu o atacasse. Eu não queria lhe dar esse gostinho. - Não estamos interessados - falei. - Já temos uma missão.
Os olhos ardentes de Ares me fizeram ver coisas que eu não queria - sangue, fumaça e corpos no campo de batalha. - Eu sei de tudo sobre sua missão, seu imprestável. Quando aquele item foi roubado, Zeus enviou seus melhores para procurá-lo: Apolo, Atena, Ártemis e, naturalmente, eu. Se eu não consegui farejar uma arma tão poderosa... - Ele lambeu o beiço, como se a própria idéia do raio-mestre o tivesse deixado com fome. - Bem... se eu não consegui encontrá-lo, você não tem nenhuma chance. Entretanto, estou tentando lhe dar o beneficio da dúvida. Seu pai e eu nos conhecemos há muito tempo. Afinal, fui eu quem lhe contou minhas suspeitas sobre o velho Bafo de Cadáver.
- Você disse a ele que Hades roubou o raio?
- Claro. Acirrar os ânimos para uma guerra. O truque mais antigo de todos. Eu o reconheci imediatamente. De certo modo, você tem de agradecer a mim por sua missãozinha.
- Obrigado - resmunguei.
- Ei, sou um cara generoso. Faça meu servicinho e eu o ajudarei em sua viagem. Vou arranjar uma carona para oeste para você e seus amigos.
- Estamos indo muito bem sozinhos.
- Sim, certo. Sem dinheiro. Sem rodas. Sem nenhuma pista do que vão enfrentar. Ajude-me, e talvez eu lhe conte algo sobre que precisa saber. Algo sobre a sua mãe.
- Minha mãe?
Ele sorriu.
- Isso despertou sua atenção. O parque aquático fica um quilômetro e meio a oeste, na Delancy. Não há como errar. Procurem o Túnel do Amor.
- O que interrompeu seu namoro? - perguntei. - Alguma coisa o assustou?
Ares arreganhou os dentes, mas eu já tinha visto aquela cara ameaçadora antes, em Clarisse. Havia nela algo de incerto, quase um nervosismo.
- Você tem sorte de ter me encontrado, imprestável, e não um dos olimpianos. Eles não são tão indulgentes com a grosseria quanto eu. Encontrarei você aqui novamente quando tiver terminado. Não me desaponte.
Depois disso eu devo ter desmaiado, ou entrado em um transe, pois quando voltei a abrir os olhos Ares havia desaparecido. Podia ter pensado que toda a conversa fora um sonho, mas a expressão de Annabeth e Grover me dizia outra coisa.
- Nada bom - disse Grover. - Ares o procurou, Percy. Isso não é nada bom.
Olhei pela janela. A motocicleta havia desaparecido.
Será que Ares realmente sabia algo sobre minha mãe, ou estava apenas jogando comigo? Agora que ele se fora, toda a minha raiva passara. Percebi que Ares devia adorar bagunçar as emoções das pessoas. Era esse o seu poder - exacerbar tanto as paixões que elas atrapalhavam nossa capacidade de pensar.
- Deve ser algum tipo de truque - falei. - Esqueçam Ares. Vamos embora e pronto.
- Não podemos - disse Annabeth. - Olhe, detesto Ares tanto quanto qualquer um, mas não é possível ignorar os deuses a não ser que se deseje um azar tremendo. Ele não destava brincando sobre transformar você em um roedor.
Baixei os olhos para meu cheesburguer, que de repente não parecia mais tão apetitoso.
- Por que ele precisa de nós?
- Talvez seja um problema que requeira inteligência - disse Annabeth. - Ares tem força. É tudo o que tem. Mesmo às vezes tem de se curvar à sabedoria. - Mas esse parque aquático... ele agiu quase como se estivesse apavorado. O que faria um deus da guerra fugir desse jeito? Annabeth e Grover se entreolharam nervosamente. Annabeth disse: - Acho que teremos de descobrir. *****
Quando encontramos o parque aquático, o sol estava se pondo atrás das montanhas. A julgar pela placa, ele outrora se chamara AQUALÂNDIA,mas agora algumas letras haviam sido arranca, então ela dizia AQU L D A. O portão principal estava fechado com cadeado e tinha no alto arame farpado. Dentro, enormes escorregadores, tubos e canos se retorciam por toda parte, secos, desembocando em piscinas vazias. Velhos ingressos e folhetos subiam do asfalto com o vento. Com a noite chegando, o lugar parecia triste e arrepiante. - Se Ares traz a namorada aqui para um encontro - falei, olhando para o arame farpado -, não ia gostar de ver com aparência dela. - Percy - advertiu Annabeth -, tenha mais respeito. - Por quê? Pensei que você detestasse Ares. - Ainda assim, ele é um deus. E a namorada dele é muito temperamental. - Não queremos ofendê-la - acrescentou Grover. - Quem é? Equidna? - Não, Afrodite - disse Grover, um pouco sonhador. - A deusa do amor. - Pensei que ela fosse casada com alguém - disse eu.- Hefesto.. - E daí? - perguntou ele. - Ah. - De repente, senti que era preciso mudar de assunto. Então, como fazemos para entrar? - Maia! - Os tenis de Grover criaram asas. Ele voou por cima da cerca, deu um mortal involuntario no ar, depois pousou cambaleando no lado oposto. Sacudiu o po dos seus jeans, como se tivesse planejado tudo aquilo. - Voces vem? Annabeth e eu tivemos de escalar a moda antiga, empurrando o arame farpado um para o outro enquanto nos arrastavamos por cima do topo. As sombras se alongaram enquanto caminhavamos pelo parque, conferindo as atracoes. Havia a Ilha dos Pequeninos, o Por cima da Cabeca e o Cara, Cade o Meu Calcao?
Nenhum monstro chegou para nos pegar. Nada fazia o menor barulho. Encontramos uma loja de lembrancinhas que fora deixada aberta. Ainda havia mercadorias enfileiradas nas prateleiras: globos de neve, lapis, cartoes-postais, e prateleiras de... - Roupas - disse Annabeth. - Roupas limpas. - E - completei. - Mas voce nao pode simplesmente... - Observe. Ela agarrou uma fileira inteira de artigos das prateleiras e desapareceu dentro do provador. Poucos minutos depois saiu vestindo short estampado de flores da Aqualandia, uma grande camiseta vermelha da Aqualandia e sapatilhas de surfe tematicas da Aqualandia. Pendurada no ombro, uma mochila da Aqualandia, obviamente recheada de outras coisinhas.
- Ora, que se dane. - Grover encolheu os ombros. Logo nos tres pareciamos anuncios ambulantes do parque tematico fantasma. Continuamos procurando pelo Tunel do Amor. Eu tinha a sensacao de que o parque inteiro estava prendendo a respiracao. - Entao Ares e Afrodite - falei, so para afastar os pensamentos da escuridao que aumentava - estao tendo um caso? - E uma fofoca velha, Percy - disse Annabeth. - fofoca de tres mil anos. - E o mando de Afrodite? - Bem, voce sabe - disse ela. - Hefesto. O ferreiro ficou aleijado quando bebe, atirado de cima do Monte Olimpo por Zeus. Entao nao e exatamente lindo. Habilidoso com as maos e tudo, mas Afrodite nao curte inteligencia e talento, entende? - Ela gosta de motoqueiros. - Ou isso. - Hefesto sabe? - Ah, com certeza - disse Annabeth. - Uma vez ele os pegou juntos. Quer dizer, pegou mesmo, em uma rede de ouro, e chamou todos os deuses para ver e rir da cara deles. Hefesto esta sempre tentando constrange-los. E por isso que eles se encontram em lugares escondidos, como... Ela se interrompeu, olhando em frente. - Como aquilo. Diante de nos havia uma piscina vazia que teria sido sensacional para andar de skate. Tinha pelo menos cinquenta metros de largura e forma de bacia. Em volta da beira, uma duzia de estatuas de Cupido montavam guarda de asas abertas e arcos prontos para disparar. Do outro lado abria-se um tunel, provavelmente para onde a agua escoava quando a piscina estava cheia. A placa acima dele dizia: EMOCIONANTE PASSEIO DE AMOR: ESTE NAO E O TUNEL DO AMOR DOS SEUS PAIS! Grover se arrastou ate a borda. - Gente, olhe.
Abandonado no fundo da piscina havia um barco de dois lugares rosa e branco, com coracoezinhos pintados por toda parte. No assento da esquerda, brilhando na luz palida, estava o escudo de Ares, um circulo polido de bronze. - Facil demais - disse eu. - Entao e so descer ate la e pega-lo? Annabeth correu os dedos pela base da estatua de Cupido mais proxima. - Ha uma letra grega entalhada aqui - disse ela. - Eta. Imagino... - Grover - falei -, sente cheiro de algum monstro? Ele farejou o vento. - Nada. - Nada do tipo no-Arco-voce-nao-sentiu-o-cheiro-de-Equidna ou realmente nada? Grover pareceu ofendido. - Disse a voce, aquilo foi num subterraneo. - Certo, desculpe. - Eu respirei fundo. - Vou descer ate la. - Vou com voce. - Grover nao pareceu muito entusiasmado, mas tive a impressao de que ele estava tentando compensar pelo que acontecera em St. Louis. - Nao - disse a ele. - Quero que fique no alto com os tenis voadores. Voce e nosso as da aviacao, esta lembrado? Vou contar com voce para dar apoio, caso alguma coisa de errado. Grover estufou um pouco o peito. - Claro. Mas o que poderia dar errado? - Nao sei. So urna sensacao. Annabeth, venha comigo... - Esta brincando? - Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de cair da Lua. Suas bochechas estavam num tom vermelho vivo. - Qual o problema agora? - perguntei. - Eu... ir com voce para um... um "Emocionante Passeio de Amor"? Que coisa mais embaracosa! E se alguem me vir? - Quem e que vai ver? - Mas agora a minha cara tambem estava queimando. So mesmo uma menina para complicar as coisas. - Otimo - disse a ela. - Vou fazer isso sozinho, quando comecei a descer pela lateral da piscina, ela me seguiu resmungando sobre como os meninos sempre complicam as coisas. Chegamos ao barco. O escudo estava apoiado em um banco e ao lado havia um lenco feminino de seda. Tentei imaginai Afrodite ali, um casal de deuses se encontrando em um brinquedo de parque de diversoes sucateado. Por que? Entao notei algo nao tinha visto de cima: espelhos por toda a volta da borda da piscina, voltados para aquele ponto. Podiamos nos ver, nao importa em que direcao olhassemos. Tinha de ser isso. Enquanto Ares e Afrodite estavam se agarrando, podiam ver suas pessoas favoritas: eles mesmos. Peguei o lenco. Tinha um brilho rosado, e o perfume indescritivel - rosas, ou louro. Alguma coisa boa. Sorri, um sonhador, e estava quase passando o lenco no rosto quando Annabeth o arrancou da minha mao e enfiou em seu bolso.
- Ah, nao, nao faca isso. Fique longe dessa magia de amor. - O que? - Apenas pegue o escudo, Cabeca de Alga, e vamos dar o fora daqui. No momento em que toquei o escudo, vi que estavamos encrencados. Minha mao arrebentou algo que o conectava ao para-brisa. Uma teia de aranha, pensei, mas entao olhei para um fio invisivel na minha palma e vi que era algum tipo de filamento metalico, tao fino que era quase invisivel. Uma armadilha. - Espere - disse Annabeth. - Tarde demais. - Ha uma outra letra grega na lateral do barco, um outro eta. Trata-se de uma armadilha. Um ruido irrompeu a nossa volta, um milhao de engrenagensrangendo, como se a piscina inteira estivesse se transformando em uma maquina gigante. Grover gritou: - Gente! La em cima na borda, as estatuas de Cupido armavam os arcos; Antes que eu pudesse sugerir que nos abaixassemos, dispararam, mas nao contra nos. Dispararam uma contra a outra, atravessando a piscina. Cabos de seda foram levados pelas flechas, fazendo um arco por cima da piscina e fincando-se no chao para formar um imenso asterisco dourado. Entao fios metalicos menores comecaram a se tecer magicamente por entre os principais, formando uma rede. - Temos de dar o fora - disse eu. - Ah, e mesmo? - disse Annabeth. Agarrei o escudo e corremos, mas subir pela inclinacao da piscina nao era tao facil quanto descer. - Venham! - gritou Grover. Ele estava tentando manter uma secao da rede aberta para nos, mas onde quer que a tocasse, os fios dourados comecavam a envolver suas maos.
A cabeca dos Cupidos se abriu de repente. De la, sairam cameras de video. Luzes se ergueram por toda a volta da piscina, cegando-nos com a claridade, e um alto-falante soou: - Ao vivo para o Olimpo em um minuto... Cinquenta e nove segundos, cinquenta e oito... - Hefesto! - gritou Annabeth. - Como eu sou estupida! Eta e \H.. Ele fez essa armadilha para pegar a mulher dele com Ares. Agora vamos ser transmitidos ao vivo para o Olimpo e parecer completos idiotas! Estavamos quase conseguindo chegar a borda quando a fileira de espelhos se abriu como escotilhas e milhares de... coisinhas metalicas jorraram para fora. Annabeth gritou. Era um exercito de bichos rastejantes de corda: corpo de engrenagens de bronze, pernas compridas e finas, bocas em pequenas pincas, todos correndo em nossa direcao em uma onda de estalando e zumbindo.
- Aranhas! - disse Annabeth. - Ar... ar... aaaaaaaah! Eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela caiu para tras , aterrorizada e quase se rendeu as aranhas-robos antes que eu a puxasse para cima e a arrastasse de volta em direcao ao barco. Aquelas coisas vinham de todos os lados, milhoes delas, inundando o centro da piscina, cercando-nos completamente. Disse a mim mesmo que nao estavam programadas para matar, apenas para nos encurralar, nos morder e nos fazer parecer idiotas. Mas, por outro lado, era uma armadilha para deuses. E nao eramos deuses. Annabeth e eu subimos para dentro do barco. Comecei a chutar as aranhas para longe quando se acumulavam a bordo. Gritei para Annabeth me ajudar, mas ela estava paralisada demais para fazer qualquer coisa alem de gritar. - Trinta, vinte e nove - anunciou o alto-falante. As aranhas comecaram a cuspir fios de metal, tentando nos amarrar. De inicio os fios eram faceis de romper, mas havia muitos deles, e as aranhas simplesmente continuavam a chegar. Tirei uma da perna de Annabeth com um chute, e suas pincas arrancaram um pedaco da minha nova sapatilha de surfista. Grover pairava acima da piscina com seus tenis voadores, tentando soltar a rede, mas ela nao cedia. Pense, disse a mim mesmo, pense. A entrada para o Tunel do Amor ficava embaixo da rede. Poliamos usa-la como saida, mas estava bloqueada por um milhao de aranhas-robos. - Quinze, catorze - anunciou o alto-falante. Agua, pensei. De onde vem a agua para o passeio? Entao vi: enormes canos atras dos espelhos, de onde tinham vindo as aranhas. E acima da rede, perto de um dos Cupidos, uma cabine com janelas de vidro que devia ser a estacao de controle. - Grover! - gritei. - Entre naquela cabine! Encontre o botao de ligar! - Mas... - Faca isso! - Era uma esperanca louca, mas era a nossa unica chance. As aranhas ja estavam por toda a proa do barco, Annabeth gritava sem parar. Eu tinha de nos tirar dali. Grover estava agora na cabine de controle, malhando os botoes. - Cinco, quatro... Ele olhou para mim desamparado, erguendo as maos. Estava sinalizando que ja tinha apertado todos os botoes, mas nada acontecia. Fechei os olhos e pensei em ondas, agua correndo, o no Mississipi. Senti um aperto familiar na garganta. Tentei imaginar que estava arrastando o oceano ate Denver. - Dois, um, zerol A agua explodiu para fora dos canos. Entrou rugindo na piscina, varrendo as aranhas para longe. Puxei Annabeth para ao lado do meu e prendi seu cinto de seguranca bem quando a onda gigante atingiu o barco, de cima, expulsando as aranhas e nos encharcando completamente, mas sem virar o barco. Ele girou, erguido pela inundacao, e circulou no redemoinho. A agua estava cheia de aranhas em curto-circuito, algumas colidindo contra a parede de concreto da piscina com tamanha forca que explodiam. As luzes brilharam sobre nós. As câmeras dos Cupidos estavam transmitindo ao vivo para o Olimpo. Mas eu só podia me concentrar em controlar o barco,. Desejei que ele seguisse a corrente, que ficasse afastado da parede. Talvez fosse minha imaginação, mas o barco pareceu reagir. Pelo menos não se quebrou em um milhão de pedaços. Circulamos uma última vez, e o nível da água já era quase suficiente para nos retalhar contra a rede de metal. Então o nariz do barco se virou para o túnel e disparamos como um foguete para dentro das trevas. Annabeth e eu nos seguramos com força, os dois gritando quanto o barco se atirava em curvas e rodeava cantos e dava mergulhos de quarenta e cinco graus, passando por figuras de Romeu e Julieta e montes de outras bugigangas de Dia dos Namorados. Então estávamos fora do túnel, o ar da noite assobiando em nossos cabelos enquanto o barco seguia em alta velocidade para a saída. Se o brinquedo estivesse em perfeito funcionamento, teríamos navegado por uma rampa entre os Portões Dourados do Amor e caído em segurança na piscina de saída. Mas havia um problema. Os Portões do Amor estavam fechados com correntes. Dois barcos que haviam sido arrastados para fora do túnel antes de nós estavam empilhados contra a barricada - um submerso e o outro partido ao meio. - Solte seu cinto de segurança - gritei para Annabeth. - Está maluco? - A não ser que queira morrer esmagada. - Prendi o escudo de Ares no braço. - Vamos ter de pular. - Minha ideia era simples e insana. Quando o barco colidisse, íamos usar a força do impacto como um trampolim para pular por cima do portão. Ouvi falar de pessoas que sobreviveram a desastres de automóvel desse jeito, lançadas a dez ou vinte metros de distância do acidente. Com sorte, cairíamos na piscina. Annabeth pareceu entender. Ela apertou minha mão quando os portões se aproximaram. - Quando eu der o sinal - falei. - Não! Quando eu der o sinal - corrigiu ela. - O quê? - Física básica! - gritou ela. - A força multiplicada pelo ângulo da trajetória... - Está bem! - gritei. - Quando você der o sinal! Ela hesitou... hesitou... e então gritou: - Agora! Crack! Annabeth estava certa. Se tivéssemos pulado quando eu achava devíamos, teríamos nos arrebentado contra os portões. Ela conseguiu o máximo de impulso. Por azar, foi um pouco maior do que precisávamos. Nosso barco foi atirado na pilha e fomos lançados para o ar, por cima do portão, por cima da piscina, e na direção do asfalto duro. Alguma coisa me segurou por trás.
Annabeth gritou:
- Aaai! Grover! Em pleno ar, ele tinha me agarrado pela camisa, e agarrado Annabeth pelo braço, e tentava impedir que nos arrebentássemos no chão, mas Annabeth e eu ainda estávamos com toda a energia do impulso. - Vocês são pesados demais! - disse Grover. - Estamos caindo! Descemos em espiral, com Grover fazendo o que podia para reduzir a velocidade da queda. Batemos contra um painel de fotografia. A cabeça de Grover entrou bem no buraco onde os turistas enfiavam a cara, fingindo ser Nu-Nu, a Baleia Camarada. Annabeth e eu desmoronam no chão, machucados, porém vivos. O escudo de Ares ainda preso ao meu braço. Depois que recuperamos o fôlego, Annabeth e eu tiramos Grover do painel e o agradecemos por salvar nossa vida. Olhei para o Emocionante Passeio de Amor atrás de nós. A água estava baixando. Nosso barco em pedaços, esmagado contra os portões. A cem metros, na piscina de entrada do túnel, os Cupidos ainda filmavam. As estátuas tinham se virado de modo que as câmeras estavam apontadas para nós, os holofotes em nossos rostos. - Acabou o show! - gritei. - Obrigado! Boa noite! Os Cupidos voltaram às posições originais. As luzes se apagaram. O parque ficou novamente em silêncio e no escuros, a não ser pelo brilho fraco da água na piscina da saída do Emocionante Passeio de Amor. Imaginei se o Olimpo estaria em um inervalo comercial, e se nossos índices de audiência haviam sido bons. Eu detestava ser provocado. Detestava ser enganado. E tinha vasta experiência de lidar com valentões que gostavam de fazer isso comigo. Levantei o escudo em meu braço e me virei para os meus amigos. - Precisamos ter uma conversinha com Ares.
DEZESSEIS – A ida de uma zebra para Las Vegas.
O deus da guerra nos esperava no estacionamento do restaurante.
- Bem, bem - disse ele. - Você conseguiu não ser morto.
- Você sabia que era uma armadilha - retruquei.
Ares me deu um sorriso malvado.
- Aposto que aquele ferreiro aleijado ficou surpreso quando pegou na rede um par de crianças estúpidas. Você ficou bem na tevê.
Empurrei o escudo para ele.
- Você é um imbecil.
Annabeth e Grover pararam de respirar.
Ares agarrou o escudo e o girou no ar como massa de pizza. escudo mudou de forma, transformando-se em um colete à prova de balas. Ele o pendurou nas costas.
- Estão vendo aquele caminhão logo ali? - Apontou um caminhão de dezoito rodas estacionado do outro lado da rua. - É a carona de vocês. Vai levá-los direto a Los Angeles, com uma parada em Vegas.
O caminhão tinha uma placa na parte de trás, que eu só pude ler porque estava pintada ao contrário, em branco sobre preto, uma boa combinação para a dislexia: CARIDADE INTERNACIONAL: TRANSPORTE HUMANITÁRIO DE ZOOLÓGICO. CUIDADO: ANIMAIS SELVAGENS VIVOS
Eu disse:
- Fala sério!
Ares estalou os dedos. A porta traseira do caminhão se destrancou.
- Carona grátis para oeste, imprestável. Pare de reclamar. E aqui está uma coisinha por ter feito o serviço.
Ele suspendeu uma mochila de náilon azul do seu guidom e a jogou para mim.
Dentro havia roupas limpas para todos nós, vinte dólares em dinheiro, uma bolsa cheia de dracmas de ouro e uma embalagem de biscoito Oreo recheado.
Eu disse:
- Não quero a porcaria do seu...
- Obrigado, Senhor Ares - interrompeu Grover, me fuzilando com seu melhor olhar de alerta vermelho. - Muito obrigado.
Rangi os dentes. Devia ser um insulto mortal recusar algo de um deus, mas eu não queria nada que Ares tivesse tocado. Pendurei a mochila no ombro relutando. Sabia que minha raiva era causada pela presença do deus da guerra, mas ainda sentia uma vontadezinha de lhe dar um murro no nariz. Ele me lembrou de todos os valentões que já havia enfrentado: Nancy Bobofit, Clarisse, Gabe Cheiroso, professores debochados - todos os imbecis que me chamaram de estúpido na escola ou riram de mim quando fui expulso.
Olhei para o restaurante atrás de mim, que tinha agora apenas um ou dois clientes. A garçonete que nos servira o jantar olhava, nervosa, pela janela, como se tivesse medo de que Ares nos machucasse.
Ela arrastou o cozinheiro de dentro da cozinha para ver. Disse algo a ele. Ele assentiu, ergueu uma pequena câmera descartável e tirou uma foto de nós.
Boa, pensei. Amanhã vamos estar de novo nos jornais.
Imaginei a manchete: CRIMINOSO DE DOZE ANOS ESPANCA MOTOCICLISTA INDEFESO.
- Você me deve mais uma coisa - disse a Ares, tentando manter o volume de minha voz. - Você me prometeu informações sobre minha mãe.
- Tem certeza de que é capaz de suportar a notícia? - Ele deu a partida no pedal da moto. - Ela não está morta.
O chão pareceu girar embaixo de mim.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que ela foi levada pelo Minotauro antes de morrer. Foi transformada em uma chuva de ouro, certo? Isso é metamorfose. Não morte. Ela está sendo mantida presa.
- Presa. Por quê?
- Você precisa estudar guerra, coisinha imprestável. Reféns. Você prende alguém para controlar outro alguém.
- Ninguém está me controlando.
Ele riu.
- Ah, não? A gente se vê por aí, garoto.
Cerrei os punhos.
- Você é bem convencido, Senhor Ares, para um cara que foge de estátuas de Cupido.
Atrás dos óculos escuros, o fogo brilhou. Senti um vento quente nos cabelos.
- Nós nos encontraremos novamente, Percy Jackson. Na próxima vez em que estiver numa briga, cuide de sua retaguarda.
Ele pôs a Harley em movimento e saiu roncando pela rua Delancy.
Annabeth disse:
- Isso não foi muito inteligente, Percy.
- Não estou nem aí.
- Você não quer um deus como inimigo. Especialmente esse deus.
- Ei, gente - disse Grover. - Detesto interromper, mas...
Ele apontou na direção do restaurante. No caixa, os dois últimos clientes estavam pagando suas contas, dois homens de macacões pretos idênticos, com uma logomarca branca nas costas que combinava com a do caminhão da CARIDADE INTERNACIONAL.
- Se vamos pegar o expresso do zoológico - disse Grover -, precisamos nos apressar.
Eu não tinha gostado daquilo, mas não havia opção melhor. Além disso, já tinha visto o suficiente de Denver.
Atravessamos a rua correndo e subimos na traseira do veículo enorme,, fechando as portas atrás de nós.
*****
A primeira coisa que percebi foi o cheiro. Era como a maior caixa de areia para cocô de gato do mundo.
O interior da carreta estava escuro até eu tirar a tampa de Anaklusmos. A lâmina lançou uma leve luz de bronze sobre uma cena muito triste. Em uma fileira de jaulas metálicas imundas havia três dos mais patéticos animais de zoológico que eu já vira: uma zebra, um leão albino e um tipo estranho de antílope, cujo o nome eu não sabia.
Alguém jogara para o leão um saco de nabos que ele obviamente não queria comer. A zebra e o antílope tinham ganhado uma bandeja de isopor de carne de hambúrguer cada um. A crina da zebra estava toda emaranhada em goma de mascar, como se alguém ficasse cuspindo nela nas horas vagas. O antílope tinha um estúpido balão de aniversário amarrado em um dos seus chifres que dizia PASSEI DA IDADE!
Tudo indicava que ninguém quisera chegar perto o bastante do leão para mexer com ele, mas o pobre andava de um lado para outro em cima de cobertores sujos, em um espaço que era mais do que muito pequeno para ele, arfando com o ar abafado da carreta. Moscas zumbiam em volta de seus olhos cor-de-rosa, e as costelas apareciam no pêlo branco.
- Isso é caridade? - gritou Grover. - Transporte humanitário de zoológico?
Ele provavelmente teria saído de volta para bater nos caminhoneiros com suas flautas de bambu, e eu o teria ajudado, mas bem naquele momento o motor roncou, a carreta começou a chacoalhar e fomos forçados a nos sentar ou cair.
Nós nos amontoamos no canto em cima de alguns sacos de ração embolorados, tentando ignorar o cheiro, o calor e as moscas. Grover falou com os animais em uma série de balidos de bode, mas eles apenas olharam tristemente para ele. Annabeth era a favor de arrombar as jaulas e soltá-los ali mesmo, mas argumentei que isso não ia adiantar muito até o caminhão parar de se mover. Além disso, tinha a sensação de que, para o leão, poderíamos paracer bem mais apetitosos do que aqueles nabos.
Achei um jarro de água e reabasteci as tigelas deles, depois usei Anaklusmos para puxar os alimentos trocados para fora das jaulas. Dei a carne ao leão e os nabos para a zebra e o antílope.
Grover acalmou o antílope enquanto Annabeth usava sua faca para tirar o balão preso ao chifre. Pensou também em cortar a goma de mascar da crina da zebra, mas concluímos que seria muito arriscado com o caminhão aos solavancos. Pedimos a Grover para prometer aos animais que os ajudaríamos mais pela manhã, e então nos acomodamos para a noite.
Grover se enrodilhou sobre um saco de nabos; Annabeth abriu nosso pacote de Oreos e mordiscou um deles sem muito entusiasmo, tentei ficar animado com a idéia de que estávamos a meio caminho de Los Angeles. Próximo de nosso destino. Ainda era 14 junho. O solstício só aconteceria no dia 21. Tínhamos tempo de sobra.
Por outro lado, não tinha idáia do que nos esperava. Os deuses estavam brincando comigo. Pelo menos Hefesto teve a decência de ser honesto quanto a isso - instalou câmeras e me anunciou como entretenimento. Mas até quando não havia câmeras filmando eu tinha a sensação de que a minha missão estava sendo observada. Eu era uma fonte de diversão para os deuses.
- Ei - disse Annabeth. - Sinto muito por ter me apavorado lá no parque aquático, Percy.
- Tudo bem.
- É só que... - Ela estremeceu. - Aranhas.
- Por causa da história de Aracne - adivinhei. - Ela foi transformada em aranha por desafiar sua mãe para uma competição de tecelagem, certo?
Annabeth assentiu.
- Os filhos de Aracne têm se vingado nos filhos de Atena desde então. Se houver uma aranha a um quilômetro de distância de mim, ela me encontrará. Eu odeio aquelas coisinhas rastejantes. De qualquer jeito, lhe devo uma.
- Somos uma equipe, está lembrada? Além disso, Grover fez aquele vôo fantástico.
Pensei que estivesse dormindo, mas ele murmurou do seu canto:
- Fui o máximo, não fui?
Annabeth e eu demos risada.
Ela separou as duas partes do biscoito recheado e me deu uma.
- Na mensagem de Íris...Luke realmente não disse nada?
Mastiguei meu biscoito e pensei em como responder. A conversa via arco-íris me incomodara a noite toda.
- Luke disse que você e ele se conhecem há muito. Também disse que Grover não iria fracassar dessa vez. Ninguém seria transformado em pinheiro.
Na pálida luz de bronze da lâmina da espada, era difícil ler a expressão deles.
Grover soltou um balido lamentoso.
- Eu devia ter contado a verdade a você desde o começo. - Sua voz tremia. - Pensei que, se soubesse o fracasso que eu era, não iria querer que eu viesse junto.
- Você era o sátiro que tentou salvar Thalia, a filha de Zeus.
Ele assentiu, com tristeza.
- E os outros dois meios-sangues que Thalia protegeu, os que chegaram ao acampamento em segurança... - Olhei para Annabeth. - Eram você e Luke, não é?
Ela pôs seu biscoito de lado, intocado.
- Como você disse, Percy, uma meio-sangue de sete anos de idade não teria chegado muito longe sozinha. Atena me guiou até a ajuda. Thalia tinha doze anos. Luke, catorze. Os dois haviam fugido de casa, como eu. Ficaram contentes em me levar com eles. Eram... fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino. Viajamos da Virgínia para o norte sem nenhum plano de verdade, nos defendemos dos monstros por cerca de duas semanas antes de Grover nos encontrar.
- Eu devia escoltar Thalia até o acampamento - disse ele, fungando. - Somente Thalia. Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke e Annabeth. Achei... achei que conseguiria levar todos os três até um lugar seguro. Foi minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um pouco mais rápido...
- Pare com isso - disse Annabeth. - Ninguém culpa você. Thalia também não o culpou.
- Ela se sacrificou para nos salvar - disse ele, desconsolado. Sou culpado pela morte dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.
- Porque você não deixou outros dois meios-sangues para trás? - disse eu. - Isso não é justo.
- Percy tem razão - disse Annabeth. - Eu não estaria aqui hoje se não fosse por você, Grover. Nem Luke. Não estamos nem aí para o que diz o conselho.
Grover continuou fungando no escuro.
- É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais poderosos do século, Thalia e Percy.
- Você não é fraco - insistiu Annabeth. - Tem mais coragem do que qualquer sátiro que já conheci. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy está muito contente por você estar aqui agora.
Ela me chutou na canela.
- Sim - falei, o que teria feito mesmo sem o chute. - Não foi por sina que você encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é um buscador natural. É isso que é você quem vai achar Pan.
Ouvi um suspiro profundo e satisfeito. Esperei que Grover dissesse algo, mas sua respiração só ficou mais pesada. Quando o som se transformou em ronco, percebi que ele tinha caído no sono.
- Como ele faz isso? - maravilhei-me.
- Não sei - disse Annabeth. - Mas foi realmente legal o que você disse a ele.
- Eu fui sincero.
Viajamos em silêncio por alguns quilômetros, sacudindo acima dos sacos de ração. A zebra mascou um nabo. O leão lambeu o que restara da carne de hambúrguer dos lábios e olhou para mim esperançoso.
Annabeth esfregou seu colar como se estivesse bolando grandes estratégias.
- Essa conta do pinheiro - disse eu. - É do seu primeiro ano?
Ela olhou. Não havia percebido o que estava fazendo.
- É - falou. - Todo mês de agosto os conselheiro escolhem o evento mais importante do verão, e o pintam nas contas daquele ano. Eu fiquei com o pinheiro de Thalia, uma trirreme grega em chamas, um centauro vestido para um baile... bem, aquele foi um verão estranho...
- E o anel de formatura é do seu pai?
- Isso não é da sua... - Ela se interrompeu. - Sim. Sim, é.
- Você não precisa me contar.
- Não... tudo bem. - Ela respirou fundo, vacilante. - Meu pai o mandou para mim dentro de uma carta, há dois verões. O anel era, bem, sua maior recordação de Atena. Ele não teria conseguido terminar o doutorado em Harvard sem ela... É uma longa história. De qualquer modo, ele disse que queria que eu ficasse com o anel. Desculpou-se por ser um idiota, disse que me amava e sentia saudades de mim. Queria que eu fosse para casa.
- Isso não parece tão ruim assim. - É, mas... o problema é que eu acreditei nele. Tentei ir para casa naquele ano escolar, mas minha madrasta era a mesma de sempre. Não queria ver seus filhos em perigo por viver com uma aberração. Monstrons atacavam. A gente brigava. Monstros atacavam. A gente brigava. Não agüentei nem mesmo até as férias inverno. Chamei Quíron e voltei direto para o Acampamento Meio-Sangue.
- Você acha que vai tentar viver com seu pai de novo?
Ela não me olhou nos olhos.
- Por favor. Não estou a fim de me autoflagelar.
- Você não devia desistir - falei. - Devia lhe escrever uma carta, ou coisa assim.
- Obrigada pelo conselho - disse ela, friamente -, mas meu pai escolheu com quem quer viver. Passamos mais alguns quilômetros em silêncio.
- Então, se os deuses brigarem - falei -, as coisas vão ficar como na Guerra de Tróia? Será Atena contra Poseidon?
Ela encostou a cabeça na mochila que Ares nos dera e fechou olhos.
- Não sei o que a minha mãe vai fazer. Só sei que vou lutar junto com você.
- Por quê?
- Porque você é meu amigo, cabeça de alga. Mais alguma pergunta boba?
Não consegui pensar em uma resposta para aquilo. Felizemente, não precisei. Annabeth estava dormindo.
Tive dificuldade em seguir o exemplo dela, com Grover roncando e um leão albino me olhando com ar esfomeado, mas por fim fechei os olhos.
*****
Meu pesadelo começou como um milhão de vezes antes: eu sendo forçado a fazer um teste usando uma camisa-de-força. Todas as outras crianças estavam saindo para o recreio, e o professor dizendo: Vamos, Percy. Você não é burro, não é? Pegue seu lápis.
Então o sonho tomou um rumo diferente.
Olhei para a carteira ao lado e vi uma menina sentada, que também usava uma camisa-de-força. Tinha a minha idade, com um cabelo preto rebelde, estilo punk, delineador escuro em volta dos olhos verdes tempestuosos, e sardas no nariz. De algum modo, eu sabia quem era. Thalia, filha de Zeus.
Ela se debateu na camisa-de-força, olhou para mim com raiva e frustração, e disparou: E então, cabeça de alga? Um de nós precisa sair daqui.
Ela tem razão, pensei no sonho. Vou voltar para aquela caverna. Vou dizer o que penso na cara de Hades.
A camisa-de-força se dissolveu e fiquei livre. Caí através do piso da sala de aula. A voz do professor mudou até ficar fria e maligna, ecoando das profundezas de um grande abismo.
Percy Jackson, disse. Sim, a troca foi bem, estou vendo.
Eu estava novamente na caverna escura, com os espíritos dos mortos flutuando à minha volta. De dentro do poço, sem ser vista, a coisa monstruosa falava, mas não se dirigia a mim. O poder entorpecedor de sua voz parecia dirigir-se a outro lugar.
E ele não suspeita de nada?, perguntou.
Outra voz, uma que quase reconheci, respondeu junto ao meu ombro: Nada, meu senhor. Ele é tão ignorante quanto o resto.
Ohei, mas não havia ninguém lá. Quem falara estava invisível.
Mentira em cima de mentira, refletiu em voz alta a coisa no poço. Excelente.
Na verdade, meu senhor, disse a voz ao meu lado, o nome O Trapaceiro lhe foi muito bem aplicado, mas aquilo foi de fato necessário? Eu poderia ter trazido o que roubei diretamente para o senhor...
Você?, escarneceu o monstro. Você já mostrou seus limites. Teria falhado completamente sem minha intervenção.
Mas, meu senhor...
Por favor, pequeno servo. Nossos seis meses nos renderam muito. A ira de Zeus cresceu. Poseidon jogou sua cartada mais desesperada. Agora devemos usá-la contra ele. Logo você terá a recompensa que deseja, e sua vingança. E assim que ambos os itens forem entregues em minhas mãos... mas espere. Ele está aqui.
O quê?
O servo invisível de repente pareceu tenso.
Acaso o convocou, meu senhor?
Não.
Toda a força da atenção do monstro agora se despejava sobre mim, paralisando-me.
Maldito seja o sangue de seu pai - ele é inconstante demais, imprevisível demais. O menino trouxe a si mesmo para cá.
Impossível!, exclamou o servo.
Para alguém fraco como você, talvez, rosnou a voz. Depois sua força gélida se voltou de novo para mim. Então... você quer sonhar com sua missão, meio-sangue? Pois vou atendê-lo.
O cenário mudou.
Eu estava numa vasta sala com um trono, com paredes de mármore negro e piso de bronze. O horripilante trono vazio era feito de ossos humanos fundidos. Postada ao pé do degrau estava minha mãe, uma estátua de luz dourada tremeluzente, os braços estendidos.
Tentei avançar em sua direção, mas minhas pernas não se moviam. Estendi a mão para ela, apenas para perceber que minhas mãos haviam murchado até os ossos. Esqueletos sorridentes de armadura grega se juntavam ao meu redor, vestindo-me com mantos de seda, coroando-me com louros que fumegavam com veneno da Quimera, queimando-me o couro cabeludo.
A voz maligna começou a rir. Vivas ao herói conquistador!
*****
Acordei assustado.
Grover sacudia meu ombro.
- O caminhão parou - disse ele. - Achamos que eles vêm checar os animais.
- Escondam-se! - Annabeth falou baixinho.
Para ela foi fácil. Pôs na cabeça seu boné mágico e desapareceu. Grover e eu tivemos de mergulhar atrás dos sacos de ração e torcer para parecermos dois nabos.
As portas da carreta se abriram com um rangido. A luz e o calor do sol entraram.
- Cara! - disse um dos caminhoneiros, abanando a mão na frente do nariz feio. - Queria estar transportando eletrodomésticos. - Ele trepou para dentro e despejou um pouco d’água nas vasilhas dos animais.
- Com calor, garotão? - perguntou ao leão, e então esvaziou o resto do balde direto na cara do animal. O leão rugiu de indignação.
- Certo, certo, certo - disse o homem.
Ao meu lado, embaixo dos sacos de nabos, Grover se resetou. Para um herbívoro amante da paz, ele parecia absolutarnente sanguinário.
O caminhoneiro jogou um saco meio esmagado de McLanche Feliz para o antílope. E arreganhou um sorriso para a zebra:
- Tudo em cima, Listradona? Ao menos nos livraremos de você nesta parada. Gosta de shows de mágica? Vai adorar este. Vão serrar você no meio!
A zebra, com os olhos arregalados de medo, olhou diretamente para mim.
Não houve som nenhum, mas claro como o dia, eu a ouvi dizer: Liberte-me, senhor. Por favor.
Fiquei perplexo demais para reagir.
Houve um forte toque-toque-toque na lateral da carreta.
O caminhoneiro que estava dentro, conosco, gritou:
- O que você quer, Eddie?
Uma voz do lado de fora - deve ter sido a de Eddie - gritou volta:
- Maurice? O que você disse?
- Por que está batendo?
Toque-toque-toque.
De fora, Eddie gritou:
- Quem está batendo?O nosso cara, Maurice, revirou os olhos e voltou para fora, xingando Eddie por ser tão idiota.
Um segundo depois, Annabeth apareceu ao meu lado. Devia ser ela quem fez as batidas, para tirar Maurice da carreta. Ela isse:
- Esse negócio de transporte não deve ser legal.
- Mentira? - disse Grover. Ele fez uma pausa, como se estivesse escutando. - O leão diz que esses caras são contrabandistas de animais!
É verdade, disse a voz da zebra dentro da minha cabeça.
- Temos de libertá-los! - disse Grover. Ele e Annabeth olharam para mim, esperando meu comando.
Eu tinha ouvido a zebra falar, mas não o leão. Por quê? Talvez fosse mais uma deficiência de aprendizado... Será que eu só podia entender zebras? Então pensei: cavalos. O que Annabeth dissera sobre Poseidon criar cavalos? Uma zebra seria próxima o bastante de um cavalo? Será que era por isso que eu podia entendê-la?
A zebra disse: Abra minha jaula, senhor. Por favor. Ficarei bem, depois disso.
Do lado de fora, Eddie e Maurice ainda estavam gritando um com o outro, mas eu sabia que eles entrariam a qualquer minuto para atormentar os animais. Agarrei Contracorrente e cortei com um golpe a tranca da gaiola da zebra.
A zebra disparou para fora. Virou-se para mim e inclinou a cabeça. Obrigada, senhor.
Grover ergueu as mãos e disse algo a ela em sua fala de bode, como uma bênção.
No momento em que Maurice enfiava a cabeça para verificar que barulho era aquele lá dentro, a zebra saltou por cima dele para a rua. Houve berros, gritos e carros buzinando. Corremos para as portas da carreta a tempo de ver a zebra galopando por uma avenida ladeada por hotéis, cassinos e letreiros de néon. Tínhamos acabado de soltar uma zebra em Las Vegas.
Maurice e Eddie correram atrás dela, com alguns policiais correndo atrás deles e gritando:
- Ei! Vocês precisam de permissão para isso!
- Agora seria um bom momento para dar o fora - disse Annabeth.
- Primeiro os outros animais - disse Grover.
Cortei as trancas com minha espada. Grover ergueu as mãos e falou a mesma bênção de bode que usara para a zebra.
- Boa sorte - disse aos animais. O antílope e o leão dispararam para fora das jaulas e foram juntos para as ruas.
Alguns turistas gritaram. A maioria recuou e tirou fotos, provavelmente pensando que se tratasse de algum tipo de show de um dos cassinos.
- Os animais vão ficar bem? - perguntei a Grover. - Quer dizer, o deserto e tudo...
- Não se preocupe - disse ele. - Eu lhes dei uma bênção de sátiro.
- O que quer dizer isso?
- Quer dizer que chegarão à floresta em segurança - disse ele. - Encontrarão água, comida, sombra, e o que mais precisarem até acharem um lugar seguro para viver.
- Por que você não pode fazer uma oração dessas para nós? - perguntei.
- Só funciona com animais.
- Então só iria afetar Percy - ponderou Annabeth.
- Ei! - protestei.
- Brincadeirinha - disse ela. - Venha. Vamos sair desse caminhão imundo.
Cambaleamos para fora, para a tarde do deserto. Fazia quarenta e três graus, fácil, e devíamos estar parecendo vagabundos fritos, mas todos estavam interessados demais nos animais selvagens para prestar muita atenção em nós.
Passamos pelo Monte Carlo e pela MGM. Passamos por pirâmides, por um navio pirata e pela Estátua da Liberdade, que era uma réplica bem pequena, mas ainda assim me deixou com saudades de casa.
Não sabia muito bem o que estávamos procurando. Talvez apenas um lugar para fugir do calor por alguns minutos, achar um sanduíche e um copo de limonada, bolar um novo plano para chegar ao oeste.
Provavelmente, entramos numa rua errada, pois chegamos em um beco sem saída, em frente ao Hotel e Cassino Lotus. A entrada era uma enorme flor de néon, as pétalas acendendo e piscando. Ninguém entrava nem saía, mas as reluzentes portas cromadas estavam abertas, espalhando ar condicionado com cheiro de flores - flor-de-lótus, quem sabe. Eu nunca cheirara uma, por isso não tinha certeza.
O porteiro sorriu para nós.
- Ei, crianças. Vocês parecem cansados. Querem entrar e sentar?
Tinha aprendido a ser desconfiado, mais ou menos na última semana. Imaginava que qualquer um poderia ser um monstro ou um deus. Não dava para saber. Mas aquele cara era normal. Era só olhar. Além disso, fiquei tão aliviado de ouvir alguém que parecia simpático que assenti e disse que adoraríamos entrar. Dentro, demos uma olhada em volta e Grover disse:
- Uau.
O saguão inteiro era uma sala de jogos gigante. E não estou falando de joguinhos vagabundos como o velho Pac-Man ou os caça-níqueis. Havia um toboágua serpenteando em volta do elevador de vidro, que subia pelo menos quarenta andares. Havia uma parede de escalada ao lado de um edifício, e uma ponte interna para bungee-jumping. Trajes de realidade virtual com pistolas laseres que funcionavam. E centenas de videogames, cada qual do tamanho de uma tevê widesmen. Basicamente, o que você disser, o lugar tinha. Havia algumas outras crianças jogando, mas não muitas. Não havia espera para nenhum dos jogos. Garçonetes e lanchonetes estavam por toda parte, servindo todo tipo de comida que se possa imaginar.
- Ei! - disse um mensageiro. Pêlos menos achei que fosse um mensageiro. Usava uma camisa havaiana branca e amarela com desenhos de lótus, short e sandálias de dedo. - Bem-vindos ao Cassino Lótus. Aqui está a chave do seu quarto.
Eu gaguejei:
- Ahn, mas...
- Não, não - disse ele, rindo. - A conta já foi paga. Sem taxas extras, sem gorjetas. Vocês só precisam subir para o último andar, quarto 4001. Se precisarem alguma coisa, como mais espuma para a banheira quente ou alvos para tiro ao prato, ou o que for, é só ligar para a recepção. Aqui estão os seus cartões GranaLótus. Eles funcionam nos restaurantes e em todos os jogos e brinquedos.
Ele entregou a cada um de nós um cartão de crédito de plástico verde.
Eu sabia que devia haver algum engano. Obviamente ele pensara que éramos crianças milionárias. Mas peguei o cartão e disse:
- Quanto tem aqui?
Ele juntou as sobrancelhas.
- O que quer dizer?
- Quero dizer quanto temos de crédito?
Ele riu.
- Ah, é uma piada. Ei, legal. Aproveitem sua estada.
Subimos de elevador e conferimos nosso quarto. Era uma suíte com três dormitórios separados e um bar cheio de doces, refrigerantes e salgadinhos. Uma linha direta para o serviço de quarto. Toalhas fofas e camas d'água com travesseiros de penas. Uma televisão enorme com satélite e Internet banda larga. A varanda tinha sua própria banheira quente e, de fato, uma máquina de lançar pratos e uma espingarda - dava para lançar pombos de louça sobre a paisagem de Las Vegas e acertá-los com a espingarda. Não ntendi como aquilo podia ser permitido, mas achei muito legal.
A vista para a Vegas Boulevard e o deserto era maravilhosa, muito embora eu duvidasse que teríamos tempo para admirar a paisagem com um quarto como aquele.
- Ah, deuses - disse Annabeth. - Este lugar é...
- Maravilhoso - disse Grover. - Supermaravilhoso.
Havia roupas no armário, e cabiam em mim. Franzi a testa, achando um pouco estranho.
Joguei a mochila de Ares na lata de lixo. Não precisaria mais daquilo. Quando fôssemos embora, poderia comprar uma nova loja do hotel.
Tomei um banho, o que foi uma sensação ótima depois de uma semana de viagem suja. Troquei de roupa, comi um saco de salgadinhos, bebi três Cocas e não me sentia tão bem havia muito tempo. Bem no fundo da cabeça, um probleminha me incomodava. Eu tivera um sonho, ou coisa assim... Precisava falar com meus amigos. Mas certamente aquilo podia esperar.
Saí do quarto e vi que Annabeth e Grover também tinham tomado banho e trocado de roupa. Grover estava comendo batatinhas até se fartar, enquanto Annabeth sintonizava o National Geographic Channel.
- Todos esses canais - disse a ela -, e você liga no National Geographic. Está maluca?
- É interessante.
- Eu me sinto bem - disse Grover. - Adoro este lugar.
Sem que ele se desse conta, as asas apareceram nos seus tênis e o suspenderam a trinta centímetros do chão, depois o desceram de novo.
- Então, o que fazemos agora? - perguntou Annabeth. - Dormimos?
Grover e eu nos entreolhamos e sorrimos. Ambos erguemos os nossos cartões GranaLótus de plástico verde.
- Hora do recreio - falei.
Não conseguia me lembrar da última vez em que me divertira tanto. Eu vinha de uma família relativamente pobre. Para nós esbanjar era comer fora no Burger King e alugar um vídeo. Um hotel cinco estrelas em Vegas? Nem pensar.
Pulei de bungee-jump no saguão cinco ou seis vezes, andei no toboágua, fiz snowboard na rampa de neve artificial, joguei lasertag e atirador de elite do FBI em realidade virtual. Vi Grover algumas vezes, indo de jogo em jogo. Ele tinha gostado mesmo daquela coisa do caçador às avessas - em que os
cervos saem e atiram contra os caipiras. Vi Annabeth jogando trívia e outros jogos de cabeçudos. Havia um Sim enorme em 3D, no qual você podia construir sua própria cidade e realmente ver os edifícios holográfico subirem no tabuleiro. Não dei muita importância para esse, mas Annabeth adorou.
Não sei muito bem quando percebi que algo estava errado.
Provavelmente, foi quando reparei no cara que estava em pé ao meu lado no jogo dos atiradores de elite virtuais. Tinha cerca de treze anos, eu acho, mas suas roupas eram esquisitas. Achei que fosse filho de algum dublê do Elvis Presley. Usava jeans boca-de-sino e uma camiseta vermelha com enfeites pretos, e o cabelo era cacheado e cheio de gel, como o de uma garota de New Jersey em noite de reunião de ex-alunos.
Brincamos juntos no jogo de atiradores, e ele disse:
- Joinha, bicho. Estou aqui há duas semanas e os jogos estão cada vez melhores
Joinha, bicho?
Mais tarde, enquanto conversávamos, eu disse que alguma coisa era "irada" e ele me olhou meio surpreso, como se nunca tivesse ouvido a palavra ser usada daquele jeito antes.
Disse que seu nome era Darrin, mas assim que comecei a fazer perguntas ele se aborreceu e fez menção de voltar para a tela do computador.
Eu disse:
- Ei, Darrin?
- O quê?
- Em que ano estamos? Ele franziu a testa para mim.
- No jogo?
- Não. Na vida real. Ele precisou pensar.
- Mil novecentos e setenta e sete.
- Não - falei, começando a ficar um pouco assustado. - De verdade.
- Ei, bicho. Vibrações ruins. Estou no meio de um jogo.
Depois disso ele me ignorou totalmente.
Comecei a falar com as pessoas e descobri que não era fácil.
Elas estavam grudadas na tela da tevê ou no videogame ou no que fosse. Achei um cara que me disse que era 1985. Outro cara me disse que era 1993. Todos alegavam não estar ali há muito tempo, alguns dias, algumas semanas no máximo. Realmente não sabiam, nem se importavam com isso.
Então me ocorreu: havia quanto tempo eu estava ali? Pareciam apenas algumas horas, mas seriam mesmo?
Tentei lembrar por que estávamos ali. Íamos para Los Angeles. Deveríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior. Minha mãe... por um momento apavorante, tive dificuldade de lembrar o nome dela. Sally. Sally Jackson. Eu tinha de encontrá-la. precisava impedir Hades de desencadear a Terceira Guerra Mundial.
Achei Annabeth ainda construindo sua cidade.
- Vamos - disse a ela. - Precisamos sair daqui.
Nenhuma resposta.
- Annabeth?
Ela ergueu os olhos, aborrecida.
- O quê?
- Escute. O Mundo Inferior. A nossa missão!
- Ora, vamos, Percy. Só mais alguns minutos.
- Annabeth, há gente aqui desde 1977. Crianças que nunca cresceram. Quando você entra, fica para sempre.
- E dai? - perguntou ela. - Você pode imaginar lugar melhor?
Agarrei o pulso dela e a arranquei do jogo.
- Ei! - ela gritou e me bateu, mas ninguém sequer se incomodou em olhar. Estavam ocupados demais.
Eu a fiz olhar em meus olhos. Falei:
- Aranhas. Grandes aranhas peludas.
Aquilo mexeu com ela. Sua visão clareou.
- Ah, meus deuses - falou. - Há quanto tempo nós...
- Não sei, mas temos de encontrar Grover.
Saímo à procura dele, e o encontramos ainda jogando Caçador de Cervos Virtual.
- Grover! - gritamos juntos.
Ele disse:
- Morra, ser humano! Morra, pessoa tola e poluente!
- Grover!
Ele apontou a arma de plástico para mim e começou a clicar, como se eu fosse apenas mais uma imagem na tela.
Olhei para Annabeth e juntos pegamos Grover pelos braços e o arrastamos para longe. Os tênis voadores despertaram e começaram a puxar as pernas dele na diração oposta, enquanto ele gritava:
- Não! Acabei de passar de nível! Não!
O mensageiro do Lótus correu até nós.
- E então, estão prontos para os seus cartões platinum?
- Estamos indo embora - disse a ele.
- Que pena - disse ele, e tive a sensação de que ele estava sendo sincero, de que íamos despedaçar seu coração partindo. - Acabamos de anexar um novo andar cheio de jogos para
portadores de cartões platinum.
Ele mostrou os cartões, e eu queria um. Sabia que, se pegasse jamais iria embora. Ficaria ali, feliz para sempre, jogando para sempre, e logo esqueceria minha mãe, e minha missão, e talvez até meu próprio nome. Ficaria jogando Atirador Virtual com o bicho joinha Darrin Discoteca para sempre.
Grover estendeu a mão para o cartão, mas Annabeth puxou o braço dele e disse:
- Não, obrigada.
Fomos andando em direção à porta, e quando fizemos isso, o cheiro de comida e os sons dos jogos pareceram ficar mais e mais convidativos. Pensei em nosso quarto lá em cima. Podíamos só passar a noite, dormir em uma cama de verdade para variar...
Então disparamos pelas portas do Cassino Lótus e saímos correndo pela calçada. A sensação era de meio de tarde, mais ou menos a mesma hora que havíamos entrado no cassino, mas algo estava errado. O tempo mudara completamente. Estava tempestuoso, com raios de calor relampejando no deserto.
A mochila de Ares estava pendurada em meu ombro, o que era estranho, pois eu tinha certeza de que a jogara na lata de lixo do quarto 4001. Mas naquele momento eu tinha outros problemas com que me preocupar.
Corri para o jornal mais próximo e li o ano primeiro. Graças aos deuses, era o mesmo ano de quando entramos. Então reparei na data: 20 de junho.
Tínhamos ficado no Cassino Lótus por cinco dias.
Restáva-nos só um dia até o solstício de verão. Um dia para completar nossa missão.
DEZESSETE – Vamos comprar camas d’água.
A idéia foi de Annabeth.
Ela nos meteu no banco de trás de um táxi de Las Vegas como se realmente tivéssemos dinheiro, e disse ao motorista:
- Los Angeles, por favor.
O taxista mascou seu charuto e nos mediu com os olhos.
- São quatrocentos e oitenta e dois quilômetros. Para isso, vocês têm de pagar adiantado.
- Aceita cartão de débito de cassinos? - perguntou Annabeth.
Ele deu de ombros.
- Alguns. Funcionam como os cartões de crédito. Preciso passar o cartão primeiro.
Annabeth estendeu o cartão GranaLótus verde para ele.
O motorista olhou com ar desconfiado.
- Passe o cartão - convidou Annabeth.
Ele fez isso.
O taxímetro começou a crepitar. Luzes se acenderam. Por fim, um símbolo do infinito apareceu ao lado do cifrão.
O charuto caiu da boca do motorista. Ele olhou para nós de olhos arregalados.
- Em que lugar de Los Angeles... ahn... Sua Alteza?
- O píer Santa Monica. - Annabeth endireitou um pouco o corpo. Dava para perceber que ela gostara daquilo de "Sua Alteza‖. - Leve-nos depressa, e pode ficar com o troco.
Talvez ela não devesse ter dito aquilo.
O velocímetro do táxi não caiu nem por um instante abaixo de cento e sessenta ao longo de todo o percurso pelo deserto de Mojave.
*****
Na estrada, tivemos tempo à vontade para conversar. Contei a Annabeth e Grover sobre meu último sonho, mas, quanto mais tentava me lembrar, mais imprecisos foram ficando os detalhes. O Cassino Lótus parecia ter causado um curto-circuito na minha memória. Eu não conseguia me lembrar de como era o som da voz do servo, embora tivesse certeza de que era de alguém que eu conhecia. O servo chamara o monstro no abismo de algum outro nome além de "meu senhor"... Algum nome ou título especial...
- O Silencioso? - sugeriu Annabeth. - O Rico? Ambos são apelidos de Hades.
- Talvez... - falei -, embora nenhum dos dois parecesse muito certo.
- A sala do trono parece ser a de Hades - disse Grover. - É assim que costumam descrevê-la.
Eu sacudi a cabeça.
- Alguma coisa está errada. A sala do trono não era a parte principal do meu sonho. E aquela voz no abismo... Eu não sei. Simplesmente não parecia a voz de um deus.
Os olhos de Annabeth se arregalaram.
- O que foi? - perguntei.
- Ah... nada. Eu estava só... Não, tem de ser Hades. Talvez ele tenha mandado esse ladrão, essa pessoa invisível, para pegar o raio-mestre, e algo tenha dado errado...
- Tipo o quê?
- Eu... eu não sei - disse ela. - Mas se ele roubou o símbolo do poder de Zeus do Olimpo, e os deuses o estavam caçando, quer dizer, uma porção de coisas poderia dar errado, ou ele o perdeu de algum modo. De qualquer jeito, não conseguiu levá-lo até Hades. Foi isso o que a voz disse no seu sonho, certo? O cara fracassou. Isso explicaria o que as Fúrias estavam procurando quando vieram atrás de nós no ônibus. Talvez achem que recuperamos o raio.
Não sabia muito bem o que estava errado com ela. Parecia pálida.
- Mas se eu já tivesse recuperado o raio - falei -, por que estaria viajando para o Mundo Inferior?
- Para ameaçar Hades - sugeriu Grover. - Para suborná-lo ou chantageá-lo para devolver sua mãe.
Eu assobiei.
- Você tem pensamentos perversos para um bode.
- Ora, obrigado.
- Mas a coisa no abismo disse que estava esperando dois - falei. - Se o raio-mestre é um, qual é o outro?
Grover sacudiu a cabeça, claramente perplexo.
Annabeth olhava para mim como se soubesse qual seria a minha próxima pergunta e estivesse desejando silenciosamente que eu não a fizesse.
- Você tem idéia do que poderia estar naquele abismo tem? - perguntei a ela. - Quer dizer, se não for Hades.
- Percy... não vamos falar sobre isso. Porque se não for Hades... Não. Tem de ser Hades.
A desolação passava por nós. Passamos por uma placa que dizia DIVISA DO ESTADO DA CALIFÓRNIA, VINTE QUILÔMETROS.
Tive a sensação de que estava deixando de notar alguma informação simples e crucial. Era como quando eu olhava para uma palavra que deveria conhecer, mas ela não fazia sentido porque uma ou duas letras estavam flutuando fora do lugar. Quanto mais eu pensava sobre minha missão, mais certeza tinha de que confrontar Hades não era a verdadeira resposta. Havia algo mais acontecendo, algo ainda mais perigoso.
O problema era: estávamos disparados na direção do Mundo Inferior a cento e sessenta quilômetros por hora, apostando que que Hades tinha o raio-mestre. Se chegássemos lá e descobríssemos que estávamos errados, não teríamos tempo para corrigir o erro. O prazo do solstício passaria e a guerra começaria.
- A resposta está no Mundo Inferior - assegurou Annabeth. - Você viu os espíritos dos mortos, Percy. Só há um lugar onde isso é possível. Estamos fazendo a coisa certa.
Ela tentou levantar a nossa moral sugerindo estratégias engenhosas para entrar na Terra dos Mortos, mas meu coração não estava naquilo. O fato é que havia muitos fatores desconhecidos. Era como
estudar loucamente para uma prova sem saber qual é o assunto. E, acredite-me, isso eu já fizera muitas vezes.
O táxi ia a toda para oeste. Cada rajada de vento no Vale da Morte parecia um espírito dos mortos. Cada vez que os freios chiavam atrás de um caminhão de dezoito rodas, aquilo me lembrava a voz reptiliana de Equidna.
*****
Ao pôr-do-sol, o táxi nos deixou na praia de Santa Monica. Era exatamente como as praias de Los Angeles que se vêem nos filmes, só que o cheiro era pior. Havia carrosséis de parque de diversão ao longo do píer, palmeiras nas calçadas, sem-teto dormindo nas dunas e surfistas esperando a onda perfeita.
Grover, Annabeth e eu caminhamos até a beira-mar.
- E agora? - perguntou Annabeth.
O Pacífico estava ficando dourado ao sol poente. Pensei em quanto tempo se passara desde que estivera na praia de Montauk, do outro lado do país, olhando para um mar diferente.
Como podia haver um deus capaz de controlar aquilo tudo? O que meu professor de ciências dizia - dois terços da superfície da Terra são cobertos de água? Como eu podia ser filho de alguém tão poderoso?
Entrei na arrebentação.
- Percy? - disse Annabeth. - O que está fazendo?
Continuei andando, até a água chegar à minha cintura, depois ao peito.
Ela gritou para mim:
- Tem idéia de quanto essa água está poluída? Há todos os tipos de coisas tóxicas...
Foi quando minha cabeça submergiu.
De início, prendi a respiração. É difícil inalar água de propósito. Por fim não pude mais aguentar. Inspirei. De fato, eu conseguia respirar normalmente.
Desci andando até os bancos de areia. Não deveria conseguie enxergar naquelas águas escuras, mas de algum modo podia dizer onde tudo estava. Conseguia sentir a textura ondulada do fundo. Podia distinguir colônias de estrelas-do-mar pontilhando os bancos de areia. Podia até ver as correntes, quentes e frias, rodopiando juntas.
Senti algo roçando a minha perna. Olhei para baixo e pulei para fora da água como um míssil. Deslizando ao meu lado, havia um tubarão-sombreiro de um metro e meio de comprimento.
Mas ele não estava atacando, apenas esfregava o nariz em mim. Estava nos meus calcanhares como um cachorro. Vacilante, toquei sua barbatana dorsal. Ele resistiu um pouco, como se estivesse me convidando a segurar mais forte. Agarrei a barbatana com as duas mãos. Ele partiu, me puxando. O tubarão me arrastou para o fundo, para a escuridão, e me largou à beira do oceano propriamente dito, onde o banco de areia despencava em um imenso abismo. Era como estar na beira do Grand Canyon à meia-noite, sem conseguir ver muita coisa mas sabendo que o vazio estava bem ali.
A superfície tremeluzia a uns cinquenta metros. Eu sabia que devia ter sido esmagado pela pressão. Mas, por outro lado, o natural era que também não respirasse. Fiquei imaginando se haveria um limite até o qual eu poderia avançar, e se era possível descer direto até o fundo do Pacífico.
Então vi algo reluzindo na escuridão abaixo, ficando maior e mais brilhante à medida que subia na minha direção. Uma voz de mulher, como a da minha mãe, chamou:
- Percy Jackson.
Quando ela chegou mais perto, sua forma ficou mais clara. Tinha cabelos pretos soltos e usava um vestido de seda verde. A luz tremeluzia a seu redor, e os olhos eram tão perturbadoramente bonitos que mal notei o cavalo-marinho do tamanho de um corcel em que ela estava montando.
Ela desmontou. O cavalo-mannho e o tubarão-sombreiro se afastaram rapidamente e começaram uma brincadeira que parecia esconde-esconde. A dama submarina sorriu para mim.
- Você chegou longe, Percy Jackson. Muito bem!
Eu não sabia muito bem o que fazer, então me curvei.
- Você é a mulher que falou comigo no rio Mississipi.
- Sim, criança. Eu sou uma nereida, um espírito do mar. Não foi fácil aparecer tão longe, rio acima, mas as náiades, minhas primas da água doce, ajudaram a sustentar minha força vital. Elas honram o Senhor Poseidon, embora não sirvam em sua corte.
- E... você serve na corte de Poseidon?
Ela assentiu.
- Muitos anos se passaram desde que nasceu uma criança do Deus do Mar. Nós o observamos com grande interesse.
De repente me lembrei dos rostos nas ondas perto da praia de Montauk quando eu era pequeno, reflexos de mulheres sorridentes. Como com tantas coisas estranhas em minha vida, nunca havia pensado muito naquilo.
- Se meu pai se interessa tanto por mim - falei -, por que não está aqui? Por que não fala comigo?
Uma corrente fria subiu das profundezas.
- Não julgue o Senhor do Mar tão duramente - disse-me a nereida. - Ele está prestes a lutar em uma guerra indesejada. Tem muito com que ocupar seu tempo. Além disso, está proibido de ajudá-lo diretamente. Os deuses não podem demonstrar tal favoritismo.
- Mesmo com seus próprios filhos?
- Especialmente com estes. Os deuses só podem agir por influência indireta. E por isso que lhe dou um aviso, e um presente.
Ela estendeu a mão aberta e três pérolas brancas brilharam.
- Sei de sua jornada aos domínios de Hades - disse. - Poucos mortais já fizeram isso e sobreviveram: Orfeu, que possuía grande talento musical; Hércules, que tinha grande força; Houdini, que podia escapar até mesmo das profundezas do Tártaro. Você tem esses talentos?
- Ahn... não, senhora.
- Ah, mas você tem algo mais, Percy. Possui dons que esta apenas começando a descobrir. Os oráculos vaticinaram um grande e extraordinário futuro para você, desde que sobreviva até a idade adulta. Poseidon não aceitará que morra antes do tempo, Portanto pegue estas pérolas, e quando estiver em apuro, esmague elas a seus pés.
- O que vai acontecer?
- Depende do apuro. Mas lembre: o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.
- E o aviso?
Os olhos dela brilharam com uma luz verde.
o enganará se puder, o fará desconfiar de seu próprio julgamento. Depois que estiver nos domínios dele, Hades jamais permitirá voluntariamente que você parta. Mantenha a fé. Boa sorte, Percy Jackson.
Ela chamou seu cavalo-marinho e partiu para o vazio.
- Espere! - gritei. - No rio, você disse para não confiar em presentes. Que presentes?
- Adeus, jovem herói - gritou ela de volta, a voz desaparecendo nas profundezas. - Você deve ouvir seu coração. - Ela se transformou em um ponto verde luminoso e depois desapareceu. Eu quis segui-la para as profundezas escuras. Quis ver a corte de Poseidon. Mas ergui os olhos para o crepúsculo que se transformava em noite na superfície. Meus amigos estavam esperando. Tínhamos tão pouco tempo...
Tomei impulso para cima em direção à arrebentação.
Quando cheguei à praia, minhas roupas secaram instantaneamente. Contei a Grover e a Annabeth o que acontecera, e mostrei as pérolas a eles.
Annabeth fez uma careta.
- Nenhum presente vem sem um preço.
- Elas foram de graça.
- Não. - Ela sacudiu a cabeça. - "Não existe almoço grátis." É um antigo ditado grego que se aplica perfeiramente hoje em dia. Haverá um preço. Aguarde.
Com esse pensamento feliz, demos as costas para o mar.
*****
Tomamos o ônibus para West Hollywood com um pouco dos trocados que sobraram na mochila de Ares. Mostrei ao motorista o recibo com o endereço do Mundo Inferior que eu pegara no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, mas ele nunca ouvira falar nos Estúdios de Gravação M.A.C. - Morto ao Chegar.
- Você me lembra alguém que vi na tevê - falou, ator infantil, ou coisa assim?
- Ahn... eu sou dublê... de uma porção de atores infantis.
- Ah! Está explicado.
Agradeci e desci rapidamente na parada seguinte.
Perambulamos por quilômetros à procura do M.A.C. Ninguém parecia saber onde era. Não constava da lista telefônica.
Duas vezes nos esquivamos para becos, para evitar viaturas de polícia.
Fiquei paralisado na frente da vitrine de uma loja de eletrodomésticos porque uma televisão mostrava uma entrevista com alguém que pareceu muito familiar - meu padrasto, Gabe Cheiroso.
Ele estava falando com Barbara Walters - parecendo uma grande celebridade. Ela o entrevistava em nosso apartamento, no meio de um jogo de pôquer, e havia uma jovem loira sentada ao lado dele, afagando-lhe a mão.
Uma lágrima falsa brilhou na bochecha dele enquanto ele dizia:
- Honestamente, sra. Walters, se não fosse aqui pela Fofinha, minha conselheira nas horas tristes, eu estaria um caco. Meu enteado levou tudo o que me era caro... Minha esposa... meu Camaro... Eu.. desculpe. Sinto dificuldade em falar sobre isso.
- Ai está, América. - Barbara Walters voltou-se para a câmera. - Um homem destroçado. Um menino adolescente com sérios problemas. Deixem-me mostrar agora a última foto desse problemático jovem fugitivo, tirada há uma semana em Denver.
A tela cortou para uma foto granulada em que eu, Annabeth e Grover do lado de fora do restaurante Colorado estávamos falando com Ares.
- Quem são as outras crianças nesta foto? - perguntou Barbara Walters com dramaticidade. - Quem é o homem que está com elas? Percy Jackson é um delinquente, um terrorista ou uma vítima da lavagem cerebral de uma nova e assustadora seita? Quando voltarmos, vamos conversar com uma renomada psicóloga infantil. Fique conosco, América.
- Vamos - disse-me Grover. Ele me arrastou para longe antes que eu abrisse um buraco na vitrine da loja de eletrodomésticos com um murro.
Anoiteceu, e personagens de aparência esfomeada começaram a sair para as ruas para representar seus papéis. Não me entendam mal. Sou nova-iorqumo. Não me assusto facilmente. Mas estar em Los Angeles era bem diferente de estar em Nova York. Onde eu morava tudo parecia perto. Embora fosse uma grande cidade, era possível se chegar a qualquer lugar sem se perder. O padrão das ruas e o metrô faziam sentido. Havia um critério de funcionamento das coisas. Desde que não fosse bobo, um garoto podia se sentir seguro lá.
Los Angeles não era assim. Era espalhada, caótica, ficava difícil se locomover. Fazia lembrar Ares. Para Los Angeles, não bastava ser grande; era preciso também provar-se grande sendo barulhenta, estranha e difícil de navegar. Eu não sabia como iríamos encontrar a entrada para o Mundo Inferior até o dia seguinte, o solstício de verão.
Passamos por gangues, vagabundos e camelôs, que nos olhavam como se tentassem avaliar se nos atacar seria um bom negócio.
Quando passamos apressados pela entrada de um beco, uma voz disse no escuro:
- Eí, você.
Como um idiota, parei.
Antes que nos déssemos conta, estávamos cercados, Uma gangue de garotos estava ao nosso redor. Seis ao todo - garotos brancos com roupas caras e expressão perversa. Como os garotos da Academia Yancy; moleques ricos brincando de ser malvados.
Por instinto, destampei Contracorrente.
Quando a espada apareceu do nada, eles recuaram, mas seu líder ou era muito estúpido ou muito valente, porque continuou avançando em minha direção com um canivete de mola.
Cometi o erro de desferir um golpe.
O garoto deu um grito agudo. Mas ele devia ser cem por cento mortal, porque a lâmina passou inofensiva por seu peito. Ele olhou para baixo.
- Mas que...
Calculei que teria mais ou menos três segundos antes que o choque dele se transformasse em raiva.
- Corram! - gritei para Annabeth e Grover.
Empurramos dois deles para fora do caminho e dísparamos pela rua, sem saber aonde estávamos indo. Dobramos uma esquina numa curva bem fechada.
- Ali! - gritou Annabeth.
Somente uma loja do quarteirão parecia aberta, as vitrines brilhando em néon. O letreiro acima da porta dizia algo como LACIÁPO ADS MASCA Á’GDUS OS SCRATO.
- Palácio das Camas d'Água do Crosta? - traduziu Grover.
Não parecia o tipo de lugar onde eu entraria a não ser em uma emergência, mas sem dúvida era essa a situação.
Irrompemos pelas portas, corremos para trás de uma cama dágua e nos abaixamos. Uma fração de segundo depois, a gangue de garotos passou correndo do lado de fora.
- Acho que os despistamos - ofegou Grover.
Uma na voz atrás de nós retumbou:
- Despistaram quem?
Nos três pulamos.
Logo atrás, em pé, estava um cara que parecia um tiranossauro em trajes de passeio. Tinha pelo menos dois metros e tanto de altura, completamente careca. A pele era cinzenta e curtida como couro, olhos de pálpebras grossas e sorriso frio, reptiliano. Aproximava-se lentamente, mas tive a sensação de que poderia se mover depressa se precisasse.
Seu traje parecia saído do Cassino Lótus. Era dos gloriosos anos 70. A camisa era de seda estampada, desabotoada até a metade do peito sem pêlos. As lapelas do casaco de veludo eram largas como pistas de pouso. Eram tantas correntes de prata no pescoço que nem consegui contar.
- Eu sou o Crosta - disse com um sorriso amarelo de tanto tártaro.
Resisti ao impulso de dizer, Sim, está na cara.
- Desculpe a invasão - falei. - Estamos só, ahn, dando uma olhada.
- Você quer dizer, se escondendo daqueles garotos mal-encarados - resmungou ele. - Eles ficam vadiando por aqui todas as noites. Entra uma porção de gente na loja, graças a eles. Digam, querem ver uma cama d'água?
Eu já ia dizer Não, obrigado quando ele pôs uma pata enorme no meu ombro e me empurrou mais para dentro do salão da loja.
Havia todos os tipos de camas d'água que você possa imaginar: diferentes tipos de madeira, lençóis de padronagem variadas; queen-size, king-size, gigantescas.
- Este é meu modelo de maior sucesso. - Crosta passou as mãos orgulhosamente sobre uma cama coberta com cetim preto, com lâmpadas de lava embutidas na cabeceira. O colchão vibrava, e a coisa ficava parecendo gelatina de petróleo.
- Massagem de um milhão mãos - disse Crosta. - Vão em frente, experimentem. Tirem uma soneca, mandem ver. Eu não importo. Tem pouco movimento hoje.
- Ahn - falei. - Não acho que...
- Massagem de urn milhão de mãos! - exclamou Grover, e mergulhou na cama. - Ah, gente! Isso é legal.
- Hummm - disse Crosta, coçando o seu queixo de couro. - Quase, quase.
- Quase o quê? - perguntei.
Ele olhou para Annabeth.
- Faça-me um favor e experimente aquela lá, meu bem. Pode servir.
Annabeth disse:
- Mas o que...
Ele lhe deu algumas palmadinhas tranqüilizadoras no ombro e a levou para o modelo Safári Deluxe, com leões de teca entalhados na armação e um acolchoado de leopardo. Como Annabeth não quis deitar, Crosta a empurrou.
- Ei! - protestou ela.
Crosta estalou do dedos.
- Ergo!
Cordas pularam das laterais da cama e envolveram Annabeth como chicotes, prendendo-a ao colchão.
Grover tentou se levantar, mas cordas pularam também de sua cama de cetim preto, e o prenderam.
- N-não é l-l-legal! - gritou ele, a voz vibrando com a massagem de um milhão de mãos. - N-n-nada l-l-legal!
O gigante olhou para Annabeth, voltou-se para mim e arreganhou um sorriso.
- Quase. Droga.
Tentei me afastar, mas a mão dele se arremessou e me agarrou pela nuca.
- Opa, garoto. Não se preocupe. Vamos achar uma para você em um segundo.
- Solte meus amigos.
- Ah, certamente, eu vou. Mas vou ter de ajustá-los primeiro.
- O que quer dizer?
- Todas as camas têm exatamente um metro e oitenta, sabia? Seus amigos são baixinhos demais. Tenho de ajustá-los para servir nas camas.
Annabeth e Grover continuaram se debatendo.
- Não tolero medidas imperfeitas - resmungou Crosta. – Ergo!
Um novo conjunto de cordas pulou dos pés e da cabeceira da cama, enrolando-se nos tornozelos e
axilas de Grover e Annabeth. As cordas começaram a se esticar, puxando meus amigos pelas duas extremidades.
- Não se preocupe - disse Crosta para mim. - É um servicinho de estiramento. Talvez uns oito centímetros a mais nas colunas deles. Podem até sobreviver. Agora, por que não achamos uma cama de que você goste, heim?
- Percy! - gritou Grover.
Minha cabeça estava a mil. Sabia que não conseguiria dominar sozinho aquele gigante vendedor de camas d'água. Ele quebraria meu pescoço antes mesmo que eu pegasse a espada.
- Seu nome de verdade não é Crosta, é? - perguntei.
- Na certidão é Procrusto - admitiu ele.
- O Esticador.
Lembrei-me da história: o gigante que tentara matar Teseu excesso de hospitalidade a caminho de Atenas.
- Sim - disse o vendedor. - Mas quem é capaz de pronunciar Procrusto? É ruim para os negócios. Agora, "Crosta' um pode dizer.
- Tem razão. Soa muito bem. Os olhos dele se iluminaram.
- Acha mesmo?
- Ah, sem dúvida - disse eu. - E o acabamento dessas camas? Fabuloso!
Ele abriu um enorme sorriso, mas os dedos não afrouxaram em meu pescoço.
- Digo isso aos meus fregueses. Sempre. Ninguém se preocupa em examinar o acabamento. Quantas lâmpadas de lava embutidas você já viu?
- Não muitas.
- Claro!
- Percy! - gritou Annabeth. - O que está fazendo?
- Não ligue para ela - disse eu a Procrusto. - Ela impossível.
O gigante riu.
- Todos os meus fregueses são. Nunca têm um metro e oitenta exato. Muito desatencioso. E depois se queixam do ajuste.
- O que você faz quando eles têm mais de um metro e oitenta?
- Ora, isso acontece sempre. É um ajuste simples.
Ele soltou meu pescoço, mas antes que eu pudesse reagir esticou o braço para trás de um balcão próximo e de lá tirou um enorme machado de bronze com lâmina dupla. Ele disse:
- É só centralizar o freguês o melhor possível e aparar o que estiver sobrando nas duas extremidades.
- Ah - falei, engolindo em seco. - Sensato.
- Estou tão satisfeito em cruzar com um freguês inteligente!
Agora as cordas estavam realmente esticando meus amigos. Annabeth estava ficando pálida. Grover fazia sons gorgolejantes, como um ganso estrangulado
- Então, Crosta... - falei, tentando manter a voz despreocupada. Olhei de relance para a cama Lua-de-Mel Especial, em forma de coração. - Esta aqui tem mesmo estabilizadores dinâmicos para compensar o movimento ondulatório?
- É claro. Experimente.
Sim, talvez eu experimente. Mas funcionaria também para um cara grande como você? Sem nenhuma ondulação?
- Garantido.
- Não acredito.
- Pode acreditar.
- Mostre.
Ele sentou com vontade na cama e deu uma palmadmha no colchão.
- Nenhuma ondulação. Viu?
Estalei os dedos.
- Ergo!
As cordas saltaram em volta de Crosta e o achataram no colchão.
- Ei! - gritou ele.
- Centralizar bem - falei.
As cordas se reajustaram ao meu comando. A cabeça inteira de Crosta ficou para fora da cabeceira. Os pés ficaram para fora na outra ponta.
- Não! - disse ele. - Espere! E só uma demonstração.
Destampei Contracorrente.
- Alguns ajustezinhos...
Não tive nenhum escrúpulo quanto ao que estava prestes a fazer. Se Crosta não fosse humano, eu, de qualquer jeito, não poderia feri-lo. Se fosse um monstro, merecia ser transformado em pó por algum tempo.
- Você negocia duro - disse-me ele. - Dou-lhe trinta por cento de desconto nos modelos em exposição!
- Acho que vou começar com a parte de cima. - Ergui a espada.
- Sem entrada! Financiamento em seis meses sem juros!
Desci a espada. Crosta parou de fazer ofertas.
Cortei as cordas nas outras camas. Annabeth e Grover puseram-se em pé, gemendo e se encolhendo e me xingando muito.
- Vocês parecem mais altos - falei.
- Muito engraçado - disse Annabeth. - Da próxima vez seja mais rápido.
Olhei para o quadro de avisos atrás do balcão de Crosta. Havia uma propaganda do Serviço de Entregas Hermes e outra do Guia Completo dos Monstros na Área de Los Angeles - "As únicas Páginas Amarelas Monstruosas de que você vai precisar!". Embaixo daquilo, um panfleto em laranja vivo dos Estúdios de Gravação M.A.C. oferecendo comissões por almas de heróis. "Estamos sempre a procura de de novos talentos!" O endereço estava logo abaixo, com um mapa.
- Vamos - disse a meus amigos.
- Espere só um minuto - queixou-se Grover. - Fomos praticamente esticados até a morte!
- Então estão preparados para o Mundo Inferior - falei. - Fica apenas uma quadra daqui.
DEZOITO – Annabeth usa a aula de adestramento.
Estávamos nas sombras da Valência Boulevard, olhando para as letras douradas gravadas no mármore negro: ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO M.A.C.
Embaixo, impresso nas portas de vidro, PROIBIDA A ENTRADA DE ADVOGADOS, VAGABUNDOS E VIVENTES.
Já era quase meia-noite, mas o saguão estava iluminado e cheio de gente. Atrás do balcão da segurança estava sentado um guarda de aparência agressiva, com óculos escuros e um fone de ouvidos.
Virei-me para meus amigos.
- Certo. Vocês se lembram do plano.
- O plano - Grover engoliu seco. - Isso. Adoro o plano.
Annabeth disse:
- O que vai acontecer se o plano não funcionar?
- Sem pensamentos negativos.
- Certo - disse ela. - Estamos entrando na Terra dos Mortos e eu não devo ter pensamentos negativos.
Tirei as pérolas do bolso, as três esferas cor de leite que a nereida me dera em Santa Monica. Elas não pareciam un recurso para o caso de algo dar errado.
Annabeth pôs a mão em meu ombro.
- Desculpe, Percy. Você tem razão, vamos conseguir. Vai dar tudo certo.
Ela deu uma cutucada em Grover.
- Ah, está certo! - concordou ele. - Chegamos ate aqui. Vamos encontrar o raio-mestre e salvar sua mãe. Sem problemas.
OIhei para os dois e me senti realmente grato. Alguns minutos antes, eu quase os tinha feito ser esticados até a morte em camas d’água de luxo, e agora eles tentavam bancar os corajosos por minha causa, tentavam fazer com que me sentisse melhor.
Enfiei as pérolas de volta no bolso.
- Vamos chutar alguns traseiros no Mundo Inferior.
Entramos no saguão do M.A.C. Alto-falantes embutidos tocavam uma música ambiente suave. O carpete e as paredes eram cinza-chumbo. Cactos cresciam nos cantos como mãos de esqueletos. Os móveis eram de couro preto, e todos os assentos estavam ocupados. Havia gente sentada em sofás, gente em pé, gente olhando pela janela ou aguardando o elevador. Ninguém se mexia, nem falava, não faziam nada. Com o canto do olho, eu podia vê-los muito bem, mas, se me concentrasse em qualquer um em particular, eles começavam a parecer... transparentes. Dava para ver através dos seus corpos. O balcão da segurança ficava em cima de um degrau, portanto tínhamos de olhar para o alto para falar com o guarda.
Ele era alto e elegante, com pele na cor de chocolate e cabelo tingido de loiro, cortado em estilo militar. Usava armação de tartaruga e um terno de seda italiano que combinava com o cabelo. Uma rosa negra estava presa à lapela, embaixo de um crachá de prata. Lio nome no crachá e olhei para ele perplexo. - Seu
nome e Quiron? Ele se inclinou por cima da mesa. Nao consegui ver nada em seus oculos exceto meu proprio reflexo, mas seu sorriso era doce e frio, como o de uma jiboia exatamente antes de devorar voce. - Que rapaz mais engracadinho. - Ele tinha um sotaque estranho... ingles, talvez, mas como se tivesse aprendido ingles como segunda lingua. - Diga-me, parceiro, eu pareco um centauro? - N-nao. - Senhor - acrescentou ele suavemente. - Senhor - falei. Ele segurou o cracha e correu o dedo embaixo das letras. - Consegue ler isto, parceiro? Aqui diz C-A-R-O-N-T-E. Diga comigo: CA-RON-TE. - Caronte. - Fantastico! Agora: senhor Caronte. - Senhor Caronte - disse eu. - Muito bem. - Ele se recostou. - Detesto ser confundido com aquele homem-cavalo. E agora, como posso ajuda-los, pequenos defuntos? A pergunta dele me acertou o estomago como uma bola de beisebol. Olhei para Annabeth em busca de ajuda. - Queremos ir para o Mundo Inferior - disse ela. A boca de Caronte repuxou-se. - Bem, isso e revigorante. - E mesmo? - perguntou ela. - Direto e honesto. Sem gritos. Sem "Deve haver algum engano, sr. Caronte". - Ele nos olhou de cima a baixo. - Entao, como voces morreram? Cutuquei Grover. - Ah - disse ele. - Ahn... afogados... na banheira. - Os tres? - perguntou Caronte. Nos assentimos. - Que banheira grande. - Caronte pareceu levemente impressionado. - Suponho que voces nao tem moedas para passagem. Com adultos, voces sabem, eu poderia debitar no cartao de credito, ou acrescentar o preco da travessia na sua ultima conta de telefone. Mas com criancas... infelizmente, voces nunca morrem preparadas. Acho que terao de ficar sentados por alguns seculos. - Ah, mas nos temos moedas. - Pus tres dracmas de ouro sobre o balcao, parte da provisao que eu
encontrara na mesa do escritorio de Crosta. - Ora vejam... - Caronte umedeceu os labios. - Dracmas de verdade. Nao vejo uma dessas faz... Seus dedos pairaram avidamente sobre as moedas. Estavamos muito perto. Entao Caronte me olhou. O olhar frio atras dos oculos pareceu abrir um buraco em meu peito. - Mas voce nao conseguiu ler meu nome direito. Voce e dislexico, rapaz? - Nao. Sou um morto. Caronte inclinou-se para a frente e deu uma cheirada. - Voce nao esta morto. Eu devia saber. E um filhote de deus. - Temos de chegar ao Mundo Inferior - insisti. Caronte rosnou no fundo da garganta. No mesmo instante, todas as pessoas na sala de espera se levantaram e comecaram a andar de um lado para outro, agitadas, acendendo cigarros, passando as maos pelos cabelos ou olhando para os relogios de pulso. - Vao embora enquanto podem - disse-nos Caronte. - Vou ficar com estas moedas e esquecer que os vi. Ele comecou a esticar a mao para as moedas, mas eu as puxei de volta. - Sem servico, sem gorjeta. -Tentei parecer mais valente do que me sentia. Caronte rosnou de novo . um som profundo, de gelar sangue. Os espiritos dos mortos comecaram a bater nas portas do elevador. - E uma pena - suspirei. -Tinhamos mais para oferecer. Ergui a sacola inteira com o tesouro de Crosta. Tirei um punhado de dracmas e deixei as moedas escorregarem entre os dedos. O rosnado de Caronte se transformou em algo mais parecido com um ronronar de leao. - Acha que pode me comprar, filhote de deus? Ahn... curiosidade, quanto voce tem ai? - Muito - falei. - Aposto que Hades nao lhe paga o bastante por um trabalho tao duro. - Ah, voce nao sabe nem da metade. Iria gostar de ser baba desses espiritos o dia inteiro? Sempre com "Por favor, nao me deixe ficar morto" ou "Por favor, deixe-me atravessar de graca.. Nao tenho um aumento ha tres mil anos. Acha que ternos como este custam barato? - Voce merece coisa melhor - concordei. - Algum reconhecimento. Respeito. Bom salario. A cada palavra, eu empilhava outra moeda de ouro no balcao. Caronte baixou os olhos para o paleto de seda italiana, como se estivesse se imaginando com algo ainda melhor. - Devo dizer, rapaz, que a gente esta comecando a falar a mesma lingua. Um pouco.
Empilhei mais algumas moedas. - Eu poderia mencionar um aumento de salario quando estiver falando com Hades. Ele suspirou. - Bem, o barco ja esta quase cheio. Poderia muito bem encaixar voces tres e zarpar. Ele se pos de pe, pegou nosso dinheiro e disse: - Venham comigo. Abrimos caminho entre a multidao de espiritos que aguardavam, os quais comecaram a puxar nossas roupas como o vento, ds vozes sussurrando coisas que eu nao podia distinguir. Caronte empurrou-os do caminho, resmungando: - Parasitas. Ele nos escoltou ate o elevador, que ja estava apinhado de algumas dos mortos, todos segurando um cartao de embarque verde. Caronte agarrou dois espiritos que tentavam entrar conosco e os empurrou de volta para o saguao. - Muito bem. Agora, ninguem comece a ter ideias enquanto eu estiver fora - anunciou ele para a sala de espera. - E se alguem tirar minha estacao de musica de sintonia novamente, farei voces ficarem aqui por outro milenio. Entendido? Ele fechou as portas. Enfiou um cartao-chave em uma fenda no painel do elevador e comecamos a descer. - O que acontece com os espiritos que ficam esperando no saguao? - perguntou Annabeth. - Nada - disse Caronte. - Por quanto tempo? - Para sempre, ou ate eu me sentir generoso. - Ah - disse ela. - Isso e... justo. Caronte ergueu uma sobrancelha. - Quem disse que a morte era justa, mocinha? Espere ate chegar a sua vez. Voce vai morrer em pouco tempo, no lugar esta indo. - Vamos sair vivos - falei. - Ah. Tive de repente uma sensacao de vertigem. Nao estavamos mais indo para baixo, mas para a frente. O ar ficou enevoado. Os espiritos a minha volta comecaram a mudar de forma. Suas roupas modernas tremiam e se transformavam em mantos cinzentos com capuz. O piso do elevador comecou a oscilar. Pisquei com forca. Quando abri os olhos, o terno creme italiano de Caronte fora substituido por um longo manto negro. Seus oculos de tartaruga haviam desaparecido. Onde deviam estar os olhos havia orbitas vazias - como os olhos de Ares, so que os de Caronte eram totalmente escuros, repletos de noite, trevas e desespero. Ele me viu olhando e disse: - O que?
- Nada - consegui dizer. Achei que ele estivesse sorrindo, mas nao era isso. A pele de seu rosto estava ficando transparente, deixando que eu visse ate o cranio. O chao continuou oscilando. Grover disse: - Acho que estou ficando enjoado. Quando pisquei de novo, o elevador nao era mais um elevador. Estavamos dentro de uma barcaca de madeira. Caronte usava uma vara para nos mover ao longo de um rio escuro, cheio de oleo, com ossos, peixes mortos e outras coisas estranhas girando na superficie... bonecas de plastico, cravos esmagados, diplomas encharcados com bordas douradas. - O rio Styx - murmurou Annabeth. - E tao... - Poluido - disse Caronte. - Ha milhares de anos voces, seres humanos, quando o atravessam, jogam tudo nele... esperancas, sonhos, desejos que jamais se tornam realidade. Um modo irresponsavel de tratar seu lixo, se querem saber. A nevoa subia em espirais da agua imunda. Acima de nos, quase perdido nas sombras, havia um teto de estalactites. A frente, a costa distante brilhava com uma luz esverdeada, a cor do veneno. O panico obstruiu minha garganta. O que eu estava fazendo ali? Aquelas pessoas ao meu redor... estavam mortas. Annabeth agarrou minha mao. Em circunstancias normais, isso teria me embaracado, mas entendi como ela se sentia. Queria se assegurar de que mais alguem estava vivo naquele barco. Percebi que eu murmurava uma oracao, embora nao soubesse bem para quem estava rezando. Ali embaixo so um deus importava, e era ele que eu fora confrontar. A praia do Mundo Inferior surgiu a vista. Rochas escarpadas e areia vulcanica negra se estendiam terra adentro por cerca de cem metros ate um muro alto de pedra, que se prolongava para os lados ate onde a vista podia alcancar. De algum lugar por perto nas sombras verdes, veio um som, reverberando nas pedras - o uivo de um grande animal. - O velho Tres-Caras esta com fome - disse Caronte. Seu sorriso se tornou esqueletico a luz esverdeada. - Ma sorte para voces, filhotes de deuses. O fundo do nosso barco deslizou sobre a areia preta. Os mortos comecaram a desembarcar. Uma mulher segurando a mao de uma menininha. Um casal de idosos capengando lentamente, de bracos. Um menino que nao era mais velho que eu arrastava os pes em silencio em seu manto cinzento. Caronte disse: - Eu lhe desejaria sorte, parceiro, mas isso nao existe por aqui. Lembre-se, nao deixe de mencionar meu aumento de salario. Ele contou nossas moedas de ouro em sua bolsa, depois a vara. Gorjeou algo que parecia uma cancao de Barry Manilow enquanto empurrava a barcaca de volta atraves do rio. Seguimos os espiritos por um caminho ja muito percorrido. *****
Nao sei muito bem o que estava esperando - os Portoes do Ceu, uma ponte levadica grande e escura ou coisa assim. Mas a entrada para o Mundo Inferior parecia uma mistura de seguranca de aeroporto com a auto-estrada de New Jersey. Havia tres entradas separadas embaixo de um enorme arco negro que dizia VOCE ESTA ENTRANDO EM EREBO. Em cada entrada havia um detector de metais com cameras de seguranca instaladas no alto. Depois disso, havia cabines de pedagio operadas por ghouls como Caronte. Os uivos de animal faminto eram agora muito altos, mas eu nao conseguia ver de onde vinham. O cao de tres cabecas, Cerbero, que deveria guardar a porta do Hades, nao estava em lugar nenhum. Os mortos formaram tres filas, duas identificadas como ATENDENTE DE SERVICO e uma como MORTE ESPRESSA. A fila MORTE EXPRESSA estava avancando sem parar. As outras duas se arrastavam. - O que voce imagina? - perguntei a Annabeth. - A fila rapida deve ir diretamente para os Campos Asfodelos - disse ela. - Sem contestacao. Eles nao querem se arriscar ao julgamento do tribunal, porque pode ir contra eles. - Existe um tribunal para gente morta? - Sim. Tres juizes. Eles se revezam na na magistratura. O rei Minos, Thomas Jefferson, Shakespeare... pessoas assim. As vezes olham para uma vida e concluem que aquela pessoa precisa de uma recompensa especial: os Campos Elisios. As vezes decidem por um castigo. Mas a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de especial, nem bom nem mau. Entao vao para os Campos Asfodelos. - E fazem o que? Grover disse: - Imagine-se em um campo de trigo no Kansas. Para sempre. - Dureza - disse eu. - Nao tanto quanto aquilo - murmurou Grover. - Olhe. Uma dupla de ghouls de mantos negros havia puxado um espirito para o lado e o estava revistando junto a mesa da seguranca. O rosto do morto parecia vagamente familiar. - Ele e o pregador que saiu no noticiario, esta lembrado? - perguntou Grover. - Ah, sim - eu lembrava. Nos o tinhamos visto na teve uma ou duas vezes no dormitorio da Academia Yancy. Era um tele-evangelista chato do norte do estado de Nova York que arrecadara milhoes de dolares para orfanatos e depois foi pego gastando o dinheiro em artigos para a sua mansao, como assentos de privada foleados a ouro e um campo de mmigolfe. Morrera numa perseguicao da policia quando seu "Lamborghini abencoado" despencou de um penhasco. - O que estao fazendo com ele? - perguntei. O castigo especial de Hades - adivinhou Grover. - As pessoas realmente mas recebem atencao particular dele quando chegam. As Fur... as Benevolentes vao preparar uma tortura para ele. Pensar nas Furias me fez estremecer. Percebi que naquele MOmento estava no territorio delas. A velha sra. DodJds devia estar lambendo os beicos de expectativa. - Mas se ele e um pregador - falei -, e acredita em um inferno diferente... Grover encolheu os ombros.
- Quem disse que ele esta vendo este lugar do mesmo modo que nos? Os seres humanos veem o que querem ver. Voces sao muito teimosos... ahn, persistentes, nisso. Chegamos mais perto dos portoes. Os uivos ali eram tao altos que sacudiam o chao embaixo de meus pes, mas ainda assim eu nao conseguia perceber de onde vinham. Entao, cerca de quinze metros a nossa frente, a nevoa verde tremulou. Exatamente no lugar onde o caminho se dividia em tres estava um monstro enorme e indistinto. Eu nao o tinha visto antes porque ele era meio transparente, como os mortos. Ate se mexer, sua imagem se fundia com o quer que estivesse atras dele. Somente os olhos e os dentes pareciam solidos. Ele estava me encarando. Meu queixo caiu. Tudo o que pude pensar em dizer foi: - E um rottweiler. Sempre imaginara Cerbero como um grande mastim preto. Mas ele era obviamente um rottweiler de raca pura, a nao ser, e claro, por ter duas vezes o tamanho de um mamute, ser quase invisivel e ter tres cabecas. Os mortos andavam na direcao dele - sem nenhum medo. As filas das placas ATENDENTE EM SERVICO se separavam, cada uma para um lado do monstro. Os espiritos de MORTE EXPRESSA caminhavam direto por entre as patas da frente e por baixo da barriga, o que podiam fazer sem sequer se abaixar. Estou comecando a ve-lo melhor - murmurei. - Por que sera? - Acho... - Annabeth umedeceu os labios. - Sinto muito, mas acho que e porque estamos mais perto de ser pessoas mortas. A cabeca do meio do cao se esticou em nossa direcao. Ele farejou o ar e rosnou. - Ele consegue farejar os vivos - falei. - Mas esta tudo bem - disse Grover, tremulo ao meu lado. Porque temos um plano. - Certo - disse Annabeth. Nunca tinha ouvido a voz dela soar tao baixa. - Um plano. Avancamos na direcao do monstro. A cabeca do meio rosnou para nos, depois latiu tao alto que minhas pupilas chaco olharam. - Voce consegue entender? - perguntei a Grover. - Ah, sim - disse ele. - Eu consigo entender. - O que ele esta dizendo? - Nao acredito que os seres humanos possuam um palavrão tão grande assim. Peguei um pedaço de madeira que tinha na mochila - um pé de cama que eu tinha arrancado de um modelo em exposição de Crosta, a Safári Deluxe. Segurei-o no alto e tentei canalizar pensamentos caninos felizes para o Cérbero - comerciais de ração, cães engraçadinhos, postes. Tentei sorrir, como se não estivesse prestes a morrer. - Ei, garotão - gritei. - Aposto que eles não brincam muito com você aqui. "GRRRRRRRRRAU" - Bom menino - falei, fraquejando.
Acenei o bastão. A cabeça do meio do cão acompanhou o movimento. As outras duas fixaram os olhos em mim, ignorando completamente os espíritos. Eu tinha toda a atenção de Cérbero. Não sabia muito bem se isso era bom. - Vá buscar! - atirei o bastão para as sombras, um lançamento perfeito. Ouvi o tíbum! no no Styx. Cérbero me olhou, feroz, nada impressionado. Os olhos eram cheios de ódio e frios. Fim do plano. O monstro agora produzia um novo tipo de rosnado, mais profundo nas suas três gargantas. - Ahn - disse Grover. - Percy? - Sim? - Apenas achei que você gostaria de saber. - Sim? - Cérbero... Ele está dizendo que temos dez segundo rezar para o deus que escolhermos. Depois disso... bem... ele está com fome. - Espere! - disse Annabeth. Ela começou a revirar sua mochila. Epa, pensei. - Cinco segundos - disse Grover. - Corremos agora? Annabeth surgiu com uma bola de borracha vermelha do tamanho de uma grapefruit. A etiqueta dizia PARQUE AQUÁTICO AQUALÂNDIA – DENVER, COLORADO. Antes que eu pudesse impedi-a, ergueu a bola e marchou na direção de Cérbero. Ela gritou: - Está vendo a bola? Quer a bola, Cérbero? Senta! Cérbero parecia tão perplexo quanto nós. As três cabeças se inclinaram de lado. Seis narinas se dilataram. - Senta! - gritou Annabeth outra vez. Eu tinha certeza de que a qualquer momento ela se transformaria no maior biscoito para cachorro do mundo. Em vez disso, porém, Cérbero lambeu seus três pares de lábios, sacudiu o traseiro e sentou, esmagando imediatamente uma dúzia de espíritos que passavam por baixo dele na fila MORTE EXPRESSA. Os espíritos produziram um chiado abafado ao se dissipar, como ar escapando de pneus. - Bom menino! - disse Annabeth. E atirou a bola para Cérbero. Ela a agarrou com a boca do meio. A bola mal tinha tamanho suficiente para ele morder, e as outras cabeças começaram a avançar na do meio, tentando pegar o novo brinquedo. - Solta! - ordenou Annabeth.
As cabeças de Cérbero pararam de brigar e olharam para ela, A boIa estava presa entre dois dos seus dentes como um pedacinho de chiclete. Ele soltou um lamento alto e assustador, depois largou a bola, gosmenta e quase rasgada no meio, aos pés de Annabeth. - Bom menino. - Annabeth pegou a bola, ignorando a baba de monstro. Ela se virou para nós. - Vão, agora. Fila da MORTE EXPRESSA... essa anda mais rápido. - Mas... - argumentei. - Agora! - ordenou ela, no mesmo tom que estava usando com o cão. Grover e eu avançamos devagarzinho, cautelosos. Cérbero começou a rosnar. - Fica! - ordenou Annabeth ao monstro. - Se quer a bola, fica! Cérbero ganiu, mas ficou onde estava. - E você? - perguntei a Annabeth quando passamos por ela. - Sei o que estou fazendo, Percv - murmurou ela. - Pelo menos, tenho quase certeza... Grover e eu seguimos por entre as pernas do monstro. Por favor, Annabeth, eu rezei. Não o mande sentar de novo. Conseguimos passar. Cérbero não era menos assustador visto de trás. - Bom cachorro! - disse Annabeth. Ela ergueu a bola vermelha esfrangalhada e, provavelmente, chegou à mesma conclusão que eu - se recompensasse Cérebro, não restaria nada para mais um truque. Assim mesmo, ela jogou a bola. A boca esquerda do monstro a agarrou imediatamente, só para ser atacada pela cabeça do meio enquanto a cabeça da direita gemia em protesto. Enquanto o monstro estava distraído, Annabeth marchou energicamente por baixo da barriga dele e juntou-se a nós perto do detector de metais. - Como fez aquilo? - perguntei, admirado. - Aula de adestramento - disse ela sem fôlego, e fiquei surpreso ao ver que havia lágrimas em seus olhos. - Quando eu pequena, na casa do meu pai, nós tínhamos um dobermann... - Não tem importância - disse Grover puxando minha camisa. - Vamos! Estávamos a ponto de disparar pela fila de MORTE EXPRESSA quando Cérbero gemeu de dar dó, com todas as três bocas. Annabeth parou. Cérbero arfava ansioso, a pequenina bola vermelha despedaçada em uma lagoa de baba a seus pés. - Bom menino - disse Annabeth, mas sua voz pareceu melâcolica e insegura. As cabeças do monstro se inclinaram, como se ele estivesse preocupado com ela. - Logo vou trazer uma bola nova para você – prometeu Annabeth, insegura. - Você quer?
O monstro choramingou. Eu não precisava falar língua de cachorro para saber que Cérbero ainda estava esperando a bola. - Bom cachorro. Venho logo visitar você. Eu... eu prometo. Annabeth virou-se para nós. —Vamos. Grover e eu passamos pelo detector de metais, que imediatamente soou e disparou a piscar luzes vermelhas. "Pertences não autorizados! Mágica detectada!" Cérbero começou a latir. Nós nos lançamos pelo portão MORTE EXPRESSA, o que disparou ainda mais alarmes, e corremos para dentro do Mundo Inferior. Alguns minutos depois, estávamos nos escondendo, sem fôlego, no tronco apodrecido de uma imensa árvore negra, enquanto os espíritos da segurança passavam correndo, berrando pela ajuda das Fúrias. Grover murmurou: - Bem, Percy, o que aprendemos hoje? - Que cães de três cabeças preferem bolas de borracha a pedaços de pau? - Não - disse Grover. - Aprendemos que seus planos são muito, muito ruins! Eu não tinha essa certeza. Talvez fosse o caso de eu e Annabeth termos tido a idéia certa. Mesmo ali, no Mundo Inferior, todo mundo - até mesmo os monstros - precisa de um pouco de atenção de vez em quando. Pensei nisso enquanto esperávamos que os ghouls passassem. Fingi que não vi Annabeth enxugar uma lágrima ao ouvir o lamento triste de Cérbero a distância, sentindo falta da nova amiga.
DEZENOVE – De certa forma, descobrimos a verdade. Imagine a maior aglomeração de gente que você já viu em um show, um campo de futebol lotado com um milhão de fãs. Agora imagine um campo um milhão de vezes maior do que esse, lotado, e imagine que a energia elétrica falhou e não há barulho, não há luz, nem aquelas bolas gigantes quicando por cima da multidão. Algo de trágico aconteceu nos bastidores. Uma massa sussurrante de gente fica simplesmente vagueando nas sombras sem direção, esperando um show que nunca vai começar. Se é capaz de imaginar isso, tem uma boa idéia de como são os Campos de Asfódelos. A grama preta tinha sido pisoteada por eras de pés mortos. Um vento morno e úmido soprava como o hálito de um pântano. Árvores negras - Grover me disse que eram choupos - cresciam em grupos aqui e ali. O teto da caverna era tão alto acima de nós que poderia passar por uma massa de nuvens de tempestade, a não ser pelas estalactites, que brilhavam em um cinza pálido e pareciam malvadamente pontudas. Tentei não imaginar que poderiam cair sobre nós a qualquer momento, mas havia várias delas salpicadas ao redor, que caíram e empalaram a si mesmas na grama preta. Acho que os mortos não precisavam se preocupar com pequenos riscos como ser espetados por estalactites do tamanho de foguetes. Annabeth, Grover e eu tentamos nos misturar com a multidão permanecendo de olho nos ghouls da segurança. Não pude deixar de procurar rostos familiares entre os espíritos de Asfódelos, mas é difícil olhar para os mortos. Seus rostos tremulam. Todos parecem ligeiramente zangados ou confusos. Eles até nos vêem e falam, mas a voz soa como trepidações, como o chiado de morcegos. Depois que eles percebem que você não consegue entendê-los, fecham a cara e se afastam. Os mortos não são assustadores. São apenas tristes. Arrastamo-nos, seguindo a fila de recém-chegados que serpenteava desde os portões principais em direção a uma grande tenda, negra com uma faixa que dizia: JULGAMENTOS PARA O ELÍSIO E PARA A DANAÇÃO ETERNA Bem-vindos, Recém-Falecidos! Do fundo da tenda saíam duas filas muito menores. À esquerda, espíritos flanqueados por espíritos maligno de segurança marchavam por um caminho pedregoso rumo aos Campos de Punição, que incandesciam e fumegavam a distância, uma vastidão desértica e rachada com rios de lava e campos minados, e quilômetros de arame farpado separando as diferentes áreas de tortura. Mesmo de longe, pude ver pessoas sendo perseguidas por cães infernais, queimadas na fogueira, forçadas a correr nuas por plantações de cactos ou ouvir música de ópera. Pude apenas distinguir uma colina minúscula com o vulto do tamanho de uma formiga de Sísifo lutando para empurrar sua pedra até o topo. E vi também torturas piores - coisas que nem quero descrever. A fila que vinha do lado direito do pavilhão dos julgamento era muito melhor. Dava num pequeno vale cercado de muros - uma comunidade com portões, que parecia ser a única parte feliz do Mundo Inferior. Além do portão de segurança havia belas casas de todos os períodos da história, vilas romanas, castelos medievais e mansões vitorianas. Flores de prata e ouro floresciam nos campos. A grama ondulava nas cores do arco-íris. Dava para ouvir os risos e sentir o cheiro de churrasco. Elísio. No meio daquele vale havia um brilhante lago azul, com três pequenas ilhas como um hotel de lazer nas Bahamas. As Ilhas dos Abençoados, para pessoas que escolheram renascer três vezes, e três
vezes conquistaram o Elísio. No mesmo instante eu soube que era para lá que queria ir quando morresse. - É isso mesmo - disse Annabeth como se estivesse lendo meus pensamentos. - Este é o lugar para os heróis. Mas percebi como havia poucas pessoas no Elísio, como era minúsculo em comparação com os Campos de Asfódelos ou até os Campos da Punição. Portanto, poucas pessoas se davam bem em suas vidas. Era deprimente. Deixamos o pavilhão dos julgamentos e nos aprofundamos mais nos Campos de Asfódelos. Ficou mais escuro. As cores se esvaíram das nossas roupas. As multidões de espíritos tagarelas começaram a rarear. Depois de alguns quilômetros de caminhada, passamos a ouvir guinchos familiares a distância. Agigantando-se longe estava um palácio de obsidiana negra, brilhante. Acima dos baluartes rodopiavam três criaturas escuras semelhantes a morcegos: as Fúrias. Tive a sensação de que nos aguardavam. - Talvez seja tarde demais para voltar atrás - disse Grover com tristeza. - Vai dar tudo certo. -Tentei parecer confiante. - Talvez devêssemos procurar em alguns dos outros lugares primeiro - sugeriu Grover. - Como o EIísio, por exemplo... - Venha, menino-bode. - Annabeth agarrou-lhe o braço. Grover ganiu. Seus tênis criaram asas e as pernas saltaram para a frente, puxando-o para longe de Annabeth. Ele aterrissou de costas na grama. - Grover - ralhou Annabeth. - Pare de embromar. - Mas eu não... Ele ganiu de novo. Os tênis estavam agora batendo as asas como loucos. Levitaram do chão e começaram a arrastá-lo para longe de nós. - Maia! - gritou ele, mas a palavra mágica parecia não fazer mais efeito. - Maia, agora mesmo! Um-nove-zero! Socorro! Eu me refiz da perplexidade e tentei agarrar a mão de Grover, mas era tarde demais. Ele estava ganhando velocidade, escorregando colina abaixo como um trenó. Corremos atrás dele. Annabeth gritou: - Desamarre os tênis! Foi uma idéia esperta, mas acho que isso não é tão fácil quando os seus sapatos o estão arrastando para a frente a toda velocidade. Grover tentou sentar, mas não conseguiu alcançar os cadarços. Continuamos correndo atrás dele, tentando mantê-lo à vista enquanto disparava por entre as pernas dos espíritos que matraqueavam para ele, aborrecidos. Eu tinha certeza de que Grover iria passar direro dos portões do palácio de Hades, mas de repente os tênis desviaram para a direita e o arrastaram na direção oposta.
A ladeira ficou mais íngreme. Grover ganhou velocidade. Annabeth e eu tivemos de correr a toda para acompanhá-lo. As paredes da caverna se estreitaram dos dois lados, e me dei conta de que estávamos entrando em algum tipo de túnel lateral. Não havia mais grama preta nem árvores, apenas pedras sob os pés, e a luz pálida das estalactites acima. - Grover! - gritei, minha voz reverberando. - Segure em alguma coisa! - O quê? - gritou ele de volta. Estava agarrando os pedregulhos, mas não havia nada grande o bastante para reduzir sua velocidade. O túnel ficou mais escuro e frio. Os pêlos dos meus braços se arrepiaram. O cheiro ali embaixo era nauseabundo. Me fez pensar em coisas que nem devia saber — sangue derramado sobre um antigo altar de pedra, o hálito fétido de um assassino. Então vi o que estava à nossa frente e, de repente, estanquei. O túnel se alargava para uma enorme caverna escura, e no meio havia um abismo do tamanho de um quarteirão da cidade. Grover estava escorregando direto para a borda. - Venha, Percy! - gritou Annabeth, puxando-me pelo pulso. - Mas aquilo... - Eu sei! - gritou ela. - O lugar que você descreveu de seu sonho! Mas Grover vai cair se não o pegarmos. - Ela estava certa, é claro. O apuro de Grover fez com que me mexesse de novo. Ele estava gritando, arranhando o chão, mas os tênis alados continuavam a arrastá-lo em direção ao poço, e não parecia possível chegar até ele a tempo. O que o salvou foram seus cascos. Os tênis voadores sempre ficaram folgados nele, e quando Grover chocou-se com uma grande pedra, seu tênis esquerdo saiu voando e disparou para as trevas, abismo abaixo. O tênis direito continuou a puxá-lo, mas não tão depressa. Grover consegui reduzir a velocidade agarrando-se à grande pedra e usando-a como âncora. Estava a três metros da borda do abismo quando nós pegamos e o puxamos de volta ladeira acima. O outro tênis alado se desprendeu, circulou em volta de nós furiosamente e chutou nossas cabeças em protesto antes de voar para dentro do abismo a fim de juntar-se a seu par. Todos desabamos exaustos sobre os pedregulhos de obsidiana. Meus membros pareciam feitos de chumbo. Até minha mochila parecia mais pesada, como se alguém a tivesse enchido de pedras. Grover estava muito arranhado. Suas mãos sangravam. As pupilas dos olhos se transformaram em fendas, no estilo dos bodes como sempre acontecia quando ele estava aterrorizado. - Eu não sei como... - arquejou ele. - Eu não... - Espere - falei. - Escute. Eu tinha ouvido algo. Um sussurro profundo na escuridão. Mais alguns segundos, e Annabeth disse: - Percy, este lugar...
- Psiu. - Fiquei em pé. O som estava ficando mais alto, uma voz murmurante, malévola, vinda de longe, muito longe abaixo de nós. Vinda do abismo. Grover sentou-se. - O... o que é esse ruído? Agora Annabeth também ouvira. Pude ver em seus olhos. - Tártaro. A entrada para o Tártaro. Destampei Anaklusmos. A espada de bronze se expandiu, brilhando no escuro, e a voz. maligna pareceu vacilar, só por um momento, antes de retomar seu canto. Eu agora quase conseguia distinguir palavras, palavras muito, muito antigas, ainda mais antigas que o grego. Como se... - Mágica - falei. - Temos de dar o fora daqui - disse Annabeth. Juntos, arrastamos Grover para cima dos cascos e começamos a voltar pelo túnel. Minhas pernas não se moviam depressa o bastante. Minha mochila pesava. A voz ficou mais alta e irada atrás de nós, e desandamos a correr. Bem na hora. Uma rajada fria de vento nos aspirou pelas costas, como se o abismo inteiro estivesse inalando. Por um momento aterronzante eu perdi o controle, e meus pés começaram a escorregar nos pedregulhos. Se estivéssemos mais perto da borda, teríamos sido sugados para dentro. Continuamos fazendo força para a frente e finalmente chegamos ao topo do túnel, onde a caverna se abria para os Campos de Asfódelos. O vento parou. Um lamento de indignação ecoou no fundo. Alguma coisa não estava feliz por termos escapado. - O que era aquilo? — ofegou Grover quando desabamos na relativa segurança de um bosque de choupos negros, - Um dos bichinhos de estimação de Hades? Annabeth e eu nos entreolhamos. Eu podia ver que ela acalentava uma ideia, provavelmente a mesma que tivera durante a viagem de táxi a Los Angeles, mas estava apavorada demais para dividi-la comigo. Isso já era o bastante para me aterrorizar. Pus a tampa na minha espada, pus a caneta de volta no bolso. - Vamos andando. - Olhei para Grover. - Consegue andar? Ele engoliu em seco. - Sim, com certeza. Nunca gostei muito daqueles tênis mesmo. Ele tentou parecer valente, mas estava tremendo tanto quanto Annabeth e eu. O que quer que estivesse naquele abismo, não era bichinho de estimação de ninguém. Era indizivelmente velho e poderoso. Nem mesmo Equidna me dera aquela sensação. Fiquei quase aliviado de dar as costas para aquele túnel e me dirigir para o palácio de Hades. Quase. ***** As Fúrias rodeavam os baluartes, lá no alto, nas trevas. As muralhas externas da fortaleza brilhavam em negro e os portões de bronze com dois andares de altura estavam escancarados.
De perto, vi que as gravações nos portões eram cenas de morte. Algumas de tempos modernos - uma bomba atómica explodindo sobre uma cidade, uma trincheira cheia de soldados usando máscaras de gás, uma fila de africanos vítimas da fome aguardando com tigelas vazias -, mas todas pareciam ter sido gravadas no bronze havia milhares de anos. Fiquei pensando se estava olhando para profecias que se tornaram realidade. Dentro do pátio havia o jardim mais estranho que já vi. Cogumelos multicoloridos, arbustos venenosos e plantas luminosas fantasmagóricas cresciam sem a luz do sol. Gemas preciosas supriam a falta de flores, pilhas de rubis grandes como meu punho, aglomerados de diamantes brutos. Aqui e ali, como convidados de uma festa que foram congelados, havia estátuas de jardim da Medusa - crianças, sátiros e centauros petrificados - todos sorrindo grotescamente. No centro do jardim havia um pomar de romãzeiras, suas flores alaranjadas brilhando como néon no escuro. - O jardim de Perséfone - disse Annabeth. - Continue andando. Entendi por que ela quis seguir andando. O cheiro ácido daquelas romãs era quase irresistível. Tive um súbito desejo de comê-las, mas então me lembrei da história de Perséfone. Uma mordida de um alimento do Mundo Inferior e nunca mais poderíamos sair. Puxei Grover para longe, para impedi-lo de colher uma delas, grande e suculenta. Subimos os degraus do palácio, entre colunas negras, passando por um pórtico de mármore negro, para dentro da casa de Hades. O vestíbulo tinha um piso de bronze polido que parecia ferver à luz refletida das tochas. Não havia teto, apenas o teto da caverna muito acima. Acho que eles nunca precisaram se preocupar com chuva aqui embaixo. Todas as portas laterais eram guardadas por um esqueleto com trajes militares. Alguns usavam armaduras gregas, outros, uniformes ingleses de casacas vermelhas, e havia ainda os que vestiam roupas camufladas com bandeiras americanas esfarrapadas nos ombros. Carregavam lanças, mosquetes ou fuzis. Nenhum deles nos incomodou, mas suas órbitas ocas nos seguiram enquanto andávamos pelo vestíbulo em direção ao grande conjunto de portas no extremo oposto.
Dois esqueletos de fuzileiros navais americanos guardavam as portas. Eles sorriram para nós, com lançadores de granadas atravessadas no peito. - Sabem de uma coisa - murmurou Grover -, aposto que Hades não tem problemas para despachar vendedores de porta a porta. Minha mochila agora pesava uma tonelada. Eu não conseguia imaginar por quê. Quis abri-la, verificar se por acaso havia colhido alguma bola de boliche perdida, mas aquele não era o momento. - Bem, gente - disse. - Acho que devemos... bater? Um vento quente soprou pelo corredor e as portas se abriram. Os guardas deram um passo para o lado. - Acho que isso significa entrez-vous - disse Annabeth. Lá dentro a sala era exatamente como em meu sonho, só que dessa vez o trono de Hades estava ocupado. Era o terceiro deus que eu conhecia, mas o primeiro que realmente me impressionava como deus. Para início de conversa, ele tinha pelo menos três metros de altura, e usava mantos de seda preta e uma coroa de ouro trançado. Sua pele era branca como a de um albino, o cabelo comprido até os ombros era preto-azeviche. Não era corpulento como Ares, mas irradiava força. Reclinava-se em seu trono de ossos humanos fundidos parecendo flexível, elegante e perigoso como uma pantera.
No mesmo instante tive a sensação de que ele deveria dar as ordens. Sabia mais do que eu. Devia ser meu mestre. Então disse a mim mesmo para dar o fora. A aura de Hades estava me afetando, assim como acontecera com a de Ares. O Senhor dos Mortos lembrava retratos que eu tinha visto de Adolf Hitler, ou Napoleão, ou dos líderes terroristas que controlam os homens-bomba. Hades tinha o mesmo olhar intenso, o mesmo tipo de carisma hipnotizador e maligno. - Você é corajoso de vir até aqui, Filho de Poseidon - disse ele com uma voz untuosa. - Depois do que me fez, você é muito valente, sem dúvida. Ou talvez seja simplesmente muito tolo. Um entorpecimento se insinuou nas minhas juntas, tentando-me a deitar e tirar uma pequena soneca aos pés de Hades. Queria me enroscar ali e dormir para sempre. Lutei contra a sensação e dei um passo à frente. Sabia o que tinha de dizer. - Senhor e tio, trago dois pedidos. Hades ergueu uma sobrancelha. Quando ele chegou mais para a frente em seu trono, rostos sombrios apareceram nas dobras dos seus mantos negros, rostos atormentados, como se o traje fosse feito de almas dos Campos da Punição pegas ao tentar escapar, costuradas umas nas outras. Minha porção transtorno do déficit de atenção se perguntou se o resto das roupas dele era feito do mesmo modo. Que coisas horríveis alguém teria de fazer em vida para merecer ser parte da roupa de baixo de Hades? - Só dois pedidos? - disse Hades. - Criança arrogante. Como se você já não tivesse recebido o bastante. Fale, então. Acho divertido esperar um pouco para fulminar você. Engoli em seco. Aquilo estava indo mais ou menos tão bem quanto eu temia. Relanceei para o trono menor, vazio, ao lado do de Hades. Tinha a forma de uma flor negra, decorada em ouro. Desejei que a rainha Perséfone estivesse ali. Lembrei-me de algo nos mitos sobre como ela podia acalmar os humores do marido. Mas era verão. É claro que Perséfone estaria acima no mundo de luz com mãe, a deusa da agricultura, Demeter. Suas visitas, e não a inclinação do planeta, criavam as estações. Annabeth pigarreou. Seu dedo me cutucou nas costas. - Senhor Hades - disse eu. - Olhe, senhor, não pode haver uma guerra entre os deuses. Isso seria... ruim. - Realmente ruim - acrescentou Grover, querendo ajudar. - Devolva o raio-mestre de Zeus para mim - disse eu. Por favor, senhor, deixe-me levá-lo para o Olimpo. Os olhos de Hades brilharam perigosamente. - Você se atreve a continuar com essa farsa, depois de tudo o que fez? Dei uma olhada para os meus amigos atrás de mim. Pareciam tão confusos quanto eu. - Ahn... tio - falei. - Você fica dizendo "depois de tudo oque você fez". O que foi, exatamente, que eu fiz? A sala do trono tremeu com tanta força que, provavelmente, o impacto foi sentido lá em cima, em Los Angeles. Fragmentos de rocha caíram do teto da caverna. Portas se abriram violentamente em todas as paredes, e guerreiros esqueléticos marcharam para dentro, centenas deles, de todas as épocas e nações da civilizaição ocidental. Enfileiraram-se nos quatro cantos da sala, bloquendo as saídas. Hades urrou: - Você acha que eu quero a guerra, filhote de deus?
Tive vontade de dizer, Bem, esses caras não se parecem muito com ativistas pela paz. Mas achei que poderia ser uma resposta perigosa. - Você é o Senhor dos Mortos - falei com cautela. - Uma guerra iria expandir seu remo, certo? - E bem característico dos meus irmãos dizerem uma coisa dessas! Acha que preciso de mais súditos? Não está vendo a grandeza dos Campos de Asfódelos? - Bem... - Você tem idéia de quanto meu reino inchou só neste último século, quantas subdivisões tive de criar? - Abri a boca para responder, mas Hades agora estava embalado. - Mais espíritos de segurança - queixou-se. - Problemas de trânsito no pavilhão de julgamentos. Horas extras em dobro para o pessoal. Eu era um deus rico, Percy Jackson. Controlo todos os metais preciosos embaixo da terra. Mas as minhas despesas! - Caronte quer um aumento de salário - despejei, acabando de me lembrar do fato. Assim que falei, pensei que perdera uma ótima chance de ficar calado. - Não me fale de Caronte! - gritou Hades. - Ele está impossível desde que descobriu os ternos italianos! Problemas em toda parte, e eu tenho de lidar com todos eles pessoalmente. O tempo de viagem entre o palácio e os portões já é suficiente para me deixar insano! E os mortos continuam chegando. Não, filhote de deus, eu não preciso de ajuda para arranjar súditos! Não pedi essa guerra. - Mas você pegou o raio-mestre de Zeus. - Mentiras! - Mais estrondos. Hades ergueu-se do trono, ficando da altura de uma trave de futebol. - Seu pai pode enganar Zeus, menino, mas eu não sou tão estúpido. Enxergo o plano dele. - O plano dele? - Você foi o ladrão no solstício de inverno - disse ele. - Seu pai pensou em mantê-lo como seu pequeno segredo. Ele o man dou para a sala do trono no Olimpo. Você pegou o raio-mestre e meu elmo. Se eu não tivesse enviado minha Fúria para descobri-lo na Academia Yancy, Poseidon talvez tivesse conseguido escon der o plano para desencadear uma guerra. Mas agora você foi forçado a aparecer. Será exposto como o ladrão de Poseidon, e eu terei meu elmo de volta! - Mas... - falou Annabeth. Pude perceber que a cabeça dela estava a um milhão de quilômetros por hora. - Senhor Hades, seu elmo das trevas também desapareceu? -Não banque a inocente comigo, menina. Você e o sátiro estiveram ajudando este herói, que veio aqui me ameaçar sem dúvida em nome de Poseidon, a me trazer um últimato. Poseidon acha que posso ser chantageado para apoiá-lo? - Não! - falei. - Poseidon não... eu não... -Não falei nada do desaparecimento do elmo - rosnou Hades - porque não tenho ilusões de que alguém no Olimpo me faça justiça, que me dê alguma ajuda. Não posso permitir que vaze a notícia de que minha arma mais poderosa está desaparecida. Portanto procurei por você eu mesmo, e quando ficou claro que você vinha a mim para fazer sua ameaça, não tentei detê-lo. - Você não tentou nos deter? Mas... - Devolva meu elmo agora, ou vou interromper a morte - ameaçou Hades. - Esta é a minha contraproposta. Abrirei a terra e mandarei os mortos se despejarem de volta em seu mundo. Transformarei suas terras em um pesadelo. E você, Percy Jackson... o seu esqueleto liderará o meu exército para fora do Hades. Todos os soldados esqueléticos deram um passo à frente, com as armas de prontidão.
A essa altura, eu deveria ter ficado aterrorizado. O estranho foi que eu me senti ofendido. Nada me deixa mais zangado do que ser acusado de algo que não fiz. Já tivera uma porção de experiências com isso. - Você é tão mau quanto Zeus - disse eu. - Acha que roubei você? E por isso que mandou as Fúrias atrás de mim? - É claro - disse Hades. - E os outros monstros? Hades franziu o lábio. - Não tive nada a ver com eles. Eu não queria uma morte rápida para você; queria você diante de mim, vivo, para enfrentar todas as torturas dos Campos da Punição. Por que acha que o deixei entrar no meu reino tão facilmente? - Facilmente? - Devolva o que me pertence! - Mas eu não tenho o seu elmo. Vim buscar o raio-mestre. - Que você já possui! - bradou Hades. - Você veio aqui com ele, pequeno idiota, achando que poderia me ameaçar! - Não é verdade! - Então abra a sua mochila. Um pensamento horrível me assaltou. O peso da minha mochila, como uma bola de boliche... Não podia ser... Tirei a mochila dos ombros e abri o zíper. Dentro havia um cilindro de metal de sessenta centímetros de comprimento, com uma ponta de cada lado, zumbindo de energia. - Percy - disse Annabeth. - Como... - Eu... eu não sei. Não entendo. - Vocês, heróis, são sempre iguais - disse Hades. - Seu orgulho os torna tolos, achando que podem trazer uma arma as sim diante de mim. Eu não pedi o raio de Zeus, mas já que ele está aqui, você o entregará a mim. Tenho certeza de que será um excelente instrumento de barganha. E agora... o meu elmo. Onde está? Eu estava sem fala. Não tinha elmo nenhum. Não tinha idéia de como o raio-mestre fora parar na minha mochila. Quis pensar que Hades estava armando algum tipo de truque. Hades era o vilão. Mas de repente o mundo virará de lado. Percebi que havia sido usado. Alguém fizera Zeus, Poseidon e Hades quererem a caveira um do outro. O raio-mestre estava na minha mochila, e eu recebera a mochila de... - Senhor Hades, espere - disse eu. - Isso tudo é um engano. - Um engano? - rugiu Hades. Os esqueletos apontaram as armas. Lá no alto houve um bater de asas coriáceas, e as três Fúrias voaram para baixo para empoleirar-se nas costas do trono do seu senhor. A que tinha as feições da sra. Dodds arreganhou um sorriso ávido para mim e estalou o seu chicote. - Não há engano nenhum - disse Hades. - Sei por que você veio, e sei a razão real por que trouxe o raio. Você veio negociar por ela.
Hades soltou uma bola de fogo dourado da palma de sua mão Ela explodiu nos degraus diante de mim, e lá estava a minha mãe congelada em uma chuva de ouro, exatamente como no momento em que o Minotauro começou a apertá-la até a morte. Não pude falar. Estendi a mão para tocá-la, mas a luz era quente como uma fogueira. - Sim - disse Hades com satisfação. - Eu a tomei. Eu sabia, Percy Jackson, que você por fim viria barganhar comigo. Devolva o meu elmo, e talvez eu a deixe ir. Ela não está morta, você sabe. Ainda não. Mas, se você me desagradar, isso irá mudar. Pensei nas pérolas no meu bolso. Talvez elas pudessem me safar daquilo. Se ao menos eu conseguisse libertar a minha mãe... - Ah, as pérolas - disse Hades, e meu sangue gelou. - Sim meu irmão e os seus truquezinhos. Apresente-as, Percy Jackson. Minha mão se moveu contra a vontade e eu apresentei as pérolas. - Apenas três - disse Hades. - Que pena. Você sabe que cada qual protege uma só pessoa. Tente levar a sua mãe, então filhotinho de deus. E qual dos seus amigos você deixará para trás para passar a eternidade comigo? Vá em frente. Escolha. Ou me dê a mochila e aceite as minhas condições. Olhei para Annabeth e Grover. Suas expressões eram soturnas. - Fomos enganados - disse-lhes. - Pegos numa armadilha. - Sim, mas por quê? - perguntou Annabeth. - E a voz no abismo... - Ainda não sei - disse eu. - Mas pretendo perguntar. - Decida, menino! - gritou Hades. - Percy. - Grover pôs a mão no meu ombro. - Você não pode lhe entregar o raio. - Eu sei disso. - Deixe-me aqui - disse ele. - Use a terceira pérola par; a sua mãe. - Não! - Eu sou um sátiro - disse Grover. - Nós não temos almas como os seres humanos. Ele pode me torturar até a morte, mas não ficará comigo para sempre. Eu reencarnarei em uma flor, ou alguma outra coisa. É o melhor jeito. - Não. - Annabeth sacou a sua faca de bronze. - Vocês dois continuam. Grover, você tem de proteger Percy. Você tem de conseguir a sua licença de buscador e começar a sua missão por Pan. Tire a mãe dele para fora daqui. Eu lhes darei cobertura. Planejo cair lutando. - Nem pensar - disse Grover. - Eu vou ficar para trás. - Pense de novo, menino-bode - disse Annabeth. - Parem, vocês dois! - Era como se o meu coração estivesse sendo rasgado ao meio. Ambos passaram por tanta coisa comigo. Lembrei-me de Grover bombardeando a medusa no jardim de estátuas, e de Annabeth nos salvando de Cérbero; nós sobrevivemos ao Parque Aquático de Hefesto, ao Arco de St. Louis, ao Cassino Lótus. Passei milhares de quilômetros preocupado porque seria traído por um amigo, mas aqueles amigos jamais fariam isso. Eles não fizeram nada a não ser me salvar, vezes e vezes seguidas, e agora queriam sacrificar suas vidas pela minha mãe.
- Eu sei o que fazer - disse eu. - Segurem isto. Entreguei uma pérola a cada um deles. Annabeth disse: - Mas, Percy... Virei-me e encarei minha mãe. Queria desesperadamente me sacrificar e usar a última pérola para ela, mas sabia o que ela iria dizer. Ela jamais permitiria isso. Eu tinha de levar o raio de volta para o Olimpo e contar a verdade a Zeus. Tinha de impedir a guerra. Ela jamais me perdoaria se eu a salvasse em vez disso. Pensei na profecia feita na Colina Meio-Sangue, que parecia ter sido um milhão de anos atrás. No fim você não conseguirá salvar aquilo que mais importa. - Desculpe - disse a ela. - Eu voltarei. Vou encontrar um jeito. A expressão presunçosa na cara de Hades se apagou. Ele disse: - Filhote de deus...? - Vou encontrar o seu elmo, tio - disse a ele. - Vou devolvê-lo. Lembre-se do aumento de salário de Caronte. - Não me desafie... - E não faria mal brincar com Cérbero de vez em quando. Ele gosta de bolas de borracha vermelhas. - Percy Jackson, você não vai... Eu gritei: - Agora! Esmagamos as pérolas aos nossos pés. Por um momento apavorante, nada aconteceu. Hades gritou: - Destruam-nos! O exército de esqueletos avançou, espadas desembainhadas fuzis engatilhados no modo totalmente automático. As Fúrias mergulharam, os chicotes explodindo em chamas. Exatamente quando os esqueletos abriram fogo, os fragmentos; de pérola aos meus pés explodiram em luz verde e uma rajada de ar fresco do mar. Eu fui encapsulado em uma esfera branca leitosa que começava a flutuar para fora do chão. Annabeth e Grover estavam bem atrás de mim. Lanças e balas centelharam inofensivamente nas bolhas de pérola enquanto flutuávamos para cima. Hades gritou com tamanha raiva que a fortaleza inteira se sacudiu e eu soube que aquela não seria uma noite tranqüila em Los Angeles. - Olhem para cima! - gritou Grover. -Vamos bater! Sem dúvida, estávamos indo direto para as estalactites, as quais imaginei que iriam estourar as nossas bolhas e nos espetar. - Como se controla essas coisas? - gritou Annabeth. - Acho que não se controla! - gritei de volta. Gritamos quando as bolhas colidiram com o teto e... Escuridão. Será que estávamos mortos?
Não, eu ainda tinha a sensação de velocidade. Estávamos indo para cima, através da rocha sólida, tão facilmente quanto uma bolha de ar na água. Aquele era o poder das pérolas, eu me dei conta - o que pertence ao mar sempre retornará ao mar. Por alguns momentos, não vi nada além das paredes macias da minha esfera, então minha pérola irrompeu no fundo do oceano. As outras duas esferas leitosas, Annabeth e Grover, me acompanharam enquanto disparávamos para cima através da água. E... pimba! Explodimos na superfície, no meio da baía de Santa Monica, jogando um surfista para fora da sua prancha com um indignado "Ei, cara!". Agarrei Grover e o arrastei até uma bóia salva-vidas. Peguei Annabeth e a arrastei também. Um tubarão curioso dava voltas em torno de nós, um grande tubarão branco com cerca de três metros e meio de comprimento. Eu disse: - Cai fora! O tubarão se virou e fugiu apressado. O surfista gritou alguma coisa sobre cogumelos estragados e se afastou de nós patinhando o mais rápido que podia. De algum modo, eu sabia que horas eram: início da manhã, 21 de junho, o dia do solstício de verão. A distância, Los Angeles estava em chamas, nuvens de fumaça subindo de bairros por toda a cidade. Tinha havido um terremoto sem dúvida, e a culpa era de Hades. Provavelmente estava mandando um exército de mortos atrás de mim naquele instante. Mas, naquele momento, o Mundo Inferior não era o meu maior problema. Eu tinha de chegar até a praia. Tinha de levar o raio de Zeus de volta para o Olimpo. Mais que tudo, eu precisava ter uma conversa séria com o deus que me enganara.
VINTE – A luta contra o meu parente imbecil.
Um barco da Guarda Costeira nos recolheu, mas eles estavam ocupados demais para ficar conosco por muito tempo, ou para querer saber por que três crianças com roupas casuais foram parar no meio da baía. Havia um desastre para cuidar. Seus rádios estavam entupidos de chamados de emergência. Eles nos largaram no píer Santa Monica com toalhas em volta dos ombros e garrafas d'água que diziam EU SOU UM GUARDA-COSTEIRO MIRIM! e saíram às pressas para salvar mais gente. Nossas roupas estavam encharcadas, inclusive as minhas. Quando o barco da Guarda Costeira apareceu, eu implorei baixinho que eles não me tirassem da água e me achassem perfeitamente seco, o que teria feito algumas sobrancelhas se erguerem. Então desejei ficar encharcado. Sem dúvida, minha mágica à prova d'água me abandonara. Eu também estava descalço, porque entregara meus sapatos a Grover. Era melhor a Guarda Costeira se perguntar por que um de nós estava descalço do que se perguntar por que um de nós tinha cascos. Depois de chegar a terra firme, saímos cambaleando pela praia vendo a cidade queimar contra um lindo pôr-do-sol. Era como se tivesse acabado de retornar do mundo dos mortos — o que era verdade. Minha mochila estava pesada, com o raio-mestre de Zeus. Meu coração estava ainda mais pesado por ter visto minha mãe. - Eu não acredito - disse Annabeth. - A gente passou por tudo aquilo e... - Foi um truque - disse eu. - Uma estratégia digna de Atena. - Ei - avisou. - Você entendeu, não é? Ela baixou os olhos, a raiva murchou. - Sim. Entendi. - Bem, eu não entendi! - reclamou Grover. - Será que alguém poderia... - Percy... - disse Annabeth. - Eu sinto muito pela sua mãe. Sinto tanto... Fiz que não estava ouvindo. Se eu falasse sobre a minha mãe, ia começar a chorar como uma criancinha. - A profecia estava certa - disse eu. - "Você deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal". Mas não era Hades. Hades não queria guerra entre os Três Grandes. Algum outro executou o roubou. Alguém roubou o raio-mestre de Zeus, e o elmo de Hades, e tramou contra mim porque sou filho de Poseidon. Poseidon será culpado por ambos os lados. Ao pôr-do-sol de hoje, haverá uma guerra tríplice. E eu a terei causado. Grover sacudiu a cabeça, desconcertado. - Mas quem seria tão fingido? Quem iria querer uma guerra tão ruim? Parei bruscamente, olhando para a praia. - Puxa, deixem-me pensar. Ali estava ele, aguardando por nós, em seu casaco preto de couro, e óculos escuros, um bastão de beisebol de alumínio ao ombro. A motocicleta roncava ao seu lado, o farol deixando a areia vermelha. - Ei, garoto - disse Ares, parecendo genuinamente contente em me ver. - Você devia estar morto. - Você me enganou - disse eu. - Você roubou o elmo e o raio-mestre.
Ares arreganhou um sorriso. - Bem, mas eu não os roubei pessoalmente. Deuses tirando símbolos de poder uns dos outros, nã-nã-nã, isso é inaceitável. Mas você não é o único herói do mundo que pode dar recados. - Quem você usou? Clarisse? Ela estava lá no solstício de inverno. A idéia pareceu diverti-lo. - Não importa. A questão, garoto, é que você está impedindo o esforço de guerra. Entenda, você precisa morrer no Mundo Inferior. Então o Velho Alga do Mar vai ficar furioso com Hades por matá-lo. O Hálito de Cadáver ficará com o raio-mestre de Zeus, e assim Zeus ficará furioso com ele. E Hades ainda está pro-curando por isto... Ele tirou do bolso um capuz de esqui - do tipo que os ladrões de banco usam - e o colocou no meio do guidão da sua moto. Imediatamente, o capuz se transformou em um elaborado capacete de guerra em bronze. - O elmo das trevas - arfou Grover. - Exatamente - disse Ares. - Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, Hades ficará furioso com ambos, Zeus e Poseidon, porque ele não sabe quem pegou isto. Logo logo teremos uma bela pancadariazinha tríplice em andamento. - Mas eles são a sua família! - protestou Annabeth. Ares encolheu os ombros. - O melhor tipo de guerra. Sempre a mais sangrenta. Nada como ficar olhando seus parentes lutarem, eu sempre digo. - Você me deu a mochila em Denver - disse eu. - O raio-mestre estava lá o tempo todo. - Sim e não - disse Ares. - Provavelmente é complicado demais para o seu pequeno cérebro mortal acompanhar, mas a mochila é a bainha do raio-mestre, apenas um pouco adaptada. O raio está conectado a ela, tipo aquela sua espada, garoto. Ela sempre volta para o seu bolso, certo? Não estava bem certo de como Ares sabia disso, mas acho que um deus da guerra precisa tratar de conhecer tudo sobre armas. - De qualquer modo - continuou Ares - eu modifiquei a mágica um pouquinho, para que o raio só retornasse à bainha depois de você chegar ao Mundo Inferior. Chegou perto de Hades... Bingo! Você recebeu um e-mail. Se você morresse no caminho, não haveria perda. Eu ainda teria a arma. - Mas por que você simplesmente não ficou com o raio para você? - disse eu. - Por que mandá-lo para Hades? O queixo de Ares crispou-se. Por um momento, foi quase como se ele estivesse ouvindo uma outra voz, bem no fundo da cabeça. - Por que eu não... sim... com esse tipo de poder de fogo... Ele manteve o transe por um segundo... dois segundos... Troquei olhares nervosos com Annabeth. A cara de Ares clareou. - Porque eu não queria ter problemas. Melhor você ser pego em flagrante, segurando a coisa.
- Você está mentindo - disse eu. - Mandar o raio para o Mundo Inferior não foi idéia sua, foi? - É claro que foi! - Fumaça escapou por baixo dos seus óculos escuros, como se eles estivessem a ponto de pegar fogo. - Você não ordenou o roubo - adivinhei. - Alguém mais enviou um herói para roubar os dois itens. Então, quando Zeus mandou você caçá-lo, você pegou o ladrão. Mas você não o entregou a Zeus. Alguma coisa o convenceu a deixá-lo ir. Você guardou os itens até que outro herói pudesse vir e completar a entrega. Aquela coisa no abismo está dando ordens a você. - Eu sou o deus da guerra! Não aceito ordens de ninguém! Eu não tenho sonhos! Eu hesitei. - Quem foi que disse alguma coisa sobre sonhos? Ares pareceu agitado, mas tentou encobrir isso com um sorriso forçado. - Vamos voltar ao problema em pauta, garoto. Você está vivo. Eu não posso deixar que leve aquele raio para o Olimpo. Pode ser que consiga convencer aqueles idiotas cabeças-duras a ouvi-lo. Portanto preciso matá-lo. Não é nada pessoal. Ele estalou os dedos. A areia explodiu aos seus pés e surgiu um javali feroz investindo, ainda maior e mais feio que aquele cuja cabeça estava pendurada acima da porta do chalé 7 do Acampamento Meio-Sangue. A besta escarvou a areia, olhando furiosamente para mim com olhos pequenos e brilhantes enquanto abaixava os presas afiadas como navalhas e aguardava a ordem para matar. Eu entrei na arrebentação. - Enfrente-me você mesmo, Ares. Ele riu, mas ouvi um pouco de tensão na sua risada... um certo constrangimento. - Você só tem um talento, garoto, que é fugir. Você fugiu da Quimera. Você fugiu do Mundo Inferior. Não tem coragem para me enfrentar. - Com medo? - Só nos seus sonhos de adolescente. - Mas seus óculos escuros estavam começando a derreter com o calor dos olhos. - Nada de envolvimento direto. Sinto muito, garoto. Você não está no meu nível. Annabeth disse: - Percy, corra! O javali gigante atacou. Mas eu já estava cansado de correr de monstros. Ou de Hades, ou de Ares, ou de qualquer um. Quando o javali investiu contra mim, eu destampei minha caneta e dei um passo para o lado. Contracorrente apareceu nas minhas mãos. Dei um golpe para cima. A presa direita decepada do javali caiu aos meus pés, enquanto o animal desorientado investia contra o mar. Eu gritei: - Onda! Imediatamente uma onda surgiu do nada e engolfou o javali, enrolando-se nele como um cobertor. A besta guinchou uma vez, aterrorizada. E então se foi, engolida pelo mar.
Voltei-me novamente para Ares. - Você vai lutar comigo agora? - perguntei. - Ou vai se esconder de novo atrás de um porquinho de estimação? A cara de Ares estava roxa de raiva. - Tome cuidado, garoto. Eu poderia transformá-lo em... - Uma barata - disse eu. - Ou uma lombriga. Sim, eu tenho certeza. Isso o salvaria de ter o seu divino couro chicoteado, não é mesmo? Chamas dançaram por cima dos seus óculos. - Ah, você realmente está pedindo para ser esmagado até virar uma poça de gordura. - Se eu perder, me transforme no que quiser. Fique com o raio. Se eu vencer, o elmo e o raio são meus, e você tem de ir embora. Ares me olhou com uma expressão de escárnio. Ele brandiu o bastão de beisebol que trazia ao ombro. - Como gostaria de ser esmagado: modo clássico ou moderno? Eu lhe mostrei a minha espada. - Legal, menino morto - disse ele. - Modo clássico então. - O bastão de beisebol transformou-se em uma enorme espada de duas mãos. A guarda era uma grande caveira de prata com um rubi na boca. - Percy - disse Annabeth. - Não faça isso. Ele é um deus. - Ele é um covarde - disse eu para ela. Ela engoliu em seco. - Use isto pelo menos. Para dar sorte. Ela tirou o seu colar, com cinco anos de contas do acampamento e o anel do pai dela e colocou em volta do meu pescoço. - Reconciliação - disse ela. - Atena e Poseidon juntos. Meu rosto ficou um pouco quente, mas consegui sorrir. - Obrigado.
- E pegue isto - disse Grover. Ele me entregou uma lata achatada que parecia estar no seu bolso há mil quilômetros. - Os sátiros lhe dão respaldo. - Grover... eu não sei o que dizer. Ele me deu uma palmadinha no ombro. Enfiei a lata no meu bolso de trás. - Vocês já se despediram? - Ares veio em minha direção, o comprido casaco de couro preto se arrastando atrás dele, a espada faiscando como fogo ao nascer do sol. - Eu venho lutando há uma eternidade, garoto. Minha força é ilimitada e eu não posso morrer. O que você tem? Um ego menor, pensei, mas não disse nada. Mantive os pés na arrebentação, recuando na água até os tornozelos. Pensei no que Annabeth havia dito no restaurante de Denver, tanto tempo atrás: Ares tem força. É tudo o que ele tem. Mesmo a força às vezes tem de se curvar à sabedoria.
Ele desceu a espada, tentando rachar ao meio a minha cabeça, mas eu não estava lá. Meu corpo pensava por mim. A água pareceu me empurrar para o ar e eu me lancei para cima dele, golpeando para o lado com a espada ao descer. Mas Ares foi igualmente rápido. Torceu o corpo e o golpe que deveria tê-lo pego diretamente na espinha foi desviado para fora pela guarda da sua espada. Ele sorriu. - Nada mau, nada mau. Ele atacou de novo e fui forçado a pular para a terra seca. Tentei sair de lado, para voltar à água, mas Ares parecia saber o que eu queria. Ele foi mais habilidoso, me pressionando tanto que tive de me concentrar totalmente em não ser cortado em pedaços. Continuei recuando para longe da arrebentação. Não conseguia achar nenhuma abertura para atacar. O alcance da espada- dele era bem maior que o de Anaklusmos. Chegue perto, Luke me dissera uma vez, em nossa aula de esgrima. Quando a sua lâmina é a mais curta, chegue perto. Avancei com uma estocada, mas Ares estava esperando por isso. Ele arrancou a espada das minhas mãos e me chutou no peito. Eu saí voando — cinco, talvez dez metros.Teria quebrado as costas se não tivesse desabado sobre a areia fofa de uma duna. - Percy! - gritou Annabeth. - Polícia! Estava vendo tudo dobrado. Parecia que o meu peito tinha sido atingido por um aríete, mas consegui me pôr em pé. Eu não podia desviar os olhos de Ares por medo de que ele me cortasse ao meio, mas com o canto do olho vi as luzes vermelhas piscando na avenida beira-mar. Portas de carros batiam. - Ali, guarda! - gritou alguém. - Está vendo? Uma voz brusca de policial: - Parece aquele garoto da tevê... que diabo... - Aquele cara está armado - disse outro policial. - Peça reforços. Rolei para o lado e a lâmina de Ares cortou a areia. Corri para a minha espada, peguei-a e desferi um golpe contra o rosto de Ares, apenas para ver a minha lâmina desviada de novo. Ares parecia saber exatamente o que eu ia fazer um momento antes. Recuei para a arrebentação, forçando-o a me seguir. - Admita, garoto - disse Ares. - Você está perdido. Estou só brincando com você. Meus sentidos estavam fazendo hora extra. Agora eu entendia o que Annabeth dissera sobre como o transtorno do déficit de atenção pode manter você vivo na batalha. Eu estava totalmente desperto, notando cada pequeno detalhe. Eu podia ver onde Ares estava se retesando. Podia dizer de que lado ia atacar. Ao mesmo tempo, tinha consciência de Annabeth e Grover, dez metros à minha esquerda. Vi uma segunda viatura parando, a sirene uivando. Espectadores, pessoas que perambula viam pelas ruas por causa do terremoto, começavam a se juntar.
No meio da multidão, pensei ver alguns andando com aquele estranho passo de trote de sátiros disfarçados. Havia também vultos rebrilhantes de espíritos, como se os mortos tivessem se erguido do Hades para assistir à batalha. Ouvi o bater de asas coriáceas circulando em algum lugar acima. Mais sirenes. Avancei mais para dentro da água, mas Ares foi rápido. A ponta da sua espada rasgou a manga da minha roupa e roçou o meu antebraço. A voz de um policial no megafone disse: - Larguem as espingardas! Coloquem na areia. Agora! Espingardas? Olhei para a arma de Ares, e ela parecia estar tremeluzindo; às vezes parecia uma espingarda, às vezes uma espada de duas mãos. Eu não sabia o que os seres humanos estavam vendo nas minhas mãos, mas tinha certeza de que não os faria gostar de mim. Ares virou-se para olhar ferozmente para os nossos espectadores, o que me deu um momento para respirar. Havia cinco viaturas de polícia agora, e uma fileira de policiais abaixados atrás delas, com pistolas apontadas para nós. - Este é um assunto particular! - berrou Ares. - Vão embora! Ele fez um movimento circular com a mão, e uma parede de chamas vermelhas passou através das viaturas. Os policiais mal tiveram tempo de mergulhar para se proteger antes de os carros explodirem. A multidão se dispersou aos gritos. Ares soltou uma gargalhada retumbante. - Agora, heroizinho. Vamos acrescentar você ao churrasco. Ele golpeou. Eu desviei da lâmina. Cheguei perto o bastante para atacar, tentei enganá-lo com uma ginga, mas o meu golpe foi rechaçado. As ondas agora estavam me atingindo nas costas. Ares estava mergulhado até as coxas, avançando atrás de mim. Senti o ritmo do mar, as ondas ficando maiores enquanto a maré avançava, e de repente tive uma idéia. Ondas pequenas, pensei. E a água atrás de mim pareceu recuar. Eu estava segurando a maré com a força da minha vontade, mas a tensão se acumulava, como gás carbônico atrás de uma rolha. Ares avançou, sorrindo confiante. Eu abaixei a minha lâmina, como se estivesse exausto demais para prosseguir. Aguarde, eu disse para o mar. A pressão agora estava quase me levantando acima dos pés. Ares ergueu a espada. Eu liberei a maré e pulei, subindo como um rojão em uma onda, passando diretamente por cima de Ares. Uma parede de dois metros de água o atingiu em cheio no rosto, e ele ficou praguejando e cuspindo com a boca cheia de algas. Caí em pé atrás dele, espirrando água, e simulei um ataque em direção à cabeça dele, como já havia feito. Ele se virou a tempo de erguer a espada, mas dessa vez estava desorientado e não previu o truque. Mudei de direção, investi para o lado e mandei Contracorrente diretamente para baixo na água, enfiando a ponta no calcanhar do deus. O rugido que se seguiu fez o terremoto do Hades parecer um evento menor. O próprio mar explodiu para longe de Ares, deixaindo um círculo de areia molhada com quinze metros de diâmetro. Icor, o sangue dourado dos deuses, jorrou de um talho profundo na bota do deus. A expressão no seu rosto ia além do ódio. Era dor, choque, incredulidade total por ter sido ferido. Ele veio mancando na minha direção, resmungando antigas pragas gregas. Alguma coisa o deteve.
Era como se uma nuvem tivesse encoberto o sol, mas pior. A luz foi sumindo. Sons e cores se extinguiram. Uma presença fria e pesada passou sobre a praia, retardando o tempo, diminuindo a temperatura até o congelamento, e fazendo-me sentir que a vida não valia a pena, que lutar era inútil. As trevas se dissiparam. Ares parecia aturdido. As viaturas da polícia ardiam atrás de nós. A multidão de espectadores fugira. Annabeth e Grover estavam plantados na praia, em choque, observando a água se derramar de volta em torno dos pés de Ares, e o seu luminescente icor dourado se diluindo na maré. Ares abaixou a espada. - Você fez um inimigo, filhote de deus - disse-me ele. - Você selou o seu destino. A cada vez que erguer a sua lâmina em batalha, a cada vez que você esperar sucesso, sentirá a minha maldição. Cuidado, Perseu Jackson. Cuidado. Seu corpo começou a brilhar. - Percy! - gritou Annabeth. - Não olhe! Virei-me enquanto o deus Ares revelava sua verdadeira forma imortal. De algum modo eu sabia que, se olhasse, iria me desintegrar em cinzas. A luz se extinguiu. Olhei para trás. Ares se fora. A maré recuou para revelar o elmo de bronze das trevas de Hades. Eu o recolhi e fui andando na direção dos meus amigos. Mas, antes de chegar lá, ouvi o bater de asas de couro. Três vovós de aparência maligna com chapéus de renda e chicotes flamejantes desceram do céu e pousaram diante de mim. A Fúria do meio, a que tinha sido a sra. Dodds, deu um passo à frente. Seus caninos estavam expostos, mas pela primeira vez não tinha um aspecto ameaçador. Parecia mais desapontada, como se tivesse planejado me comer na ceia, mas percebera que eu podia lhe dar indigestão. - Nós vimos tudo - sibilou ela. - Então... realmente não foi você? Joguei o capacete para ela, e ela o agarrou, surpresa. - Devolva isto ao Senhor Hades - disse eu. - Conte-lhe a verdade. Diga-lhe para cancelar a guerra. Ela hesitou, depois passou uma língua bifurcada pelos lábios coriáceos verdes. - Viva bem, Percy Jackson. Torne-se um verdadeiro herói. Porque, se você não o fizer, se algum dia cair nas minhas garras de novo... Ela cacarejou, saboreando a idéia. Então ela e as irmãs levantaram vôo em suas asas de morcego, pairaram no céu cheio de fumaça e desapareceram. Juntei-me a Grover e Annabeth, que olhavam para mim assombrados. - Percy... - disse Grover. - Aquilo foi tão incrivelmente... - Aterrorizante - disse Annabeth. - Legal! - corrigiu Grover.
Eu não me sentia aterrorizado. Certamente não me sentia legal. Estava cansado, doído e sem nenhuma energia. - Vocês sentiram aquele... o que era aquilo? - perguntei. Os dois assentiram, constrangidos. - Devem ser as Fúrias lá no alto - disse Grover. Mas eu não tinha tanta certeza. Alguma coisa impedira Ares de me matar, e o que quer que pudesse fazer isso era muito mais forte do que as Fúrias. Olhei para Annabeth, e tivemos a mesma sacação. Agora eu sabia o que estava naquele abismo, o que havia falado da entrada do Tártaro. Resgatei a minha mochila com Grover e olhei dentro. O raio-mestre ainda estava lá. Uma coisa tão pequena quase causara a Terceira Guerra Mundial. - Temos de voltar a Nova York - disse eu. - Esta noite. - É impossível - disse Annabeth -, a não ser que nós... - Fôssemos voando — completei. Ela arregalou os olhos para mim. - Voando, tipo num avião, coisa que avisaram você para nunca fazer, para que Zeus não o fulmine para fora do céu, e ainda for cima carregando uma arma que tem mais poder destrutivo do que uma bomba nuclear? - É - disse eu. - Mais ou menos isso. Vamos.
VINTE E UM – Meu acerto de contas.
É gozado como os seres humanos são capazes de enrolar a sua mente em volta das coisas e encaixá-las na sua versão de realidade. Quíron me contara isso muito tempo atrás. Como de costume, eu só dei bola para sua sabedoria muito tempo depois. De acordo com as notícias de Los Angeles, a explosão na praia de Santa Monica tinha sido causada quando um seqüestrador enlouquecido disparou uma espingarda contra uma viatura da polícia. Ele acidentalmente atingiu um tubo principal de gás que se rompera durante o terremoto. Esse seqüestrador enlouquecido (também conhecido como Ares) era o mesmo homem que me abduzira com dois outros adolescentes em New York e nos trouxera até o outro lado do país em uma odisséia de terror que durara dez dias. O pobrezinho do Percy Jackson, afinal, não era um criminoso internacional. Ele causara uma comoção naquele ônibus da Greyhound em New Jersey tentando escapar do seu seqüestrador (e depois, testemunhas chegaram a jurar que tinham visto o homem de roupa de couro no ônibus - "Por que não me lembrei dele antes?"). O homem enlouquecido causara a explosão no Arco de St. Louis. Afinal, nenhum garotinho poderia ter feito aquilo. Uma garçonete preocupada de Denver vira o homem ameaçar seus seqüestrados do lado de fora do seu restaurante, chamara um amigo para tirar uma foto, e notificara a polícia. Finalmente, o bravo Percy Jackson (eu estava começando a gostar desse menino) subtraíra uma espingarda do seu seqüestrador em Los Angeles e lutara contra ele, espingarda contra rifle, na praia. A polícia chegara bem a tempo. Mas, na espetacular explosão, cinco viaturas da polícia foram destruídas e o seqüestrador fugira. Não houve mortes. Percy Jackson e seus dois amigos estavam em segurança, sob custódia da polícia. Os repórteres nos forneceram essa história inteira. Nós apenas assentimos e nos fizemos de chorosos e exaustos (o que não foi difícil), e representamos o papel de crianças vitimizadas para as câmeras. - Tudo o que eu quero - disse eu, contendo as lágrimas -, é ver o meu adorado padrasto de novo. Toda vez que o via na tevê me chamando de punk delinqüente, eu sabia... de algum modo... que tudo ia dar certo. E eu sei que ele vai querer recompensar uma por uma todas as pessoas desta linda cidade de Los Angeles com um eletrodoméstico grátis, dos grandes, da sua loja. Aqui está o número do telefone. - A polícia e os repórteres ficaram tão comovidos que passaram o chapéu e levantaram dinheiro para três passagens no próximo avião para Nova York. Eu sabia que não havia escolha senão voar. Esperava que Zeus me desse algum tempo de lambuja, consideradas as circunstâncias. Mas ainda assim foi difícil me forçar a embarcar no vôo. A decolagem foi um pesadelo. Cada momento de turbulência era mais assustador que um monstro grego. Eu não larguei dos braços da poltrona até pousarmos em segurança no aeroporto de La Guardia. A imprensa local aguardava por nós do lado de fora da segurança, mas conseguimos escapar graças a Annabeth, que atraiu para longe com o seu boné dos Yankees invisível, gritando: - Eles estão lá, perto da sorveteria! Venham! — e depois juntou a nós na área de retirada de bagagem. Separamo-nos no ponto de táxi. Eu disse a Annabeth e Grover para voltar à Colina Meio-Sangue e contar a Quíron o que acontecera. Eles protestaram, e era difícil deixá-los partir depois de tudo que passamos juntos, mas eu sabia que tinha de cumprir essa última parte da minha missão sozinho. Se as coisas dessem errado, se os deuses não acreditassem em mim... eu queria que Annabeth e Grover sobrevivessem para contar a verdade a Quíron. Embarquei em um táxi e segui para Manhattan. ***** Trinta minutos depois, entrei no saguão do Edifício Empire State. Devo ter parecido uma criança abandonada, com minhas roupas esfarrapadas e minha cara toda arranhada. Eu não dormia havia pelo menos vinte e quatro horas.
Fui até o guarda na mesa da recepção e disse: - Seiscentésimo andar. Ele estava lendo um livro enorme com a figura de um feiticeiro na capa. Eu não curto muito fantasia, mas acho que o livro era bom, porque o guarda levou algum tempo para erguer os olhos. - Esse andar não existe, garoto. - Eu preciso de uma audiência com Zeus. Ele me deu um sorriso vago. - O quê? - Você me ouviu. Eu já estava quase concluindo que aquele cara era apenas um mortal comum, e era melhor eu correr antes que ele chamasse a patrulha da camisa-de-força, quando ele disse: - Sem hora marcada, nada de audiência, garoto. O Senhor Zeus não atende ninguém sem aviso prévio. - Ah, eu acho que ele vai abrir uma exceção. - Tirei a mochila das costas e abri o zíper. O guarda olhou para o cilindro metálico lá dentro sem entender o que era por alguns segundos. Então seu rosto empalideceu. - Isto não é... - Sim, é - garanti. - Você quer que eu o tire e... - Não! Não! - Ele se ergueu atabalhoadamente da sua cadeira, tateou em volta da mesa procurando um cartão-chave, e o entregou para mim. - Insira na fenda de segurança. Certifique-se de que ninguém mais esteja no elevador com você. Fiz o que ele me disse. Assim que as portas do elevador se fecharam, enfiei o cartão na fenda. O cartão desapareceu e um novo botão apareceu no quadro, um botão vermelho que dizia 600. Apertei e esperei, e esperei. Havia música tocando. "Raindrops keepfalling on my head..." Finalmente, plim. As portas se abriram. Saí e quase tive um ataque do coração. Eu estava em um estreito caminho de pedra no meio do ar. Abaixo de mim se encontrava Manhattan, da altura de um avião. Diante de mim, degraus de mármore branco subiam em espiral pelo meio de uma nuvem até o céu. Meus olhos seguiram a escada até o fim, onde meu cérebro simplesmente não pôde aceitar o que vi. Olhem outra vez, disse meu cérebro. Estamos olhando, meus olhos insistiram. Está realmente lá. Do topo das nuvens se erguia o pico decapitado de uma montanha, o cume coberto de neve. Na encosta da montanha havia dúzias de palácios com vários níveis - uma cidade de mansões -, todos com pórticos de colunas brancas, terraços dourados e braseiros de bronze brilhando com mil fogos. Estradas se enroscavam de um jeito maluco até o pico, onde o maior dos palácios resplandecia contra a neve. Jardins precariamente encarapitados floresciam com oliveiras e roseiras. Pude distinguir um mercado a céu aberto cheio de tendas coloridas, um anfiteatro de pedra construído em um lado da montanha, um hipódromo e um coliseu do outro. Era uma cidade grega antiga, só que não estava em ruínas. Era nova, limpa e colorida, como Atenas deve ter sido há dois mil e quinhentos anos.
Este palácio não pode estar aqui, disse para mim mesmo. A ponta de uma montanha pendurada em cima da cidade de Nova York como um asteróide de um bilhão de toneladas? Como podia uma coisa assim estar ancorada acima do Edifício Empire Statem a plena vista de milhões de pessoas, e não ser notada? Mas aqui estava. E aqui estava eu. Minha viagem pelo Olimpo foi deslumbrante. Passei por algumas ninfas das florestas que deram risadinhas e me atiraram azeitonas do seu pomar. No mercado, mascates se ofereceram para vender ambrosia-no-palito, um escudo novo e uma réplica genuína do Velocino de Ouro em tecido cintilante, conforme anunciado na tevê Hefesto. As nove musas afinavam seus instrumentos para um concerto no parque enquanto uma pequena multidão se reunia - sátiros, náiades e um bando de adolescentes de boa aparência que talvez fossem deuses e deusas menores. Ninguém parecia preocupado com uma guerra civil iminente. De fato, todo mundo parecia estar num estado de ânimo festivo. Vários se voltaram para me ver passar e cochicharam entre si. Subi pela estrada principal rumo ao grande palácio no pico. Era uma cópia invertida do palácio no Mundo Inferior. Lá, tudo era preto e bronze. Aqui, tudo rebrilhava em branco e prata. Dei-me conta de que Hades deve ter construído o seu palácio para se parecer com este. Ele não era bem-vindo no Olimpo, exceto no solstício de inverno, então construiu seu próprio Olimpo embaixo da terra. A despeito da minha má experiência com ele, senti pena do cara. Ser banido deste palácio parecia realmente injusto. Era de deixar qualquer um amargo. Degraus levavam a um pátio central. Além dele, a sala do trono. Sala não é exatamente a palavra certa. O lugar fazia a Grande Estação Central parecer um armário de vassouras. Colunas maciças se erguiam até um teto abobadado, que era decorado com constelações que se moviam. Doze tronos, construídos para seres do tamanho de Hades, estavam arrumados em um U invertido, exatamente como os chalés do Acampamento Meio-Sangue. Uma enorme fogueira crepitava no braseiro central. Os tronos estavam vazios com exceção de dois no fim: o trono principal à direita e um imediatamente à sua esquerda. Ninguém precisou me dizer quem eram os dois deuses que estavam sentados lá, esperando que eu me aproximasse. Cheguei à frente deles com as pernas tremendo. Os deuses estavam em forma humana gigante, como Hades estivera, mas eu mal podia olhar para eles sem sentir um formigamento, como se o meu corpo estivesse começando a queimar. Zeus, o Senhor dos Deuses, usava um terno risca-de-giz azul-escuro. Estava sentado em um trono simples de platina maciça. Tinha uma barba bem aparada, cinza-mármore e preta, como uma nuvem de tempestade. Seu rosto era orgulhoso belo e severo, os olhos tinham o tom cinzento da chuva. Quando me aproximei dele, o ar estralejou e senti cheiro de ozônio. O deus sentado ao lado dele era seu irmão, sem dúvida, mas estava vestido de modo muito diferente. Lembrou-me um catador de praia de Key West. Usava sandálias de couro, bermudas caqui e uma camisa marca Tommy Bahama toda estampada de coqueiros e papagaios. Sua pele tinha um bronzeado escuro e as mãos eram marcadas de cicatrizes como as de um velho pescador. O cabelo era preto, como o meu. Seu rosto tinha o mesmo ar taciturno que sempre me fez ser rotulado de rebelde. Mas os olhos, verde-mar como os meus, eram rodeados de rugas que me diziam que ele também sorria muito. Os deuses não estavam se movendo nem falando, mas havia tensão no ar, como se tivessem acabado de discutir. Aproximei-me do trono do pescador e me ajoelhei aos seus pés. - Pai. - Não ousei olhar para cima. Meu coração estava disparado, eu podia sentir a energia que emanava dos dois deuses. Se eu dissesse a coisa errada, não havia dúvida de que eles poderiam me reduzir a pó. A minha esquerda, Zeus falou:
- Você não deveria se dirigir primeiro ao senhor desta casa, menino? Mantive a cabeça baixa e esperei. - Paz, irmão - disse por fim Poseidon. Sua voz mexeu com as minhas lembranças mais antigas: aquela sensação morna de que me lembrava, de quando eu era bebê, a sensação da sua mão de deus sobre a minha testa. - O menino submete-se ao seu pai. Está certo. - Então você ainda o reclama como seu? - perguntou Zeus, ameaçadoramente. - Você reclama esta criança que procriou contrariando o nosso sagrado juramento? - Eu admiti a minha transgressão - disse Poseidon. - E agora vou ouvi-lo falar. Transgressão. Senti um nó na garganta. Era isso tudo o que eu era? Uma transgressão? O resultado do erro de um deus? - Eu já o poupei uma vez - resmungou Zeus. - Ousando voar através dos meus domínios... bah! Eu devia tê-lo mandado pelos ares, para fora do céu pelo seu atrevimento. - E correr o risco de destruir seu próprio raio-mestre? - perguntou Poseidon calmamente. - Vamos ouvi-lo, irmão. Zeus resmungou mais um pouco. - Ouvirei - resolveu. - E então decidirei se atirarei ou não este menino para fora do Olimpo. - Perseu - disse Poseidon. - Olhe para mim. Fiz isso, e não sei ao certo o que vi no seu rosto. Não havia sinal claro de amor ou aprovação. Nada para me encorajar. Era como olhar para o oceano: em alguns dias, era possível dizer como estava o seu humor. Na maioria dos dias, no entanto, era impossível de ler, misterioso. Tive a sensação de que Poseidon na verdade não sabia o que pensar de mim. Não sabia se estava feliz por ter-me como filho ou não. De um modo estranho, eu estava contente por Poseidon estar tão distante. Se ele tivesse tentado se desculpar, ou dito que me amava, ou mesmo sorrido, teria parecido falso. Como um pai humano, dando alguma desculpa pouco convincente por não estar presente. Eu poderia viver com isso. Afinal, eu mesmo também não estava muito seguro a respeito dele. - Dirija-se ao Senhor Zeus, menino - disse-me Poseidon. - Conte a ele a sua história. Então contei tudo a Zeus, exatamente como havia acontecido. Tirei da mochila o cilindro de metal, que começou a fagulhar na presença do Deus do Céu, e o pus aos seus pés. Houve um longo silêncio, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no braseiro. Zeus abriu a palma da sua mão. O raio voou para dentro dela. Quando ele fechou o punho, os pontos metálicos fulguraram com eletricidade, até ele ficar segurando o que parecia mais um relâmpago clássico, um dardo de seis metros feito de energia com centelhas chiantes que fez os meus cabelos se eriçarem. - Sinto que o menino diz a verdade - murmurou Zeus. - Mas não é nada típico de Ares fazer uma coisa assim. - Ele é orgulhoso e impulsivo - disse Poseidon. - E coisa de família. - Senhor? - chamei. Ambos disseram:
- Sim? - Ares não agiu sozinho. Outra pessoa - ou outra coisa teve a idéia. Descrevi os meus sonhos e a sensação que tive na praia, o momentâneo hálito do mal que parecera parar o mundo e fizera Ares desistir de me matar. - Nos meus sonhos - disse eu -, a voz me disse para levar o raio ao Mundo Inferior. Ares insinuou que também estava tendo sonhos. Acho que ele estava sendo usado, assim como eu, par começar uma guerra. - Você está acusando Hades, afinal? - perguntou Zeus. - Não - disse eu. - Quer dizer, Senhor Zeus, eu estive na presença de Hades. A sensação na praia foi diferente. Era a mesma coisa que senti quando cheguei perto daquele abismo. Aquela era entrada para o Tártaro, não era? Alguma coisa poderosa e maligna está se agitando lá embaixo... alguma coisa ainda mais antiga que os deuses. Poseidon e Zeus se entreolharam. Eles tiveram uma rápida e intensa discussão em grego antigo. Só peguei uma palavra. Pai. Poseidon fez algum tipo de sugestão, mas Zeus o cortou. Poseidon tentou discutir. Zeus ergueu a mão, zangado. - Não vamos mais falar disso - disse Zeus. - Preciso ir pessoalmente purificar este raio nas águas de Lemnos, para remover a mácula humana do seu metal. - Ele se levantou e olhou para mim. Sua expressão se suavizou uma fração de um grau. - Você me prestou um serviço, menino. Poucos heróis poderiam ter conseguido tanto. - Eu tive ajuda, senhor - disse eu. - Grover Underwood e Annabeth Chase... - Para demonstrar minha gratidão, pouparei sua vida. Não confio em você, Perseu Jackson. Não gosto do que a sua chegada significa para o futuro do Olimpo. Mas, em nome da paz na família, eu o deixarei viver. - Ahn... obrigado, senhor. - Não ouse voar de novo. Não me deixe encontrá-lo aqui quando eu voltar. Ou irá provar este raio. E será a sua última sensação. Um trovão sacudiu o palácio. Com um clarão ofuscante, Zeus se foi. Eu estava sozinho na sala do trono com meu pai. - O seu tio - suspirou Poseidon -, sempre teve um talento especial para saídas teatrais. Acho que ele teria se saído bem como o deus do teatro. Um silêncio constrangedor. - Senhor - disse eu -, o que havia naquele abismo? Poseidon olhou atentamente para mim. - Você não adivinhou? - Cronos - disse eu. - O rei dos Titãs. Mesmo na sala do trono do Olimpo, longe doTártaro, o nome Cronos escureceu o ambiente, e fez o fogo no braseiro não parecer mais tão quente nas minhas costas. Poseidon segurou o seu tridente.
- Na Primeira Guerra Mundial, Percy, Zeus cortou o nosso pai Cronos em mil pedacos, exatamente como Cronos fizera com seu proprio pai, Uranos. Zeus lancou os restos de Cronos no mais escuro abismo do Tartaro. O exercito dos Titas foi dispersado, sua fortaleza na montanha sobre o Etna, destruida, seus monstruosos aliados foram expulsos para os cantos mais distantes da Terra. E, contudo, Titas nao podem morrer, nao mais que nos, deuses. O que resta de Cronos ainda vive de algum modo hediondo, ainda consciente em seu sofrimento eterno, ainda com fome de poder. - Ele esta se curando - disse eu. - Ele vai voltar. Poseidon sacudiu a cabeca. - De tempos em tempos, no decorrer das eras, Cronos se agita. Ele entra nos pesadelos dos homens e exala pensamentos malignos. Desperta monstros inquietos das profundezas. Mas sugerir que ele pode erguer-se do abismo e outra coisa. E o que ele pretende, pai. E o que ele disse. Poseidon ficou em silencio por um bom tempo. - O Senhor Zeus encerrou a discussao sobre o assunto. Ele nao permitira que se fale de Cronos. Voce completou a sua missao, crianca. E tudo o que precisa fazer. - Mas... - eu me interrompi. Discutir nao iria adiantar nada. Muito possivelmente, irritaria o unico deus que eu tinha do meu lado. - Como... como queira, pai. Um leve sorriso brincou nos labios dele. - A obediencia nao lhe vem naturalmente, nao e? - Nao... senhor. - Devo ter alguma culpa por isso, imagino. O mar nao gosta de ser contido. - Ele se ergueu em toda a sua altura e pegou seu tridente. Entao tremeluziu e ficou do tamanho de um homem normal, em pe diante de mim. - Voce precisa ir, crianca. Mas primeiro saiba que sua mae retornou. Olhei para ele, completamente perplexo. - Minha mae? - Voce a encontrara em casa. Hades a enviou quando recuperou seu elmo. Ate mesmo o Senhor da Morte paga as suas dividas. Meu coracao disparou. Eu mal podia acreditar. - Voce... voce vai... Eu queria perguntar se Poseidon viria comigo para ve-la, mas entao percebi que isso era ridiculo. Imaginei-me embarcando com o Deus do Mar em um taxi e levando-o para o Upper East Side. Se durante todos aqueles anos ele tivesse desejado ver minha mae, teria visto. E tambem era preciso pensar que Gabe Cheiroso estava la. Os olhos de Poseidon ficaram um pouco tristes. - Quando voce voltar para casa, Percy, precisara fazer uma escolha importante. Ira encontrar um pacote esperando por voce no seu quarto. - Um pacote? - Voce entendera quando o vir. Ninguem pode escolher o seu caminho, Percy. Voce tera de decidir.
Assenti, embora sem saber o que ele queria dizer. - Sua mae e uma rainha entre as mulheres - disse Poseidon saudosamente. - Nao conheci nenhuma mulher mortal como ela em mil anos. Ainda assim... sinto muito por voce ter nascido, crianca. Eu trouxe para voce um destino de heroi, e um destino de heroi nunca e feliz. Nao passa de um destino tragico. Tentei nao me sentir magoado. Ali estava o meu proprio pai, dizendo que sentia muito por eu ter nascido. - Eu nao me importo, pai. - Ainda nao, talvez - disse ele. - Ainda nao. Mas foi um erro imperdoavel da minha parte. - Vou deixa-lo, entao. - Eu me inclinei, desajeitado. - Nao... nao vou incomoda-lo de novo. Eu estava a cinco passos de distancia quando ele chamou: - Perseu. Eu me virei. Havia uma luz diferente em seus olhos, um tipo flamejante de orgulho. - Voce se saiu bem, Perseu. Nao me entenda mal. O que quer que ainda faca, saiba que voce e meu. Voce e um verdadeiro filho do Deus do Mar. Enquanto eu caminhava de volta pela cidade dos deuses, as conversas se interromperam. As musas pararam seu concerto. Pessoas, satiros e naiades, todos se voltavam para mim, os rostos plenos de respeito e gratidao, e quando eu passava eles se ajoelhavam, como se eu fosse algum tipo de heroi. ***** Quinze minutos depois, ainda em transe, eu estava de volta as ruas de Manhattan. Peguei um taxi para o apartamento da minha mae, toquei a campainha, e la estava ela - minha linda mae, cheirando a hortela e alcacuz, e o cansaco e a preocupacao se evaporaram do seu rosto assim que ela me viu. - Percy! Oh, gracas a Deus! Oh, meu querido. Ela me apertou ate nao poder mais. Ficamos no vestibulo enquanto ela chorava e passava as maos pelos meus cabelos. Eu admito - meus olhos tambem ficaram um pouco nublados. Eu tremia, de tao aliviado que estava por ve-la. Ela me contou que simplesmente aparecera no apartamento naquela manha, deixando Gabe meio fora de si de tao apavorado. Nao se lembrava de nada desde o Minotauro, e nao pode acreditar quando Gabe lhe disse que eu era um criminoso procurado, viajando pelo pais e explodindo monumentos nacionais. Ficara louca de preocupacao o dia inteiro porque nao ouvira as noticias. Gabe a forcara a ir trabalhar, dizendo que ela precisava um mes de salario para compensar, e era melhor comecar. Engoli a raiva e contei-lhe minha propria historia. Tentei fazer que parecesse menos apavorante do que fora, mas nao era facil. Estava justamente chegando a luta com Ares quando a voz de Gabe irrompeu da sala de estar. - Ei, Sally! Aquele bolo de carne ja esta pronto ou nao? Ela fechou os olhos.
- Ele nao vai ficar muito feliz em ve-lo, Percy. A loja recebeu um milhao de telefonemas de Los Angeles hoje... alguma coisa sobre eletrodomesticos gratis. - Ah, sim. Quanto a isso... Ela conseguiu sorrir fracamente. - So nao o deixe ainda mais zangado, certo? Venha. No mes em que estive fora, o apartamento se transformara em Gabelandia. Havia lixo no tapete ate a altura dos tornozelos. O sofa tinha sido estofado de novo com latas de cerveja. Meias e roupas de baixo sujas estavam penduradas nos abajures. Gabe e tres dos seus amigos cretinos estavam sentados a mesa jogando poquer. Quando Gabe me viu, o charuto caiu da boca. A cara dele ficou mais vermelha que lava. - Voce e muito descarado de vir aqui, seu pequeno punk. Eu pensei que a policia... - Ele nao e um fugitivo, afinal - interrompeu minha mae. - Nao e maravilhoso, Gabe? Gabe olhou para um lado e para outro entre nos. Nao parecia achar que a minha volta para casa fosse assim tao maravilhosa. - Ja nao basta ter de devolver o dinheiro do seu seguro de vida, Sally - rosnou ele. - Me de o telefone. Vou chamar a policia. - Gabe, nao! Ele ergueu as sobrancelhas. - Voce disse nao! Acha que eu vou ter de aguentar esse punk de novo? Ainda posso registrar queixa contra ele por destruir o meu Camaro. - Mas... - Ele levantou a mao e minha mae se encolheu. Pela primeira vez me dei conta de uma coisa. Gabe ja tinha batido na minha mae. Nao sei quando, nem quanto. Talvez estivesse acontecendo ha anos, quando eu nao estava por perto. Um balao de raiva comecou a se expandir no meu peito. Avencei para Gabe, instintivamente tirando minha caneta do bolso. Ele apenas riu. - O que foi, punk? Vai escrever em mim? Encoste em mim, e ira para a cadeia para sempre, entendeu? - Ei, Gabe - seu amigo Eddie interrompeu. - Ele e so uma crianca. Gabe olhou para ele irritado e macaqueou em voz de falsete: - Ele e so uma crianca! Seus outros amigos riram como idiotas. - Eu vou ser bonzinho com voce, punk. - Gabe mostrou os dentes manchados de tabaco. - Vou lhe dar cinco minutos para pegar suas coisas e dar o fora. Depois disso, chamo a policia. - Gabe! - implorou minha mae. - Ele fugiu - disse Gabe a ela. - Que continue fugido.
Eu estava sentindo uma comichao para destampar Contracorrente, mas mesmo que fizesse isso, a lamina nao podia ferir seres humanos. E Gabe, segundo a mais vaga das definicoes, era um ser humano. Minha mae segurou meu braco. - Por favor, Percy. Venha. Vamos para o seu quarto. Deixei que ela me puxasse, as maos ainda tremendo de raiva. Meu quarto tinha sido completamente abarrotado com o lixo de Gabe. Havia pilhas de baterias velhas de carro, um buque apodrecido de flores de solidariedade com um cartao de alguem que assistira sua entrevista com Barbara Walters. - Gabe esta apenas chateado, querido - disse minha mae. - Vou falar com ele mais tarde. Tenho certeza de que vai dar certo. - Mamae, nunca vai dar certo. Nao enquanto Gabe estiver aqui. Ela torceu as maos nervosamente. - Eu posso... vou levar voce comigo para o trabalho durante o resto do verao. No outono talvez haja algum outro internato... - Mamae. Ela baixou os olhos. - Estou tentando, Percy. Eu so... so preciso de algum tempo. Um pacote apareceu em cima da minha cama. Pelo menos, eu poderia jurar que nao estava la um momento antes. Era uma caixa de papelao surrada mais ou menos do tamanho certo para conter uma bola de basquete. O endereco na etiqueta estava na minha propria caligrafia: Aos deuses Monte Olimpo, 600‹ andar, Edificio Empire State Nova York, NY Com os melhores votos, Percy Jackson No topo da caixa, em marcador preto, na caligrafia clara e forte de um homem, estava o endereco do nosso apartamento, e as palavras: RETORNAR AO REMETENTE. De repente entendi o que Poseidon me dissera no Olimpo. Um pacote. Uma decisao. O que quer que ainda faca, saiba que voce e meu. Voce e um verdadeiro filho do Deus do Mar. Olhei para a minha mae. - Mae, voce quer se livrar do Gabe? - Percy, nao e tao simples. Eu...
- Mae, apenas me diga. Aquele cretino esta batendo em voce. Voce quer que ele se va ou nao? Ela hesitou, depois assentiu quase imperceptivelmente. - Sim, Percy. Eu quero. E estou tentando reunir coragem para dizer a ele. Mas voce nao pode fazer isso por mim. Voce nao pode resolver os meus problemas. Eu olhei para a caixa. Eu podia resolver o problema dela. Queria abrir aquele pacote, bota-lo sobre a mesa de poquer e tirar o que havia dentro. Podia comecar o meu proprio jardim de estatuas bem ali na sala de estar. E o que um heroi grego faria nas historias, pensei. E o que Gabe merece. Mas a historia de um heroi sempre termina em tragedia. Poseidon me dissera isso. Lembrei-me do Mundo Inferior. Pensei no espirito de Gabe a deriva nos Campos de Asfodelos, ou condenado a alguma tortura horrivel atras do arame farpado dos Campos da Punicao - sentado em um eterno jogo de poquer, mergulhado ate a cintura em oleo fervente ou ouvindo musica de opera. Sera que eu tinha o direito de mandar alguem para la? Mesmo Gabe? Um mes atras, eu nao teria hesitado. Agora... - Eu posso fazer isso - disse a minha mae. - Uma espiada para o que ha dentro desta caixa, e ele nunca mais a incomodara de novo. Ela deu uma olhada para o pacote e pareceu entender imediatamente. - Nao, Percy - disse ela afastando-se. - Voce nao pode. - Poseidon chamou voce de rainha - contei-lhe. - Ele disse que nao conheceu nenhuma mulher como voce em mil anos. Suas faces coraram. - Percy... - Voce merece coisa melhor do que isso, mae. Voce devia ir para a faculdade, tirar o seu diploma. Podia escrever o seu romance, conhecer um cara legal, quem sabe, e viver numa bela casa. Voce nao precisa mais me proteger ficando com Gabe, Deixe que eu me livre dele. Ela enxugou uma lagrima do rosto, - Voce se parece tanto com o seu pai - disse ela, - Uma vez propos parar a mare por mim. Propos construir um palacio para mim no fundo do mar, Achava que podia resolver todos os meus problemas com um aceno de mao. - O que ha de errado nisso? Seus olhos multicoloridos pareceram investigar dentro de mim. - Eu acho que voce sabe, Percy, Eu acho que voce e parecido o bastante comigo para entender, Se e para a minha vida ter algum significado, tenho de vive-la eu mesma. Nao posso deixar que um deus cuide de mim,,, ou meu filho, Eu preciso,,, encontrar a coragem sozinha, A sua missao me fez lembrar disso, Ouvimos o som das fichas de poquer e pragas, e a ESPN n televisao da sala de estar, - Vou deixar a caixa - disse eu, - Se ele a ameacar,,, Ela empalideceu, mas assentiu. - Aonde voce vai, Percy?
- Colina Meio-Sangue, - Passar o verao,,, ou para sempre? - Ainda nao sei, Nossos olhos se encontraram, e eu senti que tinhamos um acordo. Veriamos como estariam as coisas no fim do verao. Ele beijou a minha testa, - Voce sera um heroi, Percy, O maior de todos. Passei os olhos pelo quarto pela ultima vez,Tinha a sensacao de que nunca mais o veria de novo. Entao fui com minha mae ate a porta da frente. - Indo embora tao cedo, punk? - gritou Gabe atras de mim. - Ja vai tarde! Senti uma ultima ponta de duvida. Como eu podia rejeitar a oportunidade perfeita para me vingar dele? Eu estava indo embora daqui sem salvar a minha mae. - Ei, Sally! - berrou ele. - E aquele bolo de carne, heim? Uma expressao de raiva, dura como aco, brilhou nos olhos da minha mae, e eu pensei, quem sabe, talvez eu a estivesse deixando em boas maos afinal. As dela mesma. - O bolo de carne ja esta saindo, meu bem - disse ela a Gabe. - Um bolo de carne surpresa. Olhou para mim e piscou. A ultima coisa que vi quando a porta se fechou foi minha mae olhando para Gabe com jeito de quem imagina que ele daria uma otima estatua de jardim.
VINTE E DOIS - A profecia se cumpre. Fomos os primeiros herois a retornar vivos a Colina Meio-Sangue desde Luke, portanto e claro que todos nos trataram como se tivessemos ganho algum premio de reality show na teve. De acordo com a tradicao do acampamento, usamos coroas de louros em um grande banquete preparado em nossa honra, depois lideramos um cortejo ate a fogueira, onde queimamos as mortalhas que tinham sido feitas para nos na nossa ausencia. A mortalha de Annabeth era lindissima - seda cinzenta co corujas bordadas -, e eu disse que era uma pena nao poder enterra-la com ela. Ela me deu um soco e me mandou calar a boca. Por ser filho de Poseidon, eu nao tinha nenhum companheiro de chale, e assim o chale de Ares se ofereceu para fazer a minha mortalha. Eles pegaram um lencol velho e pintaram carinhas sorridentes nas bordas, com XX no lugar dos olhos, e a palavra PE DERDOR em tamanho realmente grande no meio. Foi divertido queima-la. Enquanto o chale de Apoio liderava a cantoria e passava guloseimas, fui rodeado pelos meus companheiros do chale de Hermes, pelos amigos de Annabeth de Atena e pelos colegas satiros de Grover, que estavam admirando a licenca de buscador nova em folha que ele recebera do Conselho dos Anciaos de Casco Fendido. O conselho chamara o desempenho de Grover na missao de "Bravo a ponto de dar indigestao. Chifres-e-barba acima de tudo t) que ja vimos no passado." Os unicos que nao estavam com um espirito festivo eram Clarisse e seus companheiros de chale, cujos olhares venenosos me diziam que jamais me perdoariam por envergonhar o pai deles. Por mim, tudo bem. Ate mesmo o discurso de boas-vindas de Dioniso foi insuficiente para abafar o meu bom humor. - Sim, sim, o molequinho nao se deixou matar e agora vai ficar ainda mais presuncoso. Bem, um viva para isso. Entre outros comunicados, nao havera corridas de canoas neste sabado... Mudei-me de volta para o chale 3, mas ele nao parecia mais tao solitario. Tinha os meus amigos para treinar durante o dia. A noite, ficava acordado e ouvia o mar, sabendo que meu pai estava la fora. Talvez ele ainda nao se sentisse muito seguro a meu respeito, talvez ainda nao quisesse que eu tivesse nascido, mas estava observando. E, ate agora, estava orgulhoso do que eu havia feito. Quanto a minha mae, ela teve chance de uma vida nova. A carta dela chegou uma semana depois que voltei ao acampamento. Ela me contou que Gabe partira misteriosamente - desaparecera da face do planeta, de fato. Ela deu queixa do desaparecimento dele a policia, mas tinha uma sensacao engracada de que jamais o encontrariam. Mudando completamente de assunto, ela tinha vendido a sua primeira escultura de concreto em tamanho natural, intitulada O jogador de poquer, para um colecionador, atraves de uma galeria de arte do Soho. Recebera tanto dinheiro por ela que dera entrada em um novo apartamento e fizera o pagamento do primeiro semestre do seu curso na Universidade de Nova York. A galeria do Soho estava clamando por mais trabalhos dela, que eles chamaram de "um grande passo do neo-realismo do superfeio". Mas nao se preocupe, escreveu a minha mae. Para mim, chega de escultura. Livrei-me daquela caixa de ferramentas que voce deixou para mim. Ja e hora de eu voltar a escrever. No fim, ela escreveu um P.S.: Percy, encontrei uma boa escola particular aqui na cidade. Fiz um deposito para reservar um lugar para voce, caso queira se matricular na setima serie. Voce podera morar em casa. Mas, se quiser ficar o ano inteiro na Colina Meio-Sangue, vou entender. Dobrei a carta cuidadosamente e a pus na minha mesa-de-cabeceira. Todas as noites antes de dormir eu a leio de novo, e tento decidir como responder a ela. *****
No Quatro de Julho, o acampamento inteiro se reuniu na praia para um espetaculo pirotecnico por conta do chale 9. Como filhos de Hefesto, nao iriam se contentar com explosoes comuns em vermelho, branco e azul. Eles ancoraram uma barcaca longe da costa e a carregaram com foguetes do tamanho de misseis Patriot. De acordo com Annabeth, que ja tinha visto o espetaculo antes, as explosoes seriam tao bem sequenciadas que pareceriam quadros de animacao no ceu. O final deveria ser um par de guerreiros espartanos de trinta metros de altura que iriam crepitar para a vida acima do oceano, travar uma batalha e entao explodir em um milhao de cores. Enquanto Annabeth e eu estendiamos toalhas de piquenique, Grover apareceu para se despedir de nos. Usava os jeans, a camiseta e os tenis de sempre, mas nas ultimas semanas comecara a parecer mais velho, quase com idade de secundarista. Seu cavanhaque ficara mais espesso. Ganhara peso. Seus chifres haviam crescido pelo menos tres centimetros, de modo que agora tinha de usar o seu bone rastafari o tempo todo para passar por ser humano. - Estou de partida - disse ele. - Vim so dizer... bem, voces sabem. Tentei me sentir feliz por ele. Afinal, nao era todo dia que um satiro conseguia permissao para procurar o grande deus Pan. Mas era dificil dizer adeus. Eu so conhecia Grover fazia um ano, e no entanto ele era o meu amigo mais antigo. Annabeth deu-lhe um abraco. Ela lhe disse para usar sempre os seus pes falsos. Perguntei-lhe onde iria procurar primeiro. - Tipo segredo - disse ele, parecendo embaracado. - Gostaria que voces pudessem vir comigo, mas seres humanos e Pan... - A gente entende - disse Annabeth. - Voce tem latas suficientes para a viagem? - Sim. - E se lembrou das suas flautas de bambu? - Puxa, Annabeth - resmungou ele. - Voce parece uma velha mamae-cabra. Mas ele nao pareceu aborrecido de verdade. Ele agarrou sua bengala e jogou uma mochila por cima dos ombros. Parecia um caroneiro desses que se veem nas estradas - nada parecido com o menino baixinho que eu costumava defender dos valentoes na Academia Yancy. - Bem - disse ele -, desejem-me boa sorte. Ele deu outro abraco em Annabeth. Bateu no meu ombro, e entao retornou atraves das dunas. Fogos de artificio explodiram acima de nos: Hercules matando o leao da Nemeia, Artemis perseguindo o javali, George Washington (que, alias, era um filho de Atena) cruzando o rio Delaware. - Ei, Grover - chamei. Ele se voltou a margem do bosque. - Aonde quer que esteja indo, espero que facam boas enchiladas. Grover sorriu, e se foi; as arvores se fechando em volta dele. - Nos o veremos de novo - disse Annabeth.
Tentei acreditar nisso. O fato de que nenhum buscador jamais voltara em dois mil anos... bem, decidi nao pensar nisso. Grover ia ser o primeiro. Tinha de ser. ***** Julho se foi. Eu passava os meus dias bolando novas estrategias para a captura da bandeira e fazendo aliancas com os outros chales para manter o estandarte fora das maos de Ares. Cheguei ate o topo da parede de escalada pela primeira vez sem ser tostado pela lava. De tempos em tempos, eu passava pela Casa Grande, dava uma olhada nas janelas do sotao e pensava no Oraculo. Tentei convencer a mim mesmo que a sua profecia se completara. Voce deve ir para o oeste, e enfrentar o deus que se tornou desleal. Estive la, fiz isso - mesmo que no fim o deus traidor fosse Ares, e nao Hades. Voce deve encontrar o que foi roubado e devolver em seguranca. Confere. Um raio-mestre entregue. Um elmo das trevas de volta na cabeca untuosa de Hades. Voce sera traido por aquele que o chama de amigo. Essa linha ainda me incomodava. Ares fingira ser meu amigo e depois me traira. Devia ser isso que o Oraculo queria dizer... E no fim nao conseguira salvar aquilo que mais importa. Eu nao conseguira salvar minha mae, mas so porque eu a deixara se salvar sozinha, e sabia que era a coisa certa a fazer. Entao por que ainda estava incomodado? ***** A ultima noite da sessao de verao chegou depressa demais. Os campistas fizeram uma ultima refeicao juntos. Queimamos parte do nosso jantar para os deuses. Junto a fogueira, os conselheiros mais velhos entregaram as contas de fim de verao. Ganhei o meu proprio colar de couro, e quando vi a conta pelo meu primeiro verao, fiquei contente porque a luz da fogueira encobriu o vermelho na minha cara. O desenho era preto como piche, com um tridente verde-mar cintilando no centro. - A escolha foi unanime - anunciou Luke. - Esta conta comemora o primeiro Filho do Deus do Mar neste acampamento, e a missao que ele assumiu para a parte mais escura do Mundo Inferior para impedir uma guerra! O acampamento inteiro se pos de pe e aplaudiu. Mesmo o chale de Ares se sentiu na obrigacao de levantar. O chale de Atenas empurrou Annabeth para a frente para que ela pudesse compartilhar os aplausos. Acho que nunca na vida me senti ao mesmo tempo tao feliz ou e tao triste como naquele momento. Finalmente encontrara uma familia, gente que se preocupava comigo e achava que eu tinha feito alguma coisa de modo certo. E, pela manha, a maior parte deles ficaria fora o resto do ano. Na manha seguinte encontrei uma carta padronizada na minha mesa-de-cabeceira. Soube que devia ter sido preenchida por Dioniso, pois ele insistia teimosamente em errar o meu nome:
Caro ________ Peter Johnson ___ , Se voce pretende permanecer no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, precisa informar a Casa Grande ate o meio-dia de hoje. Caso nao anuncie suas intencoes, presumiremos que voce vagou o seu chale ou morreu de uma morte horrivel. Harpias da limpeza comecarao seu trabalho ao por-do-sol. Elas estarao autorizadas a comer qualquer campista nao registrado. Todos os artigos pessoais deixados para tras serao incinerados no poco de lava. Tenha um bom dia! Senhor D (Dioniso) Diretor do Acampamento, Conselho Olimpiano n‹ 12 ***** Essa e mais uma questao do transtorno do deficit de atencao. Os prazos simplesmente nao existem para mim ate que nao tenha mais jeito. O verao acabara, e eu ainda nao havia respondido para a minha mae, nem para o acampamento, se iria ficar. Agora tinha apenas algumas horas para decidir. A decisao tinha tudo para ser facil. Quer dizer, nove meses treinando para heroi, ou nove meses sentado numa sala de aula - fala serio! Mas havia a minha mae para considerar. Pela primeira vez eu tinha oportunidade de morar com ela por um ano inteiro, sem Gabe. Tinha chance de estar em casa e perambular pela cidade nas horas livres. Lembrei-me do que Annabeth dissera tanto tempo atras sobre a nossa missao: O mundo real e onde os monstros estao. E onde a gente aprende se serve para alguma coisa ou nao. Pensei no destino de Thalia, filha de Zeus. Fiquei pensando quantos monstros me atacariam se eu deixasse a Colina Meio-Sangue. Se eu ficasse em um so lugar durante todo um ano escolar, sem Quiron e meus amigos em volta para me ajudar, sera que minha mae e eu sobreviveriamos ate o proximo verao? E isso presumindo que os testes de ortografia e os ensaios de cinco paragrafos nao me matassem. Decidi ir ate a arena e praticar um pouco de esgrima. Talvez isso me clareasse a cabeca. A area do acampamento estava deserta na maior parte, tremeluzindo no calor de agosto. Todos os campistas estavam nos seus chales fazendo as malas, ou correndo de um lado para outro com vassouras e esfregoes, preparando-se para a inspecao final. Argos estava ajudando algumas filhas de Afrodite a carregar suas malas e estojos de maquiagem Gucci para o outro lado da colina, onde o onibus do acampamento estaria esperando para leva-las ao aeroporto. Nao pense em partir ainda, disse para mim mesmo. Apenas treine. Cheguei a arena dos espadachins e descobri que Luke tivera a mesma ideia. Sua sacola estava jogada na beirada da arena. Ele estava treinando sozinho, investindo violentamente contra bonecos com uma espada que eu nunca tinha visto antes. Devia ser uma espada toda de aco, pois decepava de um golpe as cabecas dos bonecos e atravessava com estocadas as suas tripas recheadas de palha. Sua camisa laranja de conselheiro pingava de suor. A expressao dele era tao intensa que dava para pensar que sua vida estava realmente em perigo. Eu assisti, fascinado, enquanto ele destripava toda a fileira de bonecos, cortando fora os membros e basicamente os reduzindo a uma pilha de palha e armaduras. Eram apenas bonecos, mas ainda assim eu nao podia deixar de ficar assombrado com a habilidade de Luke. O cara era um guerreiro incrivel. Aquilo me fez pensar, novamente, como ele podia ter falhado em sua missao. Por fim ele me viu e interrompeu-se no meio de um golpe. - Percy. - Ahn, desculpe - disse eu, embaracado. - Eu so... - Tudo bem - disse ele, abaixando a espada. - Estava so dando uma treinada de ultimo minuto.
- Aqueles bonecos nunca mais vao incomodar ninguem. Luke encolheu os ombros. - Nos fazemos novos todo verao. Agora que a espada nao estava mais rodopiando de um lado para outro, pude ver algo de estranho nela. A lamina era feita com dois tipos de metal diferentes - um fio de bronze, o outro de aco. Luke reparou que eu estava olhando. - Ah, isso? Brinquedo novo. Esta e a Malvada. - Malvada? Luke virou a lamina na luz, e a fez brilhar de um jeito maligno. -Um lado e de bronze celestial. O outro e de aco temperado. Funciona tanto em mortais como em imortais. Pensei no que Quiron tinha me dito quando eu comecei a minha missao - que um heroi jamais deve ferir mortais a nao ser que seja absolutamente necessario. - Eu nao sabia que eles podiam fazer armas como esta. - Eles provavelmente nao - concordou Luke. - Esta aqui e unica. Ele me deu um sorrisinho minimo e entao enfiou a espada na bainha. - Escute. Eu estava indo procurar por voce. O que me diz de irmos ate a floresta uma ultima vez, para procurar algo para enfrentar? Nao sei por que hesitei. Devia ter me sentido aliviado por Luke estar sendo tao amigavel. Desde que eu voltara da missao ele vinha agindo de modo um pouco distante. Estava com medo de que ele estivesse ressentido com toda a atencao que eu recebera. - Voce acha que e uma boa ideia? - perguntei. - Quero dizer... - Ora, vamos. - Ele remexeu na sua sacola e tirou de la uma embalagem de seis Cocas. - Bebidas por minha conta. Olhei para as Cocas, me perguntando onde diabo as teria conseguido. Nao havia refrigerantes mortais comuns na loja do acampamento. Nao havia como consegui-los a nao ser que a gente falasse com um satiro, talvez. Naturalmente, as tacas magicas do jantar se encheriam com qualquer coisa que a gente quisesse, mas nao tinham exatamente o mesmo gosto de uma Coca de verdade, saida da lata. Acucar e cafeina. Minha forca de vontade desmoronou. - Claro - decidi. - Por que nao? Fomos andando ate a floresta e perambulamos sem rumo a procura de algum tipo de monstro para enfrentar, mas estava quente demais. Todos os monstros com um minimo de bom senso deviam estar fazendo a sesta nas suas cavernas agradaveis e frescas. Encontramos um lugar a sombra junto ao regato onde eu quebrara a lanca de Clarisse durante meu primeiro jogo de captura da bandeira. Sentamo-nos em uma grande pedra, bebemos as nossas Cocas e ficamos olhando para a luz do sol na floresta. Depois de algum tempo, Luke disse:
- Sente falta de estar em uma missao? - Com monstros me atacando a cada passo? Fala serio! Luke ergueu uma sobrancelha. - Sim, eu sinto falta - admiti. - E voce? Uma sombra passou pelo seu rosto. Eu estava acostumado a ouvir as meninas dizerem como Luke era bonito, mas naquele momento ele pareceu cansado, zangado e nem um pouco bonito. Seu cabelo loiro estava cinzento a luz do sol. A cicatriz no rosto parecia mais funda que de costume. Parecia estar vendo um velho. - Vivo na Colina Meio-Sangue o ano inteiro desde que tinha catorze anos - contou-me. - Desde que Thalia... bem, voce sabe. Treinei, treinei e treinei. Nunca cheguei a ser um adolescente normal, la fora no mundo real. Entao eles me jogaram numa missao, e quando voltei, foi tipo, "Certo, o passeio acabou. Passe bem". Ele amarrotou a sua Coca e a atirou no regato, o que realmente me chocou. Uma das primeiras coisas que a gente aprende no Acampamento Meio-Sangue e: nao jogue lixo no chao. Voce sera repreendido pelas ninfas e naiades. Elas ajustarao as contas. Voce cai na cama uma noite e encontra os lencois cheios de centopeias e lama. - Para o diabo com as coroas de louros - disse Luke. - Nao vou terminar como aqueles trofeus empoeirados no sotao da Casa Grande. - Voce esta parecendo alguem que vai embora. Luke me deu um sorriso torto. - Oh, eu estou indo embora, sem duvida, Percy. Trouxe voce aqui para dizer adeus. Ele estalou os dedos. Um pequeno fogo queimou um buraco no chao aos meus pes. De la, saiu se arrastando alguma coisa preta e brilhante, mais ou menos do tamanho da minha mao. Um escorpiao. Comecei a procurar a minha caneta. - Eu nao faria isso - advertiu Luke. Escorpioes das profundezas podem pular ate cinco metros. Seu ferrao pode perfurar as suas roupas. Voce estaria morto em sessenta segundos. - Luke, o que... Entao caiu a ficha. Voce sera traido por aquele que o chama de amigo. - Voce - disse eu. Ele se levantou calmamente e sacudiu o po dos seus jeans. O escorpiao nao lhe deu atencao. Seus olhos pequenos e brilhantes continuavam fixos em mim, apertando as pincas enquanto se arrastava para cima do meu sapato. - Eu vi muita coisa la fora no mundo, Percy - disse Luke. - Voce nao sentiu... a escuridao se acumulando, os monstros ficando mais fortes? Nao percebeu como tudo e inutil? Todos os feitos heroicos... Nos nao passamos de peoes dos deuses. Eles ja deviam ter sido derrubados ha milhares de anos, mas persistem, gracas a nos, meios-sangues. Eu nao podia acreditar no que estava acontecendo.
- Luke... voce esta falando dos nossos pais - disse eu. Ele riu. - E por isso eu preciso ama-los? A sua preciosa "civilizacao ocidental" e uma doenca, Percy. Ela esta matando o mundo. O unico meio de dete-la e queima-la completamente e comecar tudo de novo com algo mais honesto. - Voce e tao louco quanto Ares. Seus olhos flamejaram. - Ares e um tolo. Ele nunca percebeu quem e o verdadeiro mestre a quem esta servindo. Se eu tivesse tempo, Percy, poderia explicar. Mas infelizmente voce nao vai viver tanto. O escorpiao se arrastou para cima da perna das minhas calcas. Tinha de haver um meio de sair dessa. Eu precisava de tempo para pensar. - Cronos - disse eu. - E a ele que voce serve. O ar ficou mais frio. - Voce devia ter cuidado com nomes - avisou Luke. - Cronos fez voce roubar o raio-mestre e o elmo. Ele falou com voce nos seus sonhos. O olho de Luke se contraiu. - Ele falou com voce tambem, Percy. Devia ter ouvido. - Ele esta fazendo uma lavagem cerebral em voce, Luke. - Voce esta errado. Ele me mostrou que os meus talentos estao sendo desperdicados. Voce sabe qual foi a minha missao dois anos atras, Percy? Meu pai, Hermes, queria que eu roubasse um pomo de ouro do jardim das Hesperides e o levasse ao Olimpo. Depois de todo o treinamento que fiz, aquilo foi o melhor em que ele pode pensar. - Essa nao e uma missao facil - disse eu. - Hercules fez isso. - Exatamente - disse Luke. - Onde esta a gloria em repetir o que outros ja fizeram? Tudo o que os deuses sabem fazer e repetir o passado. Meu coracao nao estava naquilo. O dragao do jardim me deu isto - ele apontou para a cicatriz -, e quando voltei, tudo o que ganhei foi piedade. Eu queria destruir o Olimpo pedra por pedra naquele momento, mas esperei pelo momento certo. Comecei a sonhar com Cronos. Ele me convenceu a roubar alguma coisa que valesse a pena, algo que nenhum heroi jamais tivera a coragem de pegar. Quando fomos naquela excursao do solsticio de inverno, enquanto os outros campistas dormiam, entrei furtivamente na sala do trono e peguei o raio-mestre de Zeus bem em cima da cadeira dele. O elmo das trevas de Hades tambem. Voce nao tem ideia como foi facil. Os olimpianos sao tao arrogantes; eles nunca nem sonharam que alguem se atrevesse a rouba-los. A seguranca deles e horrivel. Eu ja estava a meio caminho atraves de New Jersey antes de ouvir as tempestades troando, e soube que eles tinham descoberto o meu roubo. O escorpiao agora estava parado no meu joelho, me olhando com seus olhos brilhantes. Tentei manter a voz no mesmo nivel. - Entao por que nao levou os objetos para Cronos? O sorriso de Luke vacilou.
- Eu... eu fiquei confiante demais. Zeus mandou seus filhos e filhas para encontrar o raio roubado: Artemis, Apoio, meu pai, Hermes. Mas foi Ares quem me pegou. Eu podia te-lo vencido, mas nao fui bastante cuidadoso. Ele me desarmou, tomou de mim os objetos de poder, ameacou devolve-los ao Olimpo e me queimar vivo. Entao a voz de Cronos veio a mim e me falou o que dizer. Pus na cabeca de Ares a ideia de uma grande guerra entre os deuses. Disse que tudo o que ele teria de fazer seria esconder os objetos por algum tempo e ficar assistindo enquanto os outros lutavam. Um brilho perverso surgiu nos olhos de Ares. Eu sabia que ele estava fisgado. Ele me deixou ir, e eu voltei ao Olimpo antes que alguem notasse a minha ausencia. - Luke sacou a sua nova espada. Ele correu o polegar pela parte achatada da lamina, como se estivesse hipnotizado por sua beleza. - Depois, o Senhor dos Titas... e-ele me castigou com pesadelos. Eu jurei nao falhar outra vez. De volta ao Acampamento Meio-Sangue, em meus sonhos, me foi dito que um segundo heroi chegaria, um que poderia ser enganado para levar o raio e o elmo o resto do caminho, de Ares ate o Tartaro. - Voce convocou o cao infernal aquela noite na floresta. - Tinhamos de fazer Quiron pensar que o acampamento nao era seguro para voce, e assim ele iria dar inicio a sua missao. Tinhamos de confirmar seus temores de que Hades estava atras de voce. E funcionou. - Os tenis voadores estavam amaldicoados - disse eu. - Eles deveriam me arrastar com a mochila para dentro do Tartaro. - E teriam, se voce os estivesse usando. Mas voce os deu ao satiro, o que nao era parte do plano. Grover bagunca tudo o que ele toca. Confundiu ate a maldicao. Luke baixou os olhos para o escorpiao, que estava agora parado na minha coxa. - Voce devia ter morrido no Tartaro, Percy. Mas nao se preocupe. Vou deixa-lo com o meu pequeno amigo para corrigir as coisas. - Thalia deu a vida dela para salva-lo - disse eu rangendo os dentes. - E e assim que voce retribui? - Nao fale de Thalia! - berrou ele. - Os deuses a deixaram morrer! Essa e uma das muitas coisas pelas quais eles pagarao. - Voce esta sendo usado, Luke. Voce e Ares, os dois. Nao de ouvidos a Cronos. - Eu estou sendo usado? - A voz de Luke ficou estridente. - Olhe para voce mesmo. O que o seu pai ja fez por voce? Cronos se erguera. Voce apenas retardou os seus planos. Ele ira lancar os olimpianos no Tartaro e mandara a humanidade de volta para as cavernas. Todos menos os mais fortes; aqueles que o servem. - Chame de volta o seu bicho rastejante - disse eu. - Se voce e tao forte, lute comigo voce mesmo. Luke sorriu. - Boa tentativa, Percy. Mas eu nao sou Ares. Voce nao pode me engabelar. Meu senhor esta esperando, e ele tem muitas missoes para mim. - Luke... -Adeus, Percy. Uma nova Idade do Ouro esta chegando. Voce nao sera parte dela. Ele tracou um arco com a espada e desapareceu numa onda de escuridao. O escorpiao deu o bote.
Eu o joguei de lado com a mao e destampei a espada. A coisa pulou em cima de mim e eu a cortei ao meio no ar. Estava a ponto de me congratular quando olhei para a minha mao. Na palma havia um enorme vergao vermelho, que destilava uma secrecao amarela e fumegante. A coisa me pegara, afinal. Meus ouvidos latejavam. Minha visao ficou embacada. A agua, pensei. Ela ja me curara antes. Cambaleei ate o regato e mergulhei a mao, mas nada pareceu acontecer. O veneno era forte demais. Minha visao estava escurecendo. Eu mal conseguia ficar em pe. Sessenta segundos, Luke me dissera. Eu tinha de voltar ao acampamento. Se desmaiasse aqui, meu corpo seria o jantar de algum monstro. Ninguem jamais saberia o que aconteceu. Minhas pernas pareciam feitas de chumbo. Minha testa queimava. Fui cambaleando ate o acampamento, e as ninfas despertaram de suas arvores. - Socorro - grasnei. - Por favor... Duas delas seguraram os meus bracos e me puxaram para frente. Lembro-me de chegar ate a clareira, de um conselheiro gritando por ajuda, de um centauro tocando uma trombeta de concha. Entao tudo escureceu. . . . Acordei com um canudinho na boca. Estava bebendo alguma coisa que tinha gosto de biscoitos de flocos de chocolate liquidos. Nectar. Abri os olhos. Estava reclinado na cama no quarto de doentes da Casa Grande, a mao direita enfaixada como um pedaco de pau. Argos montava guarda no canto. Annabeth estava sentada ao meu lado, segurando o copo de nectar e enxugando a minha testa com uma toalha. - Aqui estamos nos outra vez - disse eu. - Seu idiota - disse Annabeth, e foi como eu percebi que ela estava radiante por me ver consciente. - Voce estava verde e ficando cinzento quando o encontramos. Se nao fosse o tratamento de Quiron... - Vamos, vamos - disse a voz de Quiron. - A constituicao de Percy merece parte do credito. Ele estava sentado perto do pe da minha cama em forma humana, e foi por isso que eu nao o notara antes. Sua parte inferior estava magicamente compactada na cadeira de rodas, e a parte superior usava casaco e gravata. Ele sorriu, mas seu rosto parecia cansado e palido, como quando passava a noite em claro corrigindo provas de latim. - Como esta se sentindo? - perguntou. - Como se as minhas entranhas tivessem sido congeladas e depois assadas no microondas. - Apropriado, considerando que foi veneno de escorpiao das profundezas. Agora voce tem de me contar, se puder, exatamente o que aconteceu. Entre goles de nectar, contei-lhes a historia. O quarto ficou em silencio por um longo tempo.
- Eu nao posso acreditar que Luke... - A voz de Annabeth vacilou. Sua expressao ficou zangada e triste. - Sim. Sim, eu posso acreditar. Que os deuses o amaldicoem... Ele nunca mais foi o mesmo depois da sua missao. - Isso deve ser relatado ao Olimpo - murmurou Quiron. - Irei imediatamente. - Luke esta la fora agora - disse eu. - Preciso ir atras dele. Quiron sacudiu a cabeca. - Nao, Percy. Os deuses... - Nem mesmo falam sobre Cronos - disparei. - Zeus declarou o assunto encerrado! - Percy, eu sei que e dificil. Mas voce nao deve correr atras de vinganca. Voce nao esta preparado. Eu nao gostei, mas parte de mim suspeitava que Quiron estava certo. Bastava uma olhada para a minha mao e dava para ver que nao haveria lutas de espada tao cedo. - Quiron... a sua profecia do Oraculo... era sobre Cronos, nao era? Eu estava nela? E Annabeth? Quiron olhou nervosamente para o teto. - Percy, nao cabe a mim... - Voce recebeu ordens de nao falar comigo sobre isso, nao foi? Seus olhos eram solidarios, mas tristes. - Voce sera um grande heroi, crianca. Darei o melhor de mim para prepara-lo. Mas se estou certo quanto ao caminho a sua frente... - O trovao ribombou acima, chacoalhando as janelas. - Esta certo! - gritou Quiron. - Perfeito! - Ele suspirou com frustracao. - Os deuses tem suas razoes, Percy. Saber demais sobre o proprio futuro nunca e uma boa coisa. - Nao podemos simplesmente ficar sentados sem fazer nada - disse eu. - Nos nao vamos ficar sentados - prometeu Quiron. - Mas voce precisa ter cuidado. Cronos quer que voce seja destruido. Ele quer a sua vida interrompida, os seus pensamentos obscureci- dos por medo e raiva. Nao de a ele o que ele quer. Treine pacientemente. O seu momento chegara. - Presumindo que eu esteja vivo ate la. Quiron pousou a mao no meu tornozelo. - Voce tera de confiar em mim, Percy. Voce vivera. Mas primeiro precisa decidir seu caminho para o proximo ano. Nao posso dizer a voce qual e a escolha certa... - Tive a impressao de que ele tinha uma opiniao muito bem definida, e estava usando toda a sua forca de vontade para nao me aconselhar. - Mas voce precisa decidir se vai ficar no Acampamento Meio-Sangue o ano inteiro, ou se vai voltar ao mundo mortal para a setima serie e ser um campista de verao. Pense nisso. Quando eu voltar do Olimpo, voce tera de me contar a sua decisao. Eu quis protestar. Quis lhe fazer mais perguntas. Mas sua expressao me disse que nao haveria mais discussao; ele ja dissera tudo o que podia. - Estarei de volta assim que puder - prometeu Quiron. - Argos o protegera.
Ele lancou um olhar para Annabeth. - Ah, e minha querida... quando estiver pronta, eles estao aqui. - Quem esta aqui? - perguntei. Ninguem respondeu. Quiron rodou para fora do quarto. Ouvi o som metalico abafado das rodas da sua cadeira descendo cautelosamente os degraus da frente, dois de cada vez. Annabeth estudou o gelo na minha bebida. - O que esta errado? - perguntei a ela. - Nada. - Ela pos o copo sobre a mesa. - Eu... apenas aceitei o seu conselho sobre algo. Voce... ahn... precisa de alguma coisa? - Sim. Ajude-me a levantar. Quero ir para fora. - Percy, nao e uma boa ideia. Arrastei as pernas para fora da cama. Annabeth me agarrou antes que eu desabasse no chao. Uma onda de nausea me acometeu. Annabeth disse: - Eu falei... - Estou otimo - insisti. Eu nao queria ficar deitado na cama como um invalido enquanto Luke estava la fora planejando destruir o mundo ocidental. Consegui dar um passo para a frente. Depois outro, ainda me apoiando pesadamente em Annabeth. Argos nos seguiu para fora, mas manteve distancia. Quando chegamos a varanda, meu rosto estava molhado de suor. Meu estomago se contorcia em nos. Mas eu conseguira ir ate a cerca. Estava anoitecendo. O acampamento parecia completamente deserto. Os chales estavam escuros e a quadra de volei, silenciosa. Nenhuma canoa cortava a superficie do lago. Alem dos bosques e dos campos de morangos, o estreito de Long Island brilhava com os ultimos raios do sol. - O que voce vai fazer? - perguntou-me Annabeth. - Eu nao sei. Disse a ela que tinha a sensacao de que Quiron queria que eu ficasse o ano inteiro, para ter mais tempo de treinamento individual, mas eu nao tinha certeza de que era isso o que queria. Porem admiti que me sentia mal por deixa-la sozinha, com Clarisse por companhia... Annabeth apertou os labios e entao disse baixinho: - Eu vou passar o ano em casa, Percy. Eu olhei para ela. - Voce quer dizer, com o seu pai? Ela apontou para o cume da Colina Meio-Sangue. Junto ao pinheiro de Thalia, bem no limite das fronteiras magicas do acampamento, havia uma familia em silhueta - duas criancas pequenas, uma mulher e um
homem alto de cabelos loiros. Pareciam estar aguardando. O homem segurava uma mochila parecida com a que Annabeth pegara no Parque Aquatico em Denver. - Eu escrevi uma carta para ele quando voltamos - disse Annabeth. - Como voce sugeriu. Eu disse a ele... que sentia muito. Que iria para casa passar o ano escolar se ele ainda me quisesse. Ele respondeu na mesma hora. Nos decidimos... que iamos tentar de novo. - Foi preciso coragem para isso. Ela apertou os labios. - Voce nao vai tentar nada de estupido durante o ano escolar, vai? Pelo menos... nao sem me mandar uma mensagem de iris? Consegui sorrir. - Nao vou procurar encrenca. Normalmente eu nao preciso. - Quando eu voltar no proximo verao - disse ela -, vamos cacar Luke. Vou pedir uma missao, mas se nao tivermos aprovacao, vamos sair escondidos e fazer isso do mesmo jeito. De acordo? - Parece um plano digno de Atena. Ela estendeu a mao. Eu a apertei. - Cuide-se, Cabeca de Alga - disse Annabeth. - Mantenha os olhos abertos. - Voce tambem, Sabidinha. Fiquei olhando enquanto ela subia a colina para se juntar a familia. Ela deu um abraco meio sem jeito no pai e olhou para o vale atras dela uma ultima vez. Tocou o pinheiro de Thalia e entao se deixou levar por cima do cume e para dentro do mundo mortal. Pela primeira vez no acampamento, me senti verdadeiramente so. Olhei para o estreito de Long Island e me lembrei do meu pai dizendo: O mar nao gosta de ser contido. Tomei minha decisao. Fiquei pensando: se Poseidon estivesse vendo, ele aprovaria a minha escolha? Estarei de volta no proximo verao - prometi a ele. - Sobreviverei ate la. Afinal, eu sou seu filho. - Pedi a Argos para me levar ate o chale 3, para eu arrumar as minhas coisas antes de ir para casa.
AGRADECIMENTOS Sem a assistencia de muitos ajudantes valorosos, eu teria sido morto por monstros muitas vezes seguidas na luta para publicar esta historia. Obrigado ao meu filho mais velho, Haley Michael, que ouviu a historia primeiro; meu filho mais novo, Patrick John, que com seis anos de idade e o sensato da familia; e minha mulher, Becky, que aguenta as minhas muitas e longas horas no Acampamento Meio-Sangue. Obrigado tambem ao meu nucleo de testado-res beta do curso secundario: Travis Stoll, esperto e rapido como Hermes; C.C. Kellog, amado como Atena; Allison Bauer, clarivi-dente como Artemis, a Cacadora; e a sra. Margaret Floyd, a sabia e gentil vidente da escola secundaria de ingles. Meu reconhecimento tambem ao professor Egbert J. Bakker, extraordinario classicista; Nancy Gallt, agente summa cum lauie; Jonathan Burnham, Jennifer Besser e Sarah Hughes, por acreditar em Percy. Digitalizado por:
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Traducoes & Digitalizacoes
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Percy Jackson e os Olimpianos
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=42384468
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